de cristiane sobral

November 30, 2016 | Author: Anonymous | Category: N/A
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publicando nos Cadernos Negros; possui peças teatrais, poesia e contos. ... objeto dos trejeitos culturais, deve-se visu...

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IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI ISBN: 978-85-8320-162-5

O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL Rita de Cássia Barros Assunção (FAI / SEMEDUC)1

RESUMO Não vou mais lavar os pratos de Cristiane Sobral constitui-se numa coletânea de poemas já publicados nos Cadernos Negros. A obra traz, em grande parte de seus poemas, a combinação da construção da identidade negra feminina com um discurso da resistência. Essa resistência é percebida, principalmente, quando a autora tematiza a condição feminina da mulher negra nas relações de gênero e nas relações com a sociedade. Objetivamos, nessa análise, averiguar como o eu enunciador, através de um discurso da resistência afrofeminino, constrói a identidade da mulher negra. Para essa análise, utilizaremos teóricos como Zygmunt Bauman (2004) Norman Fairclough (2001), entre outros estudiosos. O método a ser utilizado na análise será o críticoanalítico em que se tomará como suporte os conceitos de identidade de Bauman, as considerações acerca da construção do discurso de Fairclough, as formas de resistência negra e os problemas das relações de gênero na concepção de um eu enunciador subversivo em “Não vou mais lavar os pratos” de Cristiane Sobral no qual a autora busca desconstruir os modelos preconcebidos sobre a mulher negra na sociedade atual. Palavras-Chave: Cristiane Sobral. Discurso afrofeminino. Identidade Negra. ABSTRACT The colletion of poems Não vou mais lavar os pratos of Cristiane Sobral what gather poems already published in Cadernos Negros, brings, largely of your poems combine of construction feminine black identity with the discuss of the resistance. That resistance is realize, mainly, when the author discuss about feminine condition of the black woman in the gender relations and in relations with society. We aims, in this analysis, to determine like the I of the feminine black speech through of the resistance , like made the identity black woman. In this analysis, will use authors Zygmunt Bauman (2004) Norman Fairclough (2001), and others. The method used in the analysis is

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Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. Professora e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Produção e Divulgação Científica da Faculdade do Vale do Itapecuru – FAI. Coordenadora da área de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de Caxias. E-mail: [email protected]

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critical and analytical based in concept of the identity of the Buman, the concept about discuss of the Fairclough, the forms of the resistance and gender relations in the conception subversive broadcasters subject in Não vou mais lavar os pratos of Cristiane Sobral which author want deconstruct the conceptions about black woman. KEYWORDS: Cristiane Sobral. Feminine black speech. Black Identity.

1 INTRODUÇÃO Cristiane Sobral, atriz, escritora e poeta brasileira, estreou na literatura em 2000 publicando nos Cadernos Negros; possui peças teatrais, poesia e contos. No seu percurso de formação acadêmica e literária, foi a primeira mulher negra a ganhar o título acadêmico em Interpretação Teatral na Universidade de Brasília. Em Não vou mais lavar os pratos (2011), primeiro livro publicado da autora, há a consolidação de suas vertentes ideológicas e de suas políticas sociais engajadas no qual se exprime principalmente como mulher negra. A obra, que traz no cerne do título o caráter da negação e da resistência aos padrões socialmente e esteticamente impostos às mulheres negras, apresenta a concepção de Sobral a respeito da necessidade de se firmar uma identidade negra e de se fazer reconhecer como negro ou negra. Esse compromisso assumido pela autora e transformado em bandeira de luta é manifestado em muitos poemas do livro como “Não vou mais lavar os pratos”, “Fratricídio”, “Pixaim Elétrico”, “Escova Progressiva”, “Cuidado”, “Lente de Contato” entre outros. Nesses poemas, a autora discute temas relacionados ao cotidiano como a condição da mulher, as relações de gênero e a afrodescendência direcionados intencionalmente à problematização da raça. A literatura de Sobral, nessa obra, apresenta-se investida, sobretudo, de compromisso social tratando de assuntos concernentes à mulher negra, ao preconceito com o negro, enfim, uma preocupação com a construção de uma identidade negra autêntica e sem máscaras. Entretanto, para se compreender a necessidade de se fazer uma literatura negra que dê visibilidade ao negro enquanto sujeito e não enquanto objeto dos trejeitos culturais, deve-se visualizar a Literatura Brasileira como um todo para se perceber como a mulher negra foi representada e cercada de estereotipias.

