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April 4, 2017 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas eu de cor fusca. Era livre, minha mãe era escrava. Eram casados e des...

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IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI ISBN: 978-85-8320-162-5

AS MARCAS DA ESCRITA AFRODESCENDENTE NO CONTO “A ESCRAVA”, DE MARIA FIRMINA DOS REIS Ana Luiza Francelino Lima (UESPI) Professora Mestranda Ana Carusa Pires Araujo (UESPI) RESUMO O conto “A escrava”, de Maria Firmina dos Reis, publicado em 1887, é uma importante obra da literatura afro-brasileira que retrata a situação do escravo no Brasil no auge da campanha abolicionista. É possível observar, através do conto citado, uma visão diferente e humanitária do negro, que até então, era descrito de forma estereotipada e incoerente com a realidade. Esta visão deve-se ao fato de a autora colocar-se no lugar do outro, de defender a causa do afrodescendente, de tratar de temas concernentes à escravidão e ao preconceito racial, observando de perto, com visão privilegiada dos fatos, o drama e a vida dos escravos, apresentando as marcas da afrodescendência na fala dos seus personagens, pois “o sujeito negro do discurso enraíza-se, geralmente, no arsenal de memória do escritor negro” (CUTI, 2010, p. 89). Partindo desse pressuposto, este trabalho tem como objetivo analisar a narrativa acima, com o propósito de identificar as marcas da escrita afrodescendente de Maria Firmina, pois diferentemente de outras obras, temos, no conto, o negro na visão de outro negro e não na de um “branco”, como ocorreu e ainda ocorre em outros textos. Tomaremos como base os estudos realizados pelos estudiosos Eduardo de Assis Duarte (2005), Luiza Lobo (2011), Cuti (2010), Frantz Fanon (2008), Moraes Filho (1975), Mott (2008), entre outros. Palavras-chave: Escrita afrodescendente. A Escrava. Literatura afro-brasileira.

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Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense, a qual foi a primeira romancista brasileira, nasceu em São Luís do Maranhão em 11 de outubro de 1825. Em pleno auge da campanha abolicionista, em 1887, publicou o conto “A escrava”, que retrata a situação do escravo no Brasil e coloca-se a favor da abolição, denunciando a forma como os escravos eram tratados e humanizando a figura do negro. O diferencial do conto é a quebra dos estereótipos dados ao negro na sociedade e em obras canônicas da época. Mulata e bastarda, vivendo em uma época onde a segregação racial e social era extrema, a autora sofreu na própria pele o preconceito e as más condições de vida a que eram submetidos os afrodescendentes. Por isso suas obras são marcadas pela “escrevivência”. Este trabalho se propõe a analisar a narrativa de Maria Firmina no conto citado acima, buscando identificar as marcas da escrita afrodescendente da escritora e os aspectos que a diferenciam de outras escritas e obras que tem o negro na visão de um branco, bem como apontar possíveis elementos memorialísticos enraizados na memória da escritora que aparecem nos discursos dos personagens. Para tal, fizemos um estudo bibliográfico, recorrendo aos estudiosos da literatura afro-brasileira: Frantz Fanon (2008), Cuti (2010), Eduardo de Assis Duarte (2005; 2013), Lobo (2011) Moraes Filho (1975), dentre outros.O trabalho de pesquisa é de cunho analítico-qualitativa e foi desenvolvido com base nos pressupostos teóricos. Ressalta-se que o corpus analisado foi retirado do estudo do historiador maranhense José Nascimento de Moraes Filho, sendo que, somente no ano de 1975, a obra foi recuperada pelo mesmo. Ele apresentou um trabalho minucioso da biografia e obra literária da autora em questão, que foi intitulado Maria Firmina – fragmentos de uma vida. O conto “A escrava” é narrado por uma senhora “branca”, que defende a abolição da escravatura no Brasil, argumentando o atraso que esta prática traz para o país em relação às outras nações livres. Ela relata a triste história de uma pobre escrava, Joana, a qual enlouquece depois de ter os dois filhos gêmeos de oito anos vendidos por seu senhor para um traficante de órgãos humanos. As duas se conhecem após Joana fugir e ser perseguida por um capataz. A senhora, cujo nome não aparece no conto, compadece-se dela e de seu filho, Gabriel. Joana ficou órfã ainda muito pequena e foi escravizada e torturada. Após narrar a sua história, e já bastante abatida e cansada por

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tudo o que já sofrera, a escrava morre. Depois disso, a senhora passa a guardar Gabriel e protegê-lo contra o cruel senhor, declarando-lhe, ao final do conto, alforriado. É notório, além do caráter abolicionista, que a figura do negro é descrita de uma forma humanitária, diferente da forma habitual, sem estereótipos ou características imagináveis. A narradora descreve-o de modo a compadecer-se dele e de sua dor. Apesar do medo inicial que a domina ao ver pela primeira vez Gabriel, o qual estava à procura da mãe, ela consegue enxergar além das aparências uma pessoa de bom coração: Era quase uma ofensa ao pudor fixar a vista sobre aquele infeliz, cujo corpo seminu mostrava-se coberto de recentes cicatrizes; entretanto sua fisionomia era franca, e agradável. O rosto negro, e descarnado; suposto seu juvenil aspecto aljofarado de copioso suor, seus membros alquebrados de cansaço, seus olhos rasgados, ora lânguidos pela comoção de angústia que se lhe pintava na fronte, ora deferindo luz errante, e trêmula, agitada, e incerta traduzindo a excitação e o terror, tinham um quê de altamente interessante. No fundo do coração daquele pobre rapaz, devia haver rasgos de amor, e generosidade. (REIS, 2004, p. 247)

