Cristianismo e Marxismo no pensamento educomunicacional de Ismar de Oliveira Soares

December 7, 2016 | Author: Izabel Ana Beatriz Almeida Vilanova | Category: N/A
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Cristianismo e Marxismo no pensamento educomunicacional de Ismar de Oliveira Soares Liana Gottlieb*

Resumo Este estudo destaca a contribuição de Ismar de Oliveira Soares tanto ao campo da comunicação religiosa quanto ao campo da comunicação educativa, ao longo dos anos 80 e 90, no Brasil e na América Latina, buscando contextualizar e avaliar suas idéias e seus projetos. As referências bibliográficas apontam para uma personalidade expressamente influenciada pelos ideários da esquerda brasileira dos anos 70 e 80, fato que levou o professor Ismar a manter-se permanentemente combativo. Como professor e pesquisador, sua meta, no momento, é ver reconhecido, no Brasil e em toda a América Latina, o campo da Educomunicação, que define como uma área interdisciplinar de intervenção social, voltada para o desenvolvimento de ecossistemas comunicativos abertos, dialógicos e participativos, mediados pelas tecnologias da informação. Palavras-chave 1. Comunicação religiosa; 2. Comunicação educativa.

Resumen Este estudio destaca la contribución de Ismar de Oliveira Soares, tanto al campo de la comunicación religiosa, cuanto al de la comunicación educativa, a lo largo de los años ochenta y noventa, en Brasil y en Latinoamérica, buscando contextualizar y evaluar sus ideas y proyectos. Las referencias bibliográficas apuntan a una personalidad expresivamente influenciada por los idearios de la izquierda brasileña de los años setenta y ochenta, hecho que ha llevado al profesor Ismar a mantenerse permanentemente combativo. Como profesor e investigador, su meta hoy, es ver reconocido, en Brasil y en toda Latinoamérica, el campo de la educomunicación, que define como un área interdisciplinar de intervención social, dirigida al desarrollo de ecosistemas comunicativos abiertos, dialógicos y participativos, mediados por las tecnologías de la información. Palabras-llave 1. Comunicación religiosa; 2. Comunicación educativa

Abstract

This study emphasizes Ismar de Oliveira Soares’ contribution, not only to the area of religious communication, but also to the educational communication one, along the eighties and nineties, in Brazil and Latin America, aiming at contextualizing and evaluating his ideas and projects. The bibliographical references point out a personality expressively influenced by the seventies and eighties Brazilian left-wing concepts, a fact which led Professor Soares to keeping himself permanently combative. As a professor and a researcher, his goal, at the moment, is to see recognized, in Brazil and in the whole Latin America, the educommunication field, which he defines as a social intervention interdisciplinary area, that aims at the development of open communicative ecosystems, dialogical and partaking, mediated by the information technologies. Keywords 1. Religious communication; 2. Educational communication.

I. Introdução Meu primeiro contato com o professor Ismar de Oliveira Soares deu-se por telefone, no início de 1990. Eu lecionava na Faculdade de Educação do Instituto Metodista de Ensino Superior, hoje Universidade Metodista de São Paulo e estava interessada em trocar idéias sobre o tema da educação para os meios. Havia lido alguns de seus livros, editados pelas Paulinas, especialmente “Para uma Leitura Crítica dos Jornais” e “Para uma Leitura Crítica da Publicidade” e me identificava com várias das idéias trabalhadas pelo professor da ECA/USP, especialmente com a perspectiva dialógica da pedagogia por ele defendida. Anos depois, tive a satisfação de contar com sua participação na banca da defesa de minha dissertação de mestrado, na própria Metodista, em 1993. Em 1994, iniciei o doutorado, tendo o professor Ismar como meu orientador, em Ciências da Comunicação, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Juntos promovemos alguns eventos, especialmente o III Simpósio Brasileiro sobre Comunicação e Educação, em São Paulo, em 1986, numa parceria entre o Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP e a antiga DEMEC – Delegacia do MEC em São Paulo, do qual resultou o livro “Comunicação e Plano Decenal de Educação: Rumo ao ano 2003”, que organizamos em conjunto. Estas foram algumas das razões que me levaram a aceitar o convite do Prof. Dr. José Marques de Melo para desenvolver o tema “Cristianismo e Marxismo no pensamento educomunicacional de Ismar de Oliveira Soares”, a ser apresentado durante o V Colóquio 2

Internacional sobre a Escola Latino Americana de Comunicação, promovido pela Cátedra UNESCO de Comunicação para o Desenvolvimento Regional e pela UMESP, de 21 a 23 de maio de 2001. O convite permitiu-me visitar as pesquisas do professor Ismar, entrevistar seus colegas e discípulos, assim como consultar documentos que elucidam sua trajetória acadêmica e seu envolvimento com os três temas que ocupou ao longo dos últimos trinta anos: a comunicação religiosa, a comunicação popular-alternativa e o tema da inter-relação comunicação/educação. Confesso que a tarefa não me foi de todo fácil. Não me considero uma marxista, nem tão pouco sou filiada a nenhuma das tradições cristãs. O fato, contudo, propiciou-me a necessária condição para analisar o trabalho do professor Ismar com certa distância, coisa que fica, de certa forma, comprometida em face da limitação de espaço para a exposição das idéias. Após este estudo, penso que, para conter toda a sua caminhada, seria necessário, pelo menos, um livro.

II. Fases Um olhar sobre o conjunto de suas atividades como professor, pesquisador e agente cultural, faz-me crer que o professor Ismar poderia ser caracterizado mais como um homem de ação, um articulador, ou intelectual orgânico, na expressão de Umberto Eco, que como um filósofo ou um teórico puro. Quando teoriza, reflete mais as conclusões a que chegou em consonância com os grupos com os quais trabalha ou lidera, que suas próprias conclusões individuais e solitárias. Outra característica de sua personalidade é a tenacidade e a perseverança na defesa das teses que abraça, fato que permite identificar uma linearidade ideológico-política costurando as várias fases a partir das quais é possível dividir a produção profissional e acadêmica do professor Ismar. Acredito poder identificar as seguintes fases: Primeira fase: a busca de uma teoria para a comunicação cristã; Segunda fase: a busca de uma prática alternativa para a comunicação popular; Terceira fase: a busca de um estatuto teórico para a inter-relação comunicação/educação.

