EDNEI DE SANTANA PEREIRA. IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia ( )

July 25, 2017 | Author: Bernadete da Fonseca Custódio | Category: N/A
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1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I- SALVADOR PROGRAMA DE PÓS-...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I- SALVADOR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

EDNEI DE SANTANA PEREIRA

IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972)

Salvador 2014

EDNEI DE SANTANA PEREIRA

IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972)

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de mestre em estudos de linguagens pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens - PPGEL sob a orientação da Profª Drª Lícia Soares de Souza.

Salvador 2014

EDNEI DE SANTANA PEREIRA

IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem da Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Estudos de Linguagens, em ___ de março de 2014. Banca Examinadora __________________________________________________ Profª. Drª. Marize Berta de Souza Doutora em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia

___________________________________________________ Profª. Drª Sayonara Amaral de Oliveira Doutora em Letras, Universidade Federal da Bahia Universidade do Estado da Bahia

__________________________________________________ Profª. Drª Lícia Soares de Souza Doutora em Semiologia, Université Du Quebec Universidade do Estado da Bahia

“Eu me desperto Nessa cor que me conheço Que é só o perto E na sala de espera a televisão óculos escuros da minha noite me fala das cores de dia o jornal meu guia espacial e os mínimos detalhes e o noticiário me deixa em contato com os olhos do astronauta eu ando certo muito certo perto “. Se eu quiser, eu compro flores (Moraes Moreira, Galvão)

A Kayodê, aquele que traz felicidade, o único motivo de eu ter insistido.

AGRADECIMENTOS

Nasci em 1969 no meio dos acontecimentos que relato neste trabalho. Por esse motivo improvável, talvez, é que o acaso tenha conspirado para que eu apresentasse personagens de uma história tão singular como a que será vista aqui. O meu trajeto tem sido escrito de forma tortuosa, do mesmo modo como foi o dos que construíram esse momento da cultura da Bahia. Entretanto, como eles, é melhor reclamar pouco, agir mais e curtir os bons frutos que esta experiência tem me trazido, pois nós somos o resultado de um conjunto de imprevistos e condições históricas; não de erros, nem de acertos. Os caras que transformaram a Bahia em um ambiente de muita curtição e rebeldia, revertendo procela em brisa, decompondo precariedade em arte, chicote em serpentina, têm aqui a minha (ir)reverência. Reverencio também aqueles que participaram de alguma forma desse meu percurso. O agradecimento é uma forma de reconhecimento, afinal a ausência desse último constitui-se na base dos conflitos interpessoais e sociais, segundo Axel Honneth. Agradeço primeiramente a quem me colocou neste mundo naquele período: Neusa e Elísio – gente forte e sábia do Recôncavo – que souberam me dar régua, compasso e me fazer valorizar a vida acima de tudo. Agradeço também aos meus irmãos Marcos, Neuma e Márcio por sempre darem uma mãozinha e pelo carinho. Ao meu irmão Jair Batista por sempre me lembrar qual é o sentido da palavra amizade. A Tainá pela paciência e sacrifícios. E aos amigos João Sátiro por me fazer entender os motivos da demora, Gisele Oliveira pelos diálogos e puxões de orelha e Thiara de Filippo por sempre acreditar que era possível. Faço um agradecimento especial ao colega e amigo Jorge Augusto que me colocou para cima quando eu estava no chão (nunca vou esquecer, meu velho!!). Agradeço à Selene Rúbia por ter me devolvido a este itinerário. Sou grato aos professores Washington Drummond pelo incentivo e Messias Bandeira pela disponibilidade (valeu, man!). Um agradecimento especial à Professora Lícia Soares pelo acolhimento, pela leveza e pela compreensão – pessoa que eu gostaria de ter convivido mais tempo durante o curso. Um abraço fraterno ao professor Umbelino Brasil a quem eu sou grato pelas lições de cinema, pelas correções e sugestões e principalmente pela inspiração – sem ele, o cinema não seria parte de meus estudos. Agradeço pela confiança e orientações ao tempo em que peço desculpas pela frustração aos professores Linda Rubim, Paulo Miguez e Maria do Socorro Carvalho esta última minha referência em estudos sobre Cinema Brasileiro e Cinema Baiano. Agradeço aos camaradas da APS-BA que me movem diariamente a lutar pelo o que exige a maioria da população, com ética, radicalidade e ternura. O lema daquela Organização me