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2 A MULHER NEGRA NA LITERATURA BRASILEIRA Quando se fala na condição ou na forma como a mulher negra é ou foi representada na literatura, há que se pensar em duas vertentes: na mulher negra enquanto personagem e enquanto escritora. Enquanto personagem, em grande parte dos textos literários escritos por homens desde os primórdios da literatura brasileira, a mulher negra, oriunda da diáspora africana, aparece representada sob a égide de uma visão estereotipada e reificada do homem branco de visão eurocêntrica: “branca para casar, preta para trabalhar, mulata para fornicar”. Segundo Eduardo Assis Duarte [essa] doxa patriarcal herdada dos tempos coloniais inscreve a figura da mulher presente no imaginário masculino brasileiro e a repassa à ficção e à poesia de inúmeros autores. Expressa na condição de dito popular, a sentença ganha foros de veredicto e se recobre daquela autoridade vinculada a um saber que parece provir diretamente da natureza das coisas e do mundo, nunca de uma ordenação social e cultural traduzida em discurso (2009, p. 6).

Assim, vítima dessa visão estigmatizada, a mulata, povoou o imaginário masculino, social e literário como lasciva, erótica, sensual sendo associada à ideia de “animal erótico por excelência, desprovida de razão ou sensibilidade mais acuradas, confinada ao império dos sentidos e às artimanhas e trejeitos da sedução” (DUARTE, 2009, p. 6). Contudo, ao lado dessa concepção em relação à mulata, impera um paradoxo de cunho biológico: a infertilidade. Depreende-se, nesse sentido, que ela está disponível para o prazer carnal, mas não para a maternidade. Assis Duarte em seu artigo “Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade” publicado na Revista Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários (2009), demonstra que do Barroco ao século XX a literatura canônica a marcou com o signo da sexualidade e da esterilidade. Apesar de ganharem mais versos que as senhoras e donzelas brancas como comprovou Assis Duarte, as mulheres de peles morenas dos poemas de Gregório de Matos são representadas por uma “semântica erótica que fazem cintilar as fantasias sexuais do homem branco. Ao longo de centenas de textos, o poeta enfatiza essa redução à esfera carnal ao vincular a mulher afrodescendente ao desregramento e à

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promiscuidade. E o faz submetendo muitas vezes tais personagens a um vocabulário chulo, em que o corpo e a intimidade femininos surgem inscritos no mais baixo calão. As opções verbais, próximas até do grotesco, expressam os part pris norteadores da perspectiva autoral, voltada para a desumanização que opõe “cor” a “entendimento”. Sem este último, e sem um código de conduta que ao menos a aproxime da sociabilidade ostentada pela mulher da classe senhorial, a escrava é reduzida a signo cujo sentido permanece prisioneiro de um discurso em que racismo e sexismo se emparelham em definitivo e remetem a uma organização social em que o modo de produção escravista dá o tom dos valores e comportamentos (DUARTE, 2009, p. 7).

No século XIX, apesar de todo o romantismo de nossos poetas e romancistas, o estereótipo da mulher negra continua, reforçado, agora, pelo tráfico negreiro e pela chegada da Corte Portuguesa ao Brasil que trazia a supremacia da dominação branca e europeia. Duarte menciona que em Alencar, por exemplo, permanece a visão etnocêntrica e dicotômica que divide as mulheres em “anjos louros” e “morenas ardentes” (2009, p. 8). Em O Cortiço de Aluísio de Azevedo, sem barreiras e sem limites, o sensualismo da mulata surge desenfreadamente encarnado na figura de Rita Baiana. Segundo Duarte Eros e thanatos se associam em sua composição dramática, fazendo-a se destacar pelos “meneios” de uma “graça irresistível, simples, primitiva”, que dão destaque à sexualidade animalesca pela qual o signo da serpente se inscreve na cadeia semântica da mulher (2009, p. 9).

Na representação de Rita Baiana, mulata avassaladora dos corações dos pais de família, o autor cristaliza as imagens de erotismo e de infertilidade da mulher negra. Isso comprova, segundo Duarte, que “O Cortiço alia o preconceito incrustado historicamente com o pensamento hegemônico em seu tempo, que celebrava o mito da hierarquia entre as raças” (2009, p. 10). No século XX, esse paradigma também se repete. O pesquisador destaca as mulatas das obras de Jorge Amado como Gabriela, cravo e canela, Teresa Batista, Tieta do Agreste entre outras e também as personagens representadas por Guimarães Rosa no conto “a estória de Lélio e Lina” de Corpo de Baile. Nesse itinerário, vê-se que a construção da imagem da mulher negra resvala no universo dicotômico e excludente da hegemonia masculina e branca. Compreende-se,