Por questão de economia de espaço, ater-nos-emos, neste estudo, a primeira e terceira fases.

II.1. A busca de uma teoria para a comunicação cristã 3

Com duas teses, dezenas de artigos, três mandatos como presidente da UCBC, dois como Presidente da UCLAP, uma permanência por 18 anos como membro da Equipe de Reflexão do Setor de Comunicação da CNBB, dezenas de assessorias e de palestras sobre o tema de sua especialidade, o professor Ismar é considerado, hoje, um dos mais profundos conhecedores das políticas de comunicação das Igrejas Cristãs no Brasil, especialmente da Igreja Católica Romana. Perguntado sobre o que o levou a envolver-se com a UCBC, desde 1977, quando passou a colaborar com o presidente da entidade, Clarêncio Neotti, redigindo o boletim da entidade (editado no Rio de Janeiro por Hilda de Azevedo), assumindo, em seguida, de 1980 a l986, a presidência da associação, o professor Ismar respondeu: “Tinha um projeto para a entidade: exercitar uma proposta de comunicação que colocasse a UCBC na fronteira entre o espaço religioso e o espaço civil”. Na verdade, esta é a tese que sempre defendeu: as Igrejas precisam dialogar com a sociedade e o conseguirão somente quando souberem sair de seu próprio universo e promoverem um discurso aberto e inteligível com os vários setores que compõem o universo mais aberto das relações sociais. Cita, para ilustrar seu pensamento, dois exemplos extremos: a comunicação realizada pela Pastoral da Criança, da CNBB, centrada em temas de interesse de toda a sociedade e a comunicação mais intimista e voltada para um certo catolicismo internalizado, promovida pela Rede Vida de Televisão. A “teoria cristã da comunicação” descrita por Ismar e referendada em diversas ocasiões por Dom Ivo Lorscheiter, ex-Presidente da CNBB, encontra sua descrição mais clara no final da tese de doutoramento do Professor Ismar, publicada sob o título Do Santo Ofício à Libertação, o discurso e a prática do Vaticano e da Igreja Católica no Brasil campo da Comunicação Social(1). Em seu texto, Ismar atribui a leigos como Francisco GUTIÉRREZ, da Costa Rica, Mário KAPLÚN, do Uruguai e Paulo FREIRE, do Brasil, a formação e consolidação de um pensamento sobre uma possível teoria cristã da comunicação na América Latina, que se caracteriza por ser histórica, dialógica, profética, verídica, veraz, biofílica, interpessoal, participativa, libertadora, eficiente e humana(2). O professor Ismar vinha elaborando seu pensamento desde a dissertação de mestrado, quando ao descrever e classificar os boletins diocesanos católicos, deu ênfase, ao compromisso assumido por um número relevante de publicações, à defesa dos direitos humanos e à cobertura do trabalho das comunidades de base(3).

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É possível encontrar o mesmo esforço ao longo dos anos 80, quando o professor Ismar integra-se a uma comunidade de reflexão sobre o papel da comunicação na vida das igrejas cristãs. Nesse sentido, participa, ou mesmo coordena - tendo como companheiros de jornada intelectuais do porte de Romeu Dale, Marques de Melo, Clarêncio Neotti, Attilio Hartmann, Dermi Azevedo, Joana Puntel, Anamaria Fadul, Pedro Gilberto Gomes, José Manoel Morán, Francisco de Assis Fernandes, entre outros - mais de dez seminários nacionais e latinoamericanos envolvendo o tema das relações entre religião e comunicação(4). Será, contudo, na criação e constituição do SEPAC – Serviço à Pastoral da Comunicação das Edições Paulinas, que o pensamento do professor Ismar encontrará um espaço de aplicação. O SEPAC surge da convergência de dois interesses: de um lado, o professor Ismar, então Presidente da UCBC, estava procurando uma entidade interessada em desenvolver, em parceria com sua entidade, um projeto de capacitação permanente para o campo da educação para a comunicação. Nesse sentido, já havia procurado a Editora Dom Bosco, com sede na Moóca. Como a resposta fora negativa, aproximou-se das Irmãs Paulinas, com as quais havia mantido um contato mais intenso na qualidade de professor de história num curso de filosofia ministrado em São Paulo, em 1980, e assistido por duas dezenas de irmãs paulinas. Nesse segundo contato, o professor Ismar encontrou franca acolhida por parte da Irmã Élide Polita, provincial e de seu Conselho. Na verdade, as Edições Paulinas já vinham discutindo internamente uma proposta no sentido de prestar um serviço alternativo a seus clientes na linha da formação para a comunicação. Nesse sentido, as Paulinas aceitaram associar-se à proposta do professor Ismar, ainda que não tenham aprovada a idéia da parceria institucional: o núcleo a ser fundado deveria estar organicamente subordinado às Edições Paulinas. Ao concordar com a proposta, o professor Ismar passou a integrar-se, em março de 1982, a uma equipe comandada pela Irmã Ivani Pulga, permanecendo como assessor do projeto até 1988, quando ingressou na USP em tempo integral. Desde a inauguração oficial da primeira sede da entidade, na Rua 15 de Novembro, São Paulo, até a presente data, e já na terceira sede, à rua Capitão Macedo, o SEPAC tem-se mantido fiel aos objetivos e à filosofia que presidiu sua criação, há 20 quase anos: o desenvolvimento de um programa de formação de especialistas em comunicação comprometidos com a defesa de uma comunicação politicamente identificada com as camadas subalternas da sociedade. Trata-se de uma proposta que corria numa linha oposta a uma presumível tendência de privilegiar uma abordagem de plena adesão ao mercado, de corte neo-liberal, visível nos programas de