manteve na trilha: ousando lutar, se vence. Ao pessoal do COP e em particular à Ednaldo Andrade por toda a ajuda e compreensão, bem como ao pessoal da UFBA, Nita, Socorro, Liliane Sandra e ao Professor Luiz Rogério Bastos Leal, pelo aprendizado nesse último ano de intenso e gratificante trabalho. Agradeço ao PPGEL especialmente às professoras Verbena, Sayonara e Rosa Blanco e ao professor Sílvio Roberto pelos conselhos e ótimas aulas. Agradeço também aos colegas da Linha 1 do Programa pela convivência. Sou grato também aos loucos e anjos André Luiz Oliveira e José Umberto Dias pelos papos e principalmente pela obras. Finalmente agradeço também a Sérgio Maciel e ao professor Renato da Silveira pelas entrevistas. Dedico em memória esse trabalho a Álvaro Guimarães a quem não tive tempo de trocar umas ideias.

RESUMO

O presente trabalho analisa e relaciona a contracultura e o Cinema Marginal ocorridos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972. Desta forma, busca-se identificar aspectos dessa contracultura assimilada pela juventude local através do cinema. Para tanto, serão estudados o contexto da contracultura e do Cinema Marginal no Brasil; o percurso da formação de uma movimentação de jovens interessados em fazer cinema na Bahia e sua relação com o ideário contracultural; além das obras. Nesse sentido, os três filmes de longa-metragem de ficção produzidos naquele período e existentes - “Meteorango Kid, o herói intergaláctico”, “Caveira my friend” e O Anjo Negro” - serão estudados mais detidamente como ducumentos históricoculturais para o desvelamento dessa contracultura baiana, suas nuances e especificidades. Para empreender as discussões propostas, o presente estudo dialoga com o conceito de cinema e história formulado por Marc Ferro, as considerações e análise sobre o Cinema Marginal Brasileiro feitas por Ismail Xavier e Fernão Ramos, entre outros autores.

Palavras-chave: Cinema. História. Contracultura. Cinema Marginal. Tropicalismo. Cultura Marginal. Cultura Baiana.

ABSTRACT

This work analyzes and relates the counterculture and the “Cinema Marginal” occurred in Bahia between 1968 and 1972. Thus, we seek to identify aspects of the counterculture assimilated by local youth through films. Therefore, the context of the counterculture and the Marginal Cinema in Brazil will be studied , the route of forming a movement of young people interested in film making in Bahia and its relationship with countercultural ideals, also the films. In this sense , the three feature-length fiction film produced in that period and existing - " Meteorango Kid , herói intergaláctico" , " Caveira my friend" and “O anjo negro " - will be studied more closely as a historical - cultural documents for unveiling the counterculture occurred in Bahia, its nuances and specificities. To undertake the proposed discussions, this study speaks to the concept of film and history formulated by Marc Ferro, the analysis made by Ismail Xavier and Jonathan Ramos on Brazilian Cinema Marginal, and other concepts and authors.

Keywords: Cinema. History. Counterculture. Marginal Cinema. Tropicalism. Marginal Culture. Bahian Culture.

“Historicizar sempre...” Fredric Jameson

.

P436 Pereira, Ednei de Santana

Imagens a Margem: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972)/ Ednei de Santana Pereira, Salvador. 2014.114f.:il Orientadora: Profª Drª Lícia Soares de Souza. Dissertação de Mestrado- Universidade do Estado da BahiaDepartamento de Ciências Humanas – Campus I Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL.

1.Cinema Marginal 2. Cinema - Brasil 3.Cinema-Bahia Título

CDD 791.430981

CDD

SUMÁRIO

Introdução

14

1. Cinema Marginal: contracultura brasileira no cinema 1.1. Tropicália/Tropicalismo, Cinema Novo e Cinema Marginal: alegorias e inteseções 1.2. Cinema Brasileiro: uma cinematografia marginal? 1.3. Cinema Marginal: o filho rebelde 1.4. Cinema Novo versus Cinema Marginal: continuidade e ruptura