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portanto, no limiar dessas representações que a literatura considerada canônica nesses séculos, esteve a serviço do apagamento da contribuição africana para a formação da sociedade brasileira. Em contraposição a esse cenário embrutecido pelas amarras sociais, lânguido e grotesco aos olhos dos afrodescendentes, manifesta-se, ainda no século XIX, uma voz de desconstrução desse estereótipo, Luís Gama, em Trovas burlescas de Getulino de 1859. Duarte destaca que esse autor “dá à mulher negra outra configuração, a que não faltam beleza física, encanto e simpatia” (2009, p. 13). Para o pesquisador, a afroidentificação do poeta leva à mulher negra a figurar no plano lírico-amoroso isento de erotismo vulgar e estéril. Machado de Assis é outra voz que soa contra o preconceito e o erotismo vulgar de poetas e romancistas disseminadores desse modelo. Como cita Duarte, no poema “Sabina” e no conto “Pai contra mãe”, Machado de Assis problematiza a situação escravagista que perdura na sociedade e que impõe aos negros à subordinação ao senhor. Seus textos também se apresentam livres da visão reducionista e sexista que condena a mulher negra. Dois autores ainda podem ser citados: Lima Barreto e Solano Trindade. O primeiro, em meados do século XX, diferentemente dos supracitados autores de visão racista e sexista, aborda o relacionamento inter-racial de forma respeitosa e humanizada como se pode comprovar no conto “Clara dos Anjos”. O segundo, também na esteira dos compadecidos e incomodados com a situação e o tratamento dado às mulheres negras, sua poesia é marcada principalmente pela crítica e denúncia social. Toda essa representação da mulher negra fabricada e cristalizada na literatura brasileira através da ótica masculina está sendo desconstruída através de um compromisso sociopolítico e ideológico compartilhado por mulheres negras e escritoras. Essa desconstrução de paradigmas e a construção de uma identidade afrofeminina através da literatura tornam-se possíveis graças à publicação dos Cadernos Negros e à organização do grupo Quilombhoje que dá visibilidade literária a autores e autoras negros marginalizados dentre eles Conceição Evaristo, Mirian Alves, Lia Vieira, Esmeralda Ribeiro, Cristiane Sobral e tantas outras mais. Essas mulheres negras, agora sujeitos de sua própria história, agora com um olhar feminino afroidentificado e não mais com a ótica masculina, podem problematizar, no texto literário, diversos temas que incidem sobre a condição da mulher negra na sociedade, destacando, sobretudo, a luta e 5

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a resistência dela. E de forma positiva e não mais negativa, discutem a sexualidade feminina sem tabus nem preconceitos, o prazer da maternidade tão inerente à condição de ser mulher, as relações de gênero, o erotismo e a africanidade. Promulgam, nesse contexto, a liberdade de expressão, a crítica e a autoafirmação. Nas palavras de Ana Rita Santiago, Escritores negros não apenas apropriam-se da palavra poética para (des)contar o passado histórico de negros. Eles utilizam a LN [Literatura Negra] também para provocar a sociedade brasileira quanto às relações étnicorraciais; para afirmar que a lógica do consumo, que sustenta os postulados e negócios da sociedade do espetáculo, define a comercialização de identidades negras, a partir de uma exposição, por vezes, unificadora e estereotipada, de elementos e vivências culturais homogêneas, fixas e sem dinamismo, inerente aos entrecruzamentos da vida em trânsito (2012, p. 141).

Com esse perfil de autoafirmação, de afroidentificação e da construção de um discurso engajado com a africanidade, destacamos Cristiane Sobral com o livro Não vou mais lavar os pratos, cuja análise, veremos a seguir. 3 O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL O discurso afrofeminino de Cristiane Sobral se consolida em muitos poemas do livro Não vou mais lavar os pratos, entretanto, daremos enfoque à apenas alguns deles como o poema que dá título ao livro “Não vou mais lavar os pratos”, “Lente de Contato”, “Cuidado”, “Escova Progressiva”, “Fratricídio” e “Pixaim elétrico”. “Não vou mais lavar os pratos” é um dos poemas mais representativos do grito de liberdade da mulher nas relações de gênero que a autora ressalta no livro. O poema revela a mudança de atitude da mulher em relação ao companheiro a partir do momento em que passa a tomar consciência de seu papel na relação e na sociedade através da leitura: Não vou mais lavar os pratos Nem vou limpar as poeiras dos móveis Sinto muito. Comecei a ler. Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi Não levo mais o lixo para a lixeira. Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal