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graduação ou até mesmo de pós-graduação das Faculdades de Comunicação existentes na América Latina e no Brasil, ao longo dos anos 80. Se aos estudos de Mattelart (presentes nas propostas dos cursos de “leitura crítica da comunicação” desenvolvidos pela UCBC, neste período) como aos próprios postulados da NOMIC podiam ser atribuídos pressupostos de origem marxista, eram estes mesmos pressupostos que davam suporte às idéias defendidas pelo professor Ismar para a constituição de um núcleo de formação superior desimpedido dos entraves burocráticos e dos compromissos teóricos que davam sustentação aos centros universitários mais conhecidos. Foi graças ao SEPAC e à colaboração a ele oferecida por docentes da USP e do Instituto Metodista de Ensino Superior que a Igreja Católica passou a dispor de um centro de formação considerado, hoje, como um modelo internacional. Através dos cursos oferecidos, especialmente do Curso Teórico-Prático de Comunicação (pós-graduação lato sensu, referendado pela Universidade São Francisco) que o pensamento do SEPAC tem sido discutido, analisado e assimilado por formadores de opinião no espaço eclesial brasileiro e latino-americano. Se o SEPAC foi e tem sido uma história de sucesso, podemos encontrar uma história de frustração e sofrimento na busca do professor Ismar por uma prática alternativa de comunicação cristã. Trata-se da frustrada assessoria que ofereceu para a constituição da grade de programação da Rede Vida de Televisão. Nos inícios dos anos 90, a Equipe de Reflexão do Setor de Comunicação Social da CNBB tomou conhecimento da proposta de um concessionário de TV de São José do Rio Preto, o radialista João Monteiro de Barros Filho, que se dispunha a articular uma rede católica de televisão através da montagem de repetidoras de seu sinal pelas dioceses brasileiras em todo o território nacional. A Equipe de Reflexão do Setor de Comunicação Social da CNBB solicitou, então, ao professor Ismar que acompanhasse o processo de montagem da rede, colaborando com Monteiro na articulação de uma grade de programação. O empresário acolheu a iniciativa, recebendo o professor Ismar periodicamente, para a análise, a evolução dos contatos e das propostas que uma série de produtoras independentes passaram a fazer, atendendo ao convite de pensarem conjuntamente uma grade de programação que se aproximasse ao modelo bem sucedido apresentado, à época, pela TV Cultura, mantida pela Fundação Padre Anchieta. Pretendia-se uma televisão que pudesse ser assistida sem sustos pelas famílias e profundamente comprometida com a cultura nacional. Monteiro acompanhou o professor 6

Ismar num almoço de trabalho com o Reitor da USP, professor Fava, interessado em saber como a Universidade de São Paulo poderia integrar-se à iniciativa. Esteve também em reuniões com produtores de televisão, num debate promovido durante o III Simpósio sobre Comunicação e Educação, promovido pelo NCE/ECA/USP em co-patrocínio com a DEMEC, em São Paulo. Em seu trabalho de articulação da grade, o professor Ismar fez-se assessorar por uma equipe de produtores, entre as quais figurava a professora Marília Franco, hoje coordenadora da TV USP. A grade de programação que ia sendo montada passou a ser utilizada por Monteiro em seus contatos com as autoridades do Ministério das Comunicações em Brasília: era conhecida como “a proposta da USP”. O professor Ismar tomava como referência em seu trabalho uma declaração de Dom Luciano Mendes de Almeida, numa reunião ocorrida em setembro de 1994, e destinada a discutir a programação da futura Rede católica de televisão. Segundo o então Presidente da CNBB, não mais do que 4% dos brasileiros poderiam ser considerados como católicos praticantes, pelo que não seria eticamente adequado que a Rede Vida invadisse os lares nacionais com uma programação que interessasse apenas a um reduzido número de fiéis. A proposta do professor Ismar, elaborada durante ano e meio de trabalho, tinha como meta abrir espaços para os produtores culturais e articular as comunidades através da ação das lideranças. Algo que ao longo dos anos 90 foi sendo concretizado por algumas das TVs comunitárias instaladas no Brasil. Premido pelas circunstâncias e depois de haver perdido várias oportunidades de obter apoio para a iniciativa junto a mega-investidores, Monteiro viu-se na contingência de colocar a Rede Vida no ar no dia 1º de maio de 1995 a partir de acordo celebrado com o antigo Presidente do SEBRAE, Afif Domingues, fato que lhe garantiu a cobertura da produtora de vídeo de propriedade do jornalista Ricardo de Carvalho. Ricardo, antigo militante da esquerda, garantiu a Monteiro que o Brasil dispunha de um “target” formado por 80 milhões de telespectadores ansiosos por uma emissora expressamente católica, em que predominassem os signos e as figuras da hierarquia católica. E assim foi feito. A opção final da Igreja Católica por um modelo de televisão voltado para o público interno, e sedimentado nas figuras hierárquicas de sacerdotes e bispos, acabou por eliminar a possibilidade da continuação da proposta do professor Ismar. Na verdade, o único programa da grade por ele elaborada que conseguiu ir ao ar e manter-se até a presente data, dá o tom do que poderia ter sido o conjunto da proposta: trata-se de um programa executado por jovens, 7