26 29 36 40 45

2. A contracultura na Bahia e a formação do “Surto” de Cinema Marginal 2.1. O contexto cultural de Salvador entre 1968 e 1972 2.2. Contracultura expressa em cartas: o espaço do leitor do jornal Verbo Encantado 2.3. A formação de novos cineastas e os primeiros experimentos 2.4. Senna, construção e morte de um filme 2.5. O negro a cores: Akpalô, um psicodélico filme baiano

49 50 53 58 59 63

3. A contracultura baiana: os filmes de longa-metragem de ficção do “Surto” 3.1. Herói marginal intergalático: Meteorango Kid e a contracultura à baiana 3.2. Caveira, my friend: contracultura e banditismo social 3.3. Saindo das margens: cultura negra como contracultura em O Anjo Negro

67 68 82 92

Considerações Finais

101

Bibliografia

105

Filmografia

110

“From the east to the west Oh, the stream is long Yes, my dream is wrong From the birth to the death” The empty boat (Caetano Veloso)

INTRODUÇÃO

A década de 50 do século XX foi um período que trouxe novos ares à velha província da Bahia. Naquela época, embalada pelo discurso modernizador de Juscelino Kubitschek, Salvador começou a vivenciar um período de transformações sociais, econômicas e culturais. Essa lógica de desenvolvimento atingiu um determinado segmento da sociedade baiana que, dentre outras aspirações, desejava construir um grande teatro, fomentar um mercado de artes plásticas e, até mesmo, criar um pólo cinematográfico na região. Foi um tempo em que se inauguraram bares, restaurantes e boates requintadas; foram modernizados os antigos meios de comunicação e surgiram as primeiras agências de publicidade e a primeira emissora de televisão, marcando o início de um desenvolvimento cultural em moldes industrial na cidade1. A vida da cidade de Salvador deslocou-se do Centro Antigo em direção ao Campo Grande, onde, em 1958, foi instalado o Teatro Castro Alves – TCA, sendo o primeiro com arquitetura funcional construído no Brasil (salão de concerto, anfiteatro, sala do coro, espaço para exposições). Em 1960, foi inaugurado o Museu de Arte Moderna da Bahia – MAMB com sede provisória no foyer do TCA e tendo como objetivo a promoção de estudos e difusão do conhecimento das artes contemporâneas em geral, particularmente das artes plásticas, através de exposições, cursos, concertos e projeções2. No âmbito da imprensa, em setembro de 1958, foi lançado o Jornal da Bahia que seria organizado em bases industriais. O grupo de comunicação Diários e Emissoras Associados teve uma participação decisiva na estruturação do mercado de bens simbólicos na Bahia, sendo responsável pela instalação da primeira emissora de televisão baiana, a TV Itapoá, e de dois jornais diários, o Estado da Bahia e o já citado Diário de Notícias, além de dirigir a rádio mais antiga e de maior potência, a Rádio Sociedade. Neste clima, surgiram também as primeiras agências de publicidade baianas a partir das novas necessidades criadas por um mercado em franco processo de modernização3. Fundada em 1946 com a integração de tradicionais estabelecimentos de ensino superior do estado, a então Universidade da Bahia4 constituiu-se em um fator importante do movimento de 1

Cf. LUDWIG, Selma Costa. Mudanças na vida cultural de Salvador 1950-1970. Salvador, 1982. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. 2 Cf. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Cultura, política e mídia na Bahia contemporânea. Revista Comunicação & Política, n.s., v.X, n.1, p.093-155, 2001. 3 Cf. Idem. 4 Durante esse processo de federalização das diversas instituições e cursos de ensino superior do Estado que durou de 1946 à 1961, a Universidade da Bahia passou a se chamar Universidade Federal da Bahia em 1950.