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Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos, A estética dos traços, a ética, [...] (SOBRAL, 2011, p. 23)

A leitura, para o eu enunciador, consubstancia-se na via de libertação e de resistência aos discursos instituídos por uma sociedade de valores falocêntricos e brancos que destinam o espaço doméstico exclusivamente para a mulher. Tomemos nota ainda, que o título do poema também remete, em primeira instância, a uma posição social a que a mulher negra, durante muito tempo, esteve submetida – o trabalho doméstico. O trabalho, que era executado mecanicamente, passa ser objeto de reflexão filosófica quando o enunciador do discurso destaca ter percebido “a estética dos pratos, a estética dos traços” e, por fim, “a ética”. Com essa percepção filosófica, o discurso do texto transforma-se em um discurso da resistência e também da construção de uma identidade de gênero, uma vez que o relacionamento com o companheiro passa a ser questionado e a ser negado nas condições em que se apresenta. Agora que comecei a ler, quero entender O porquê, por quê? E o porquê Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorrir E deixei o feijão queimar... Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto Considere que os tempos agora são outros... (SOBRAL, 2011, p. 23)

Para Fairclough, a mudança envolve formas de transgressão, o cruzamento de fronteiras, tais como a reunião de convenções existentes em novas combinações (2001, p. 127). Nesse sentido, o eu lírico do poema subverte as convenções maritais e domésticas com ações transgressoras como deixar o feijão queimar para se fazer perceber pelo outro e se fazer ouvir numa tentativa de questionar os padrões préestabelecidos. No trecho, Resolvi ficar um tempo comigo Resolvi ler sobre o que se passa conosco Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi, Você foi o que passou Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto Desalfabetizou Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá para cá Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis (SOBRAL, 2011, p. 24).

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O questionamento das relações de gênero confirma o que é dito por Fairclough, pois o eu lírico cruza as fronteiras do seu relacionamento e busca construir uma identidade de gênero através do discurso da negação e da resistência. Manuel Castells em O poder da identidade (1999, p. 24) se refere a três formas e origens da construção de identidades: a identidade legitimadora introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação como ocorre com os estereótipos; a identidade de resistência criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação construindo assim, trincheiras de resistência e de sobrevivência e a identidade de projeto que é produzida quando os atores sociais constroem uma identidade capaz de redefinir uma posição na sociedade como é o caso do feminismo. Nesse poema de Sobral, pode-se perceber a ocorrência desses três tipos de identidade: antes de ler e de pensar sobre seu papel na sociedade, o eu lírico legitimava sua identidade como mulher presa a convenções sociais; após começar a ler, toma consciência dessa dominação e passa a resistir através da transgressão; com um discurso da resistência produz uma identidade de projeto quando diz: Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar Meu tênis do seu sapato, Minha gaveta das suas gravatas Meu perfume do seu cheiro Minha tela da sua moldura Sendo assim, não lavo mais nada, E olho a sujeira no fundo do copo. Sempre chega o momento De sacudir, de investir, de traduzir Não lavo mais pratos Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo, Em letras tamanho 18, espaço duplo (SOBRAL, 2011, p. 24).

Além do poema “Não vou mais lavar os pratos” que tematicamente trata das relações de gênero, há no livro outros poemas que também consubstanciam um discurso da resistência voltado mais especificamente para a construção de uma identidade de mulher reconhecidamente negra. É o que se pode perceber nos seguintes poemas: Lente de Contato

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[...] Sou negra Estou aqui diante dos seus olhos Esperando você despir o seu preconceito, Pra gente encontrar um jeito de ser feliz Ah, o meu cabelo natural, isento de culpa, Vai bem obrigada [..] (SOBRAL , 2011, p. 71) Cuidado Eu vou falar do nosso cabelo Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso Eu vou falar porque isso acaba com a gente Primeiro aparecem uns pentes frágeis Impossíveis às nossas madeixas Depois apontam para um padrão que nunca poderemos ter Ficamos condenados à indiferença e à exclusão (Sobral, 2011, p. 74). [...]