planejado conjuntamente por um grupo de representantes de diretores, professores e alunos de três instiutições: os salesianos (Inspetoria Salesiana), os jesuítas (Colégio São Luis) e os maristas (Colégio Arquidiocesano) de São Paulo. O programa, finalmente sob o comando único dos maristas, vem-se mantendo ar até o presente momento. A mais recente e decisiva incidência do professor Ismar no campo da construção de uma teoria cristã da comunicação deu-se por ocasião da Assembléia Geral da CNBB, em Itaici, em 1996, momento em que atuou como assessor especial, na companhia de Pedro Gilberto Gomes e Irmã Natália Macari. Os bispos pretendiam a aprovação de um documento operativo, de fácil entendimento que figurasse como um roteiro de ações. A metodologia de trabalho previa que, a partir de um texto produzido pela Equipe de Reflexão do Setor de Comunicação da CNBB, os bispos fossem divididos em sub-grupos para discutir determinado sub-tema. Suas conclusões eram levadas à equipe assessora do encontro para sistematização e posterior discussão em plenário. Um fato ocupou os bispos na primeira plenária. Os assessores, baseando-se em texto distribuído por Carlos Mester, biblista que havia assessorado o retiro que precedera a assembléia, afirmava que o novo, o “evangélico” em Jesus não fora o que ele havia dito – o conteúdo de sua mensagem - mas a forma como ele havia dito, isto é, sua “comunicação”. Transferida para o início do documento pelos assessores, a título de “lead”, a afirmação foi duramente criticada pela assembléia e considerada por alguns como inadequada: para os bispos uma coisa era o “modo” como algo é dito, outra é a “mensagem” propriamente dita. Em Jesus, o importante é essencialmente a mensagem. O modo, uma circunstância, sempre louvável, tratando-se do Salvador. Como conseqüência prática dos debates, os parágrafos introdutórios do documento foram transferidos para a competência dos quatro membros episcopais da Equipe de Reflexão, presidida por D. Serafim Fernandes. Na verdade, o episódio colocou em evidência diferentes perspectivas a respeito de uma teoria cristã da comunicação. Para a equipe da qual fazia parte o professor Ismar, a comunicação – como já havia de certo modo reconhecido o Documento aprovado em Puebla, México, pelo Episcopado Latino-americano, “evangelização” e “comunicação” são praticamente sinônimos. O problema é que no documento de Puebla, o episcopado não consegue superar uma visão instrumentalista da comunicação que reduz a comunicação ao “anúncio”e não à prática do diálogo. No caso específico, o que defendiam o professor Ismar e sua equipe era o princípio segundo o qual, para o cristianismo, a encarnação e a opção existencial de Cristo pelo diálogo aberto e absoluto com a humanidade era a essência da nova 8

mensagem religiosa. Nenhuma outra mensagem suplantaria esta simples condição existencial de diálogo. Os que dela se afastassem estariam se afastando do próprio cristianismo, fato que seria sempre temporário, dada a condição mesma de dialogicidade e abertura para o outro, própria da doutrina cristã. Outro dado, constitutivo do documento finalmente aprovado revela, por outro lado, as preocupações operacionais do pensamento do professor Ismar e equipe: a ênfase na necessidade da criação de equipes de pastoral de comunicação em cada uma das paróquias do Brasil. Esta proposta, mais que qualquer outra relacionada à promoção dos grandes meios impressos ou audiovisuais, identifica a opção pela perspectiva participativa da proposta comunicacional defendida pelo professor Ismar.

2.2. A busca de um estatuto teórico para a inter-relação comunicação / educação O professor Ismar de Oliveira Soares é, atualmente, o pesquisador brasileiro cujas teses sobre a relação comunicação/educação vêm alcançando maior repercussão em âmbito nacional ou mesmo internacional. Cecilia FEILITZEN, professora da Götebord University, Suécia, ao analisar a produção internacional sobre educação para os meios (media education) reunida no livro Children and Media Image, Education and Participation (1999), destaca a singularidade do pensamento dos especialistas do Hemisfério Sul, entre os quais o professor Ismar(5), em relação ao pensamento dos especialistas da Europa, Canadá e Austrália, afirmando: “Os autores da Astrália, Canadá e Europa dão mais ênfase à noção segundo a qual a educação para os meios deveria formar indivíduos criticos, independentes e participativos, enquanto autores da India, Brasil e África do Sul enfatizam o papel da educação para os meios enquanto promotora do desenvolvimento da comunidade, enfatizando, entre outras coisas, que a democracia significa justiça social, especialmente para os grupos oprimidos e marginalizados da sociedade(6). Os pontos de vista defendidos pelo professor Ismar o tem levado a seminários internacionais que discutem a Educação e a Comunicação, como o Seminário Internacional organizado pelo programa de pós-graduação em Comunicação & Educação da Universidad Central de Bogotá, em outubro dde 1999; o “Summit 2000” sobre Educação para os Meios, em Toronto, Canadá, em maio de 2000, onde coordenou um workshop sobre o conceito e as práticas da educomunicação, o “Summit 2001”, sobre Criança e Televisão, em Tessalonika, Grécia, em março, de 2001, promovido pelo European Children’s Television Centre, quanto 9

foi convidado a participar em três painéis sobre as experiências alternativas no campo da educação para a comunicação na América Latina. Em Roma, ainda em março de 2001, participou de uma video-conferência entre especialistas da Universidade Pontifícia Salesiana e a Universidade Católica de Milão sobre o mesmo tema. Em termos de eventos internacionais, o mais importante, na biografia do professor Ismar foi o I International Congress on Communication and Education, por ele mesmo organizado em São Paulo, em maio de 1998, com a presença de 180 especialistas de 30 países, num trabalho que fez parte do processo de coleta de dados sobre o campo da inter-relação Comunicação e Educação, do qual resultou um CD-Rom com 150 papers(7). Em março do corrente ano, o professor Ismar foi o único latino-americano convidado pela European Children’s Television Centre, a intervir como especialista em educação para os meios no evento intitulado 3rd World Summit on Media for Children (Thessaloniki, Grécia, 23-26 de março de 2001). A