Essa característica de se colocar no lugar do outro (negro) revela-nos a identidade de Maria Firmina como alguém que não escreve apenas o que vê, mas o que sente e vivencia. E é esse pertencimento da autora que diferencia o conto “A escrava” de outras obras da época, as quais defendiam o abolicionismo apenas em tese e relatavam coisas inverossímeis, bem diferentes da realidade, como é o caso de A escrava Isaura (1875), de Bernardo de Guimarães e O mulato (1881), de Aluísio de Azevedo. Para Frantz Fanon (2008, p.58) “toda experiência, sobretudo quando ela se revela infecunda, deve entrar na composição do real, e, por esse meio, ocupar um lugar na reestruturação desse real”. Por esse motivo, ao descrever, no conto, os fatos de forma realista, Reis contribui para que os estereótipos e falsas características associadas aos negros desapareçam e que o mesmo possa adquirir uma expressão autêntica de sua identidade. Maria Firmina apresenta as marcas de sua afrodescendência, sobretudo, na fala de seus personagens, pois segundo Cuti (2010) o sujeito negro do discurso é enraizado na memória e nas impressões do sujeito negro que escreve.

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– Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas eu de cor fusca. Era livre, minha mãe era escrava. Eram casados e desse matrimônio, nasci eu. Para minorar os castigos que este homem cruel infligia diariamente à minha pobre mãe, meu pai quase consumia seus dias ajudando-a nas suas desmedidas tarefas; mas ainda assim, redobrando o trabalho, conseguiu um fundo de reserva em meu benefício. (REIS, 2004, p. 254).

Lobo (2011, p. 119) afirma que “uma das maiores originalidades da obra de Maria Firmina é revelar o escravo à luz realista”. Podemos definir como uma das marcas características de sua escrita a sensibilidade no trato com os personagens. Sensibilidade esta que nos transporta ao sofrimento que ela própria experimentava em seu cotidiano. De repente uns gritos lastimosos, uns soluços angustiados feriram-me os ouvidos, e uma mulher correndo, e em completo desalinho passou por diante de mim, e como uma sombra desapareceu. [...]Surpresa com a aparição daquela mulher, que parecia foragida, daquela mulher que um minuto antes quebrara a solidão com seus ais lamentosos, com gemidos magoados, com gritos de suprema angústia [...]Ia procurá-la – coitada! Uma palavra de animação, um socorro, algum serviço, lembrei-me, poderia prestar-lhe. (REIS, 2004, p. 243-244)

Por outro lado, enquanto ao negro é dado um caráter humanitário, Reis atribui ao branco características animalescas, tratando-o como um feroz, sem coração e sem nome: em todo o conto são nomeados apenas os personagens negros, como forma de inverter os papéis. Essa diferença no trato entre negros e brancos acontece porque “o negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco.” (FANON, 2008, p. 33). Um homem apeou-se a porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres filhos – era um traficante de carne humana. Este abjeto, e sem coração! Homem a quem as lágrimas de uma mãe não podem comover, nem comovem os soluços do inocente. Esse homem trocou ligeiras palavras com meu senhor, e saiu. [...] Senti palpitar desordenadamente meu coração; lembrei-me do traficante... Corri para meus filhos, que dormiam, apertei-os ao coração. Então senti um zumbido nos ouvidos, fugindo-me a luz dos olhos e creio que perdi os sentidos. (REIS, 2004, p. 256).

As situações retratadas em “A escrava” eram experiências pessoais, que Maria Firmina sentia na pele. A escravidão não foi algo distante de sua vida, ao contrário, foi algo que ela vivenciou. E vivenciou como mulata livre, porém pobre, que sofria

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preconceito pela sua condição racial, social, pela sua condição de mulher e, mais ainda, de mulher escritora.“Ela insere em toda a sua obra preciosos aspectos antropológicos que permitem ver a existência do escravo no seu aspecto real, sob a violência e o julgo de senhores e feitores que agiam sob o amparo das leis.” (LOBO, 2011, p. 119). Concluindo, destacamos que a escrita de Maria Firmina dos Reis no conto analisado é marcada por posicionamentos ideológicos contra a escravidão e a favor da humanização do escravo (negro). Isso se deve ao fato de a autora basear a sua escrita em sua própria vivência, colocando o negro como sujeito do discurso que assume a sua identidade. Sem dúvida alguma, Maria Firmina foi e continua sendo muito importante para a literatura afro-brasileira e nacional, pois assumiu de forma corajosa a sua condição de afrodescendente, ao utilizar sua escrita para denunciar os maus tratos sofridos pelos escravos e para valorizar a figura do negro, tão deturpada até então, de uma forma sensível e complacente.

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REFERÊNCIAS CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afro-descendência. In: Literatura, política e identidade: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005. _____. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: FERREIRA, E; FILHO, F. J. B. (Org.) Literatura, História e Cultura afro-brasileira e africana: memória, identidade, ensino e construções literárias. Teresina: Editora da UFPI; Fundação Universidade Estadual do Piauí, 2013. p. 27-48. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. LOBO, Luiza. Maria Firmina dos Reis. In: DUARTE, E. de Assis. (Org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 111-125. MORAES FILHO, José Nascimento de. Maria Firmina, fragmentos de uma vida. São Luís: Governo do Estado do Maranhão, 1975. REIS, Maria Firmina dos. A escrava. Atualização do texto e posfácio de Eduardo de Assis Duarte. Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. p. 241-279.

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