Nos poemas “Lente de contato” e “Cuidado”, o eu lírico ao se assumir como mulher negra, toma o seu cabelo, um dos principais ícones da negritude e também um dos principais alvos de bullying e de preconceito na sociedade, como cetro, como representação maior da reversão de valores impelidos ao cabelo do negro. Reforçando o caráter positivo do seu cabelo como marca de identidade afrofeminina, o eu lírico critica o padrão de beleza impelido às mulheres que não possuem cabelos lisos. A enunciação do texto revela a postura político-identitária assumida por Sobral em disseminar a ideia de que é preciso combater o preconceito e fugir das amarras sociais provedoras da indiferença e da exclusão. O cabelo afro, para a autora, é símbolo de resistência identitária e resistência cultural. A citação de Bauman, no que concerne à construção de identidade negra da mulher, endossa o discurso afrofeminino de Sobral: a identidade escolhida e preferida é contraposta, principalmente, às obstinadas sobras das identidades antigas, abandonadas e abominadas, escolhidas ou impostas no passado. As pressões de outras identidades, maquinadas e impostas (estereótipos, estigmas, rótulos), promovidas por forças inimigas, são enfrentadas e – caso se vença a batalha – repelidas (2005, p. 45).

No poema “Escova progressiva”, e “Pixaim elétrico”, novamente é o cabelo o elemento identitário. Em “Escova progressiva”, parodiando o poema “Poética” de Manuel Bandeira, a autora solta um grito de protesto contra os processos de alisamento químico que nada mais são do que identidades impelidas como menciona Bauman

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(2005). E, na contramão dessa pressão social, a autora reivindica para si o cabelo pixaim como marca de enfretamento e de empoderamento da mulher negra. Com isso, reafirma sua negritude, conforme se vê nos poemas abaixo: Escova Progressiva Se a raiz é agressiva Escova progressiva [...] Eu tenho medo do formol [...] Abaixo a chapinha No cabelo da neguinha (SOBRAL, 2011, p. 88) Pixaim elétrico Naquele dia meu pixaim elétrico gritava alto Provocava sem alisar ninguém Meu cabelo estava cheio de si [...] Soltei os grampos e segui, de cara pro vento, bem desaforada Sem esconder volumes nem negar raízes (SOBRAL, 2011, p. 81)

Chama à atenção que, de forma bem contemporânea, os versos sobralinos se encontram com um universo bastante comum a todas as mulheres e jovens em formação identitária – o universo da moda. Nesse sentido, percebemos que, de certa forma, esses poemas podem cumprir uma função social e pedagógica ao atingir um público-leitor considerável, principalmente se for utilizado nas escolas. No poema abaixo, vê-se fortemente o discurso de pertencimento do eu lírico à africanidade e, como a grande maioria daqueles que se declaram negros, também condena a mestiçagem como forma de burlar a negritude. Nos versos “o mestiço não é nem o sim nem o não, é o talvez / Mentira!” / “meu sangue negro corrói a hipocrisia parda”, confirma-se o posicionamento do eu lírico em condenar essa denominação “parda” que alguns negros tomam para si ao invés de se autoidentificarem como negros. Fratricídio Corrupção preta dói demais [...] Separe todos os matizes da negritude brasileira Desintegre todas as identidades

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[...] O mestiço não é nem o sim nem o não, é o talvez Mentira! Sou negra Meus dentes brancos trituram qualquer privilégio retinto Meu sangue negro corrói a hipocrisia parda Mela o mito da democracia racial (Sobral, 2011, p. 72)

A problematização da questão racial nesse poema é demasiadamente interessante porque, de um ponto de vista bem social, condena a negação da negritude ao mesmo tempo em que nega também o mito da democracia racial disseminado por Gilberto Freyre. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Cristiane Sobral em Não vou mais lavar os pratos proclama o compromisso sociopolítico e histórico de produzir uma literatura afrodescendente em que o eu lírico assume a postura de pertencimento e de construção de uma identidade de mulher negra. Na construção desse projeto, Sobral utiliza uma linguagem feminina generificada para falar de seus desejos ou angústias de mulher e um discurso instituinte da africanidade, principalmente empenhado na desconstrução de valores africanos estereotipados disseminados como pejorativos pelo discurso hegemônico. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. 2. ed. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999. DUARTE, Eduardo Assis. Mulheres marcadas: Literatura, gênero, etnicidade. In: CORRÊA, Alamir Aquino (org.). Terra Roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários. Vol. 17-A. dez2009. Disponível em: httpp://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol17A/TRvol17Asum.pdf. Acesso: 27/12/2015. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

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SANTIAGO, Ana Rita. Vozes Literárias de Escritoras Negras. Cruz das Almas: UFRB, 2012 SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. 2.ed. Coleção Oi Poema. Dulcina Editora: Brasília, 2011.

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