especificidade

do

pensamento

do

professor

Ismar

foi

destacada

por

VALDERRAMA, no texto introdutório do livro Comunicación-Educación, Coordinadas, Abordajes y Travesías (Bogotá, 2000), ao compará-lo com a proposta defendida por Jorge Huergo, da Argentina. Afirma o autor: Com respeito ao desenvolvimento do campo, encontram-se esboçadas neste livro ao menos duas visões: Jorge Huergo, por exemplo, considera o espaço de interseção entre a comunicação e a educação como uma confluência entre diversas perspectivas teóricas e de práticas sociais e profissionais com interesses distintos... Outro ponto de vista considera que a inter-relação comunicação/educação é um novo campo de conhecimento, inaugurando um novo paradigma. Com efeito, Ismar de Oliveira Soares sustenta a hipótese de que efetivamente o novo campo tem autonomia e se encontra em processo de consolidação, vendo-o como um campo, por natureza, relacional, estruturado como processo mediático, transdiciplinar e interdiscursivo que se materializa em quatro áreas de intervenção social: eduação para a comunicação, mediação tecnológica na educação, gestão da comunciação na educação, e a área da reflexão epistemológica. Ismar apóia sua tese com o argumeto de que já existe uma comunidade acadêmica com seus perfis claramente definidos(8). Na verdade, o professor Ismar Soares defende a emergência do campo da educomunicação (designação fundada em proposta de Mario Kaplún), a partir dos resultados de recente pesquisa colaborativa junto a especialistas de 12 países da América Latina, num trabalho que envolveu os Núcleos de Comunicação e Educação da ECA/USP, São Paulo, e da 10

UNIFACAS - Salvador, Bahia(9). O novo campo abrange as ações comunicativas no campo da educação, assim como as ações educativas voltadas para a criação de ecossistemas comunicativos abertos e favorecedores

de relações dialógicas entre pessoas e grupos

humanos. O novo campo apresenta-se como inter-discursivo e interdisciplinar, sendo fruto do que, nos vários campos das Ciências Humanas existe para explicar como a comunicação interfere no cotidiano das pessoas e nos diversos processos de produção da cultura(10). Segundo confidenciou o pesquisador mexicano, Raul Fuentes, durante o recente congresso da FELAFACS, realizado em São Paulo, em outubro de 2000, a pesquisa do professor Ismar ganha legitimidade por ter sido construída a partir de pesquisa empírica. Segundo é descrito, em recentes artigos, o novo campo se materializa em “áreas de intervenção social”, como a área da “educação para a comunicação”, a área da “mediação tecnológica nos espaços educativos”, a área da “gestão da comunicação em espaços educativos” e a área da “reflexão epistemológica sobre o novo campo”. O que unifica estas várias áreas de intervenção num mesmo campo é seu substrato comum: a operacionalização do conceito de inter-relação Comunicação/Educação a partir de uma mesma base teórica: a construção de ecossistemas comuncativos. Educomunicação, segundo o professor Ismar, define-se como o conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos, programas e produtos destinados a criar e a fortalecer ecossistemas comunicativos em espaços educativos presenciais ou virtuais (tais como escolas, centros culturais, emissoras de TV e rádio educativos, centros produtores de materiais educativos analógicos e digitais, centros coordenadores de educação a distância ou “elearning”, e outros....), assim como a melhorar o coeficiente comunicativo das ações educativas, incluindo as relacionadas ao uso dos recursos da informação no processo de aprendizagem(11). As áreas da “educação para os meios” (media literacy) e da “mediação tecnológica na educação” (information literacy) foram os objetos analisados durante a recente pesquisa realizada pelo professor Ismar nos Estados Unidos (1999-2000)(12). Entre os autores consultados, Ismar encontrou quem defendesse idéias parecidas às suas como ocorreu como Ladislaus SEMALI & Ann Watts PAILLIOTET autores do livro Intermediality(13), que defende uma proposta de educação para a comunicação muito próxima ao discurso latinoamericano da UCBC, ou, ainda com Rena PALLOFF & Keith PRATT que defendem uma visão comunitária para o uso das tecnologias em Building Learning Communities in Cyberspace(14). 11

A proposta de PALLOFF & PRAT para a educação a distância é, segundo Ismar, “educomunicativa” e “construtivista”, pois enfatiza o senso de participação, o pleno uso dos recursos tecnológicos da informação, a autonomia dos sujeitos, o espírito de iniciativa, o pensamento crítico, o diálogo colaborativo e o compromisso com o crescimento conjunto de todos os membros da comunidade virtual. Para tanto, o papel do professor ou instrutor é essencial. Levando em conta que já tenha dado sua contribuição na preparação e lançamento do curso online, cabe-lhe, durante seu desenvolvimento agir como um educomunicador ou um “gestor de processos comunicativos”, incentivando a participação de todos e promovendo ambientes de descontração, que em certas circunstâncias levará a desvios de atenção em relação aos conteúdos específicos dos cursos, sempre úteis se o objetivo fôr permitir a permanência do interesse de todos no processo de aprendizagem. Trata-se do que denominam como a abertura de espaços para assuntos de interesse pessoal, como as celebrações e as anedotas (personal issues in online courses). Em outras palavras, defendem que a formação da comunidade é tão importante quanto a distribuição e o tratamento dos conteúdos próprios de cada curso(15). Em seu relatório à FAPESP, o professor Ismar valoriza sobremaneira os contatos mantidos com René HOBBS, Diretora do Media Literacy Project, da Babson University, Massachusetts, quando afirma que: a) A diversidade das abordagens, das filosofias e das metas da “media education” pode ser o resultado inevitável da emergência de um novo campo, na intersecção dos estudos sobre os meios e a educação. b) Este campo está finalmente começando a ganhar corpo como resultado das experiências na área da “media literacy” desenvolvidas como práticas laboratorias nas escolas públicas norte-americanas. c) Este vigoroso debate talvez seja uma grande conquista para um ambiente educacional onde ainda vicejam subculturas fragmentadas e iconoclastas e onde se mantêm, em permanente conflito, parâmetros educacionais, interesses pessoais e

questiúnculas

intelectuais(16). A defesa do campo da Educomunicação é, na verdade, o mais recente capítulo de um envolvimento com o tema que teve seus inícios nos anos 70, como professor Ismar percorrendo cidades do interior dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, promovendo “cursos de análise da televisão para educadores”. No final dos anos 70, o veremos assumindo a coordenação do Projeto TAT – Treinamento de Análise da Televisão, do Instituto Metodista 12

de Ensino Superior, de São Bernardo, uma iniciativa de Reinado Brose. Tendo assumido a presidência da UCBC, cria, em colaboração com Attílio Hartmann, Pedro Gilberto Gomes, Joana Puntel, João Van Tilburg, entre outros, o Projeto LCC- Leitura Crítica da Comunicação, que desde o início dos anos 80 até a presente data continua a oferecer cursos e assessorias, a razão de 60 atividades por ano, garantindo um substrato teórico e metodológico para a área da educação para os meios no Brasil. É importante ressaltar que o projeto procurou manter coerência interna, submetendo-se periodicamente a avaliações internas. Em 1984, por exemplo, uma avaliação realizada com a participação de Marques de Melo, José Manoel Morán e Romeu Dale foi decisiva para os rumos do projeto, permitindo a superação de um denuncismo julgado, na época como já superado, e facilitando a posterior incorporação de contribuições advindas do movimento popular de origem freiriana, trazidas por ativistas como João Luiz Van Tilburg. O Projeto LCC foi permanentemente alimentado pelos Congressos Brasileiros de Comunicação Social, organizado pela UCBC em sucessivas universidades brasileiras. Coube ao professor Ismar responsabilizar-se pela infra-estrutura do Congresso de São Bernardo, em 1980 e presidir os congressos realizados, sucessivamente, na PUC de São Paulo; na UFSC, em Florianópolis; na PUC de Recife; na Universidade Metodista de Piracicaba; na UFMG, em Belo Horizonte e na Universidade de Taubaté, no Vale do Paraíba. Os eventos da UCBC foram descritos por Herbert de Souza, o Betinho, como o grande espaço de discussão de idéias democráticas sobre comunicação dos anos 80, num momento em que a repressão militar coibia a existência de outros espaços. A abertura do congresso aos estudantes de comunicação possibilitou um diálogo com a juventude, num momento em que entidades como a UNE estavam impedidas de se manifestar. Outra iniciativa na qual o professor Ismar envolveu-e nos anos 80 foi a criação do SEPAC – Serviço à Pastoral da Comunicação e sua consolidação através de assessorias a colégios e ONGs. O fato representou a difusão de algumas idéias defendidas pelo Professor, como o trabalho colaborativo inter-disciplinar e inter-institucional no campo da comunicação educativa. Entre os anos de 1984 e 1986, o Professor promoveu experiências voltadas a substituir as feiras de ciências por feiras de comunicação, unindo nesta atividade, grupos de colégios filiados à AEC – Associação de Educação Católica. Num dos colégios integrantes da iniciativa, mais de 60 grupos de estudantes, do fundamental ao terceiro colegial, foram formados, num trabalho que perdurou de março a outubro, permitindo uma análise circunstanciada de fenômeno comunicacional por uma parcela significativa dos alunos do 13

colégio, atividade que culminou numa feira, visitada por estudantes dos 15 colégios parceiros da iniciativa. Em cada um dos 15 colégios a atividade se repetiu, com as peculiaridades próprias de cada caso. A experiência deu suporte para duas outras propostas de trabalho: uma voltada para a produção de um programa de TV, envolvendo três instituições, hoje, como vimos, sob o comando do Colégio Arquidiocesano de São Paulo e outra voltada para a criação de uma rede de grupos de crianças e jovens “linkados” via Internet. Trata-se do CAAP – Communicatin Allies around the Planet, que hoje une escolas e ONGs da Índia, Estados Unidos, Venezuela, Argentina e Brasil. O propósito é fazer “educação para a comunicação” através do emprego e uso das tecnologias digitais. Um dos problemas que sempre preocupou o professor Ismar tem sido o da formação de especialistas no campo da educomunicação. Sua tese de que as tradicionais Faculdades de Comunicação e de Educação não têm conseguido operacionalizar uma formação adequada, necessitando-se, para tanto, de um projeto específico para cobrir o campo da inter-relação comunicação/educação foi defendida publicamente no Congresso da UCBC realizado em São Bernardo do Campo. Posteriormente, o professor Ismar voltou ao tema, em artigos para o jornal Folha de São Paulo e para as revistas Comunicação & Educação, Contato, bem como para Diálogos de la Comunicación, da FELAFACS. Elaborou, ao longo dos anos 90, dois projetos para a criação de uma Graduação em Comunicação e Educação. O insucesso destas iniciativas foi compensado pelo sucesso parcial em seu projeto de criação de um programa latino-americano em gestão de processos comunicacionais. A idéia de se ter na América Latina uma proposta de formação de especialistas em comunicação e educação foi apresentada inicialmente, pelo professor Ismar em Las Vertientes, Chile, em 1990, na qualidade de Presidente da UCLAP, durante o IV Seminário Latino-americano de Educação para a Comunicação. O diálogo envolveu o chefe do escritório da UNESCO em Quito, Alejandro Alfonso, assim como representes de organizações não governamentais e de universidades da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia e Chile. A proposta rediscutida, sucessivamente, em La Paz (Bolívia), Porto Alegre, Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) e Santiago (Chile), entre 1991 e 1995, acabou gerando o PLANGESCO – Programa Latinoamericano de Formaicón Superior en Planificación y Gestión de Procesos Comunicacinales. Cada país associaria uma organização não governamental e uma universidade para oferecer o curso, que contaria com uma equipe muldisciplinar e supranacional para implementar e acompanhar o projeto. Do projeto inicial restaram duas experiências bem sucedidas, a da Universidade La Plata em parceria com La Crujía, na 14

Argentina e do Departamento de Comunicações e Artes da ECA/USP, em São Paulo. O projeto do CCA/ECA/USP, já em sua oitava turma de alunos, conta com uma equipe coordenada pela Profª. Drª. Maria Aparecida Baccega e com oito professores regulares, entre os quais Otávio Iani, Maria Immacolata Vassalo Lopes e Luiz Roberto Alves. O curso mantém um núcleo temático dedicado à Comunicação/Educação, além de editar uma revista de circulação nacional dedicada ao mesmo tema. Em reunião recente, especialistas da COMPÓS classificaram a revista Comunicação & Educação, hoje em seu sétimo ano de circulação ininterrupta, entre os mais importantes veículos de difusão de pesquisa no campo da comunicação em nosso país. Nesta mesma linha, o professor Ismar associou-se à iniciativa do Senador Artur da Távola, no lançamento, a partir do Senado Federal, da Contato – Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação, hoje em seu sétimo número. As idéias defendidas pelo professor Ismar e sua equipe acabaram por serem incorporadas às conclusões de recente encontro intitulado Mídia e Educação (São Paulo, novembro de 1999), promovido pelo Ministério da Educação associado a diversas organizações de prestígio, como a Fundação Roberto Marinho e a Revista Imprensa, que acabou por assumir e legitimar o conceito de Educomunicação (reconhecido como designando um campo emergente), sugerindo que a formação do educomunicador seja assumida num esforço conjunto entre a sociedade e a universidades, especialmente aquelas que disponham de Cursos de Comunicação e de Educação. O tema da educomunicação foi defendido recentemente no exterior, em Toronto, em maio de 2000, em Tessalonika, Grécia, assim como em Roma, Itália, numa videoconferência que uniu estudantes da UPS – Università Pontificia Salesiana e a Unversità Católica de Milano, em março de 2001. No momento, a Universidade Anhembi Morumbi, de São Paulo, tem usado os resultados das pesquisas do Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP como fundamento na reestruturação de seu Mestrado em “Comunicação, Cultura e Educação”.

III. Marxismo e Cristianismo O professor Ismar revela em sua obra e em seu pensamento uma militância cristã bem definida, como pode ser observado nas obras de autores como Ralph dela Cave e Paula Monteiro (E o Verbo se fez Imagem, Vozes, 1990), David Silva (Cristianos en América Latina, Quito, Equador 1995) e Pesinatti. Trata-se de um envolvimento que aproxima as 15

idéias e projetos de Ismar das linhas defendidas no campo da teologia por um Hugo Hasmann, um Frei Beto, um Oscar Beozzo, um Leonardo Boff, e, no campo da educação, ao pensamento de Paulo Freire. Neste campo, observa-se certa radicalidade e uma dificuldade de conviver com correntes mais conservadoras do cristianismo. O episódio em torno da Rede Vida de Televisão é sintomático. Para o professor Ismar, a centralização quase familiar de uma programação, privilegiando o setor mais intimista do catolicismo, na linha devocional do que caracterizou a reforma do catolicismo no Brasil no início do século passado, poderia até ser justificável numa pequena emissora de rádio do interior, mas jamais poderia caracterizar a gestão de uma emissora de TV que pretende falar em nome do catolicismo no país. Para o professor Ismar, a emissora se esconde atrás do ritual religioso para fugir ao necessário diálogo com a sociedade. O fato garante um certa audiência interna, dos que se sentem seguros em verem suas visões e práticas religiosas confirmadas, mas afasta definitivamente os comprometidos com uma ação mais inserida, na linha defendida pelas pastorais sociais. Sobretudo, afasta a possibilidade de se criar espaços mais participativos e educomuncacionais onde as comunidades se expressem. Ismar concebe a educomunicação como uma ação carregada de intencionalidade política e de comprometimento social, voltada a criar ecossistemas educativos abertos, o que definitivamente não corresponde ao projeto da Rede Vida. Não se pode, contudo, afirmar que o professor Ismar seja herdeiro de uma tradição marxista. Nunca esteve filiado a qualquer organização ou partido de esquerda. A simpatia por autores marxistas ou pela leitura marxista da realidade prende-se exclusivamente à contribuição que alguns deles ofereceram para explicar a natureza das relações sociais, e o impulso que deram para o avanço de alguns projetos políticos com o da NOMIC – Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. Por outro lado, apoiando-me em Erich Fromm posso situar o professor Ismar como um representante do Humanismo Marxista. Fromm nos mostra o quanto Marx foi (e continua sendo) deturpado, tanto nos Estados Unidos quanto na Rússia. Para ele, um dos últimos grandes humanistas do século passado foi Marx. Ele fala de algumas idéias de Marx sobre o ser humano, que merecem ser lembradas, e que me remetem ao professor Ismar: Um ser não se considera independente a menos que seja seu próprio senhor, e só é seu senhor quando deve sua existência a si mesmo. O homem que vive pelo favor de outro se considera um ser dependente. Fromm frisa que embora Marx esteja em relação direta com Goethe e com os filósofos do Renascimento, talvez o que Marx enfatize mais que qualquer outro é a independência, o não dever a própria existência a ninguém, ou, para usar outra expressão freqüentemente empregada por ele, a “auto-atividade”. Nesse caso, “atividade” não significa 16

fazer algo, estar ocupado, mas sim o processo da produtividade interna, conceito este que é muito semelhante aos de Aristóteles e Spinoza. Marx o expressou, segundo Fromm, de outra maneira: Se você ama sem despertar amor em troca, se não é capaz, pela manifestação de si mesmo como pessoa que ama, de transformar-se em pessoa amada, seu amor é impotente, é uma infelicidade. Fromm lembra também que o humanismo socialista (marxista) apresenta dois elementos (que me remetem, novamente, ao professor Ismar):  sua visão do homem é de autonomia, sem um quadro de referência teísta; trata-se de um humanismo de luta, isto é, um humanismo político; é otimista, não por fé, mas por convicção;  o amor pelo próprio vizinho, a negação do egoísmo, a descoberta da felicidade no esforço em favor da felicidade dos outros (mas uma felicidade que se resume no estimular o homem ao cultivo de desejos que sejam verdadeiramente humanos, desejos que sejam os de um ser humano ativo, vivo e em desenvolvimento).(17) Bem, essas referências acima e tudo o mais que aprendi sobre Marx, com Erich Fromm, retratam, a meu ver o professor Ismar de Oliveira Soares, no seu dia a dia. É nesse sentido que aproximo seu pensamento educomunicacional do humanismo marxista. E é com orgulho que compartilho de suas idéias e do privilégio de ser sua discípula e amiga.

Notas bibliográficas (1) A tese foi orientada pelo Prof. Dr. José Marques de Melo e defendida junto ao programa de pós-graduação da ECA/USP, em dezembro de 1986. (2) SOARES, Ismar de Oliveira. Do Santo Ofício à Libertação. São Paulo: Paulinas, 1988, 378 p. (3) A dissertação de mestrado teve como título: “Morfologia e Conteúdo dos Boletins Diocesanos Católicos”. Foi orientada pelo Prof. Dr. José Marques de Melo e defendida em 1980. A tese deu origem a vários trabalhos, entre os quais o trabalho publicado pelo CELADEC, sob o título de Evangelización y Comunicación (CELADEC, Cuadernos de Estudio n. 10, Lima, Peru, 1980). (4) Merecem destaques os seminários latino-americanos promovidos pela UCLAP – Unión Católica Latinoamérica de Prensa - em Lima (Peru), Quito e Cumbaya (Equador) e Embu (São Paulo), sobre a Igreja e a nova ordem mundial da informação e comunicação. O encontro de Embu, em 1982, foi considerado pela UNESCO como um dos mais importantes seminários internacionais sobre o tema da NOMIC. (5) SOARES, Ismar de Oliveira. “Against violence: sensorial experiences involving light and sight. Media Education and educational technology form a Latin American point of view”. In Children and Media Image, Education and Participation. UNESCO/Götebord University, 1999, p 130-157. (6) The authors from Australia, Canada and Europe put more stress on the notion that media education shall lead to critical, independent and participating individuals, whereas the authors from India, Brazil and South Africa put more stress on the role of media education for liberation and development of the whole community, emphasizing, among other things, that democratization must mean social justice also for the opressed and marginalised groups in the community (FEILITZEN, Cecilia, “Media education, children’s participation and democracy”. In Children and Media Image, Education and Participation. UNESCO/Götebord University, 1999, p. 26). (7) Maiores informações sobre o congresso: http://www.eca.usp.br/nucleos/nce. 17

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VALDERRAMA, Carlos. “Indroducción”. In Comunicación-Educación, Coordinadas, Abordajes y Travesías, Bogotá, Universidad Central/DIUC, 2000, p. XVI-XVII. SOARES, Ismar de Oliveira. “Comunicação/Educação: a emergência de um novo campo e o perfil de seus profisisonais”. In Contato, Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação. Brasília: Ano I, N. 2, p. 19-72. Ver, também, SOARES, Ismar de Oliveira, “La Comunicación/Educación como nuevo campo de conocimiento”, in VALDERRAMA, Carlos Eduardo. Comunicación-Educación, Coordinadas, Abordajes y Travesías. Bogotá: Universidad Central, 2000, p. 27-47. SOARES, Ismar de Oliveira. “Educomunicação: um campo de mediações. In Comunicação & Educação. São Paulo: ECA/USP-Editora Segmento, Ano VII, set/dez. 2000, N. 19, p. 12-24. Ver também SOARES, Ismar de Oliveira, “Educomunicación: comunicación y tecnologías de la información en la reforma de la enseñanza americana”. In Diálogos da FELAFACS, Lima, Peru, octubre 2000, N. 59-60, p. 137152. SOARES, Ismar de Oliveira, “Educomunicação: as perspectivas do reconhecimento de um novo campo de intervenção social : o caso dos Estados Unidos”. In ECCOS – Revista Científica do Centro Universitário Nove de Julho, V. 2, N.2, dezembro de 2000, p. 61-80. SOARES, Ismar de Oliveira, Comunicação e Educação (Media Literacy e Information Literacy), a Experiência Americana, ECA/USP-FAPESP, Relatório final de pesquisa, julho de 2000. SEMALI, Ladislaus & PAILLIOTET, Ann Watts. Intermediality, The Teacher’s Handbook of Critical Media Literacy. Boulder, Co, Westview Press, 1999. Munido de uma “personalidade eletrônica”, o que interessa ao internauta – segundo PALLOFF & PRATT – é, basicamente, “viver a sensação da liberdade de fluxo de relações” garantida pela natureza do recurso tecnológico disponível. Pelo conceito de comunidade educativa virtual (virtual conscious community), defendida por estes autores, a Educação e a Comunicação aproximam-se definitivamente, alimentando a suspeita de que o crescimento da Internet e sua incrível popularidade têm provocado um significativo impacto na maneira como vivemos e construímos comunidades, no limiar do século XXI, e a partir das comunidades, a própria educação (PALLOFF & PRATT, Building Learning Communities in Cyberspace (San Francisco, Jossey-Bass Publishers, 1999, p. 120). The development of communicty becomes a parallel stream to the content being explored in online course (PALLOFF & PRAT:30). HOBBS, Renée. “The Seven Great Debates in the Media literacy Movement”. In International Communication Association, Journal of Communication, Winter, 1998: 17. FROMM, Erich. Da desobediência e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p.64-69.

__________________________ * Liana Gottlieb - Pedagoga, Psicodramatista, Mestre em Comunicação Social pela UMESP, Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, docente no Programa de PósGraduação Stricto Sensu em “Comunicação e Mercado” da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. E-mail – [email protected]

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