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renovação da vida cultural baiana, tanto no campo técnico-científico quanto no das artes. Foram instalados cursos vinculados ao novo perfil do mercado profissional baiano, ao mesmo tempo em que surgiram as novas faculdades voltadas para as artes que revelariam diversos talentos. Assim, foram inauguradas, em meados dos anos 50, as Escolas de Teatro e de Dança e os Seminários de Música – que mais tarde ganhariam o “status” de unidade de ensino –, sendo, no âmbito da universidade brasileira, pioneiras em suas áreas5. É a partir desse cenário cultural multifacetado que se iniciaram debates e tomadas iniciativas para tentar consolidar também o cinema como atividade cultural de expressão na cidade. Em 1950 foi criado por Walter da Silveira – advogado trabalhista do sindicato dos exibidores que se tornaria o crítico de cinema de maior referência em Salvador, sendo autor de diversas críticas e artigos publicados nos principais jornais em circulação no estado –, o Clube de Cinema da Bahia, que objetivava projetar filmes de “valor artístico”, organizar uma biblioteca especializada e construir uma filmoteca, além de promover cursos e debates, tendo sempre o cinema como tema. Em 1961, a entidade passou a exibir películas no Museu de Arte da Bahia incentivada por Lina Bo Bardi. O clube reunia artistas, intelectuais e jornalistas, o que dinamizou e expandiu o movimento cineclubista pelo estado, contribuindo para a solidificação de uma platéia de cinema especializada e formando uma geração de críticos como Hamilton Correia (Diários de Notícias, Jamil Bagdad (A Tarde), Orlando Senna (O Estado da Bahia) e Glauber Rocha (Jornal da Bahia). Em 1957 foi fundado o Centro de Estudos Cinematográficos da Bahia com o objetivo de desenvolver estudos sobre cinema em Salvador, almejando ser o embrião de uma Escola de Cinema na Universidade da Bahia, o que, apesar dos diversos acenos do reitor Edgard Santos, nunca aconteceu. Em 1959, Glauber Rocha transitou entre a atividade de crítico e a de realizador com a produção do seu primeiro filme, o curta-metragem O Pátio. Nesse mesmo ano, Luís Paulino dos Santos realizou o também curta Um Dia na Rampa e Roberto Pires filma Redenção, o primeiro longa-metragem baiano de ficção, isto é, concebido, produzido, dirigido, montado e interpretado por baianos6. Deu-se início, então, ao denominado Ciclo Baiano de Cinema que proporcionou à Bahia, num curto período de cinco anos (1959-1964), ser palco de diversas produções cinematográficas. Após o citado filme de Roberto Pires, foram produzidos diversos longas-metragens de ficção como Bahia de Todos os Santos de Trigueirinho Neto e Mandacaru Vermelho de Nelson Pereira dos Santos, ambos em 1960; A Grande Feira, de Roberto Pires e Barravento, de Glauber Rocha e 5

Cf. Idem. Cf. CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2003. 6

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Luis Paulino dos Santos, de 1961, Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires, e O Pagador de Promessa, de Anselmo Duarte em 1962, Sol Sobre a Lama, de Alex Vianny em 1963, O caipora, de Oscar Santana e O Grito da Terra, de Olney São Paulo em 1964. Essas obras estabeleceram um marco na cultura baiana ao abordar os seus dois principais elementos: a tradição sertaneja e a de matriz africana, além de tratar de aspectos sociais e culturais inerentes à vida soteropolitana7. Esses filmes, atualmente, estão associados ao nascimento do Cinema Novo no que diz respeito não apenas a ter sido o ambiente que fomentou os primeiros passos do seu diretor mais emblemático, Glauber Rocha, mas também ao serem observados os primeiros rascunhos das propostas do grupo, como a estética da fome e o desenvolvimento de uma cinematografia que buscava intervir e transformar a sociedade brasileira. Porém, com o golpe militar de 1964, interrompeu-se o Ciclo Baiano de Cinema e o processo de transformações no âmbito da cultura no Estado da Bahia passou por um momento de transição, sendo reorganizado à margem dos formatos tradicionais. Os antecedentes da cultura da Bahia revelam a um só tempo um misto de atraso verificado nas quatro primeiras décadas do século XX, um boom modernizador entre os anos 50 e meados de 60 e uma nova estagnação até a eclosão do carnaval como evento midiático e como ressignifacação dos modelos culturais a partir da afirmação do universo cultural de origem africana em meados da década de 1970. O cinema produzido na Bahia, objeto deste estudo, insere-se nesse contexto apesar de suas nuances e peculiaridades. Desta forma, partindo de uma perspectiva mais ampla, a opção por obras cinematográficas como tema desta pesquisa reflete em grande medida a primazia do visual na cultura contemporânea, tal o impacto de significação dos recursos imagéticos, como o movimento, a visibilidade e a simultaneidade de tempos e espaços8. Considerando-se que as formas de percepção humana são historicamente condicionadas também pelos fatos técnicos de sua época9, é possível concluir que os processos de reprodução e difusão das novas tecnologias nos dias atuais – repletos de imagens que se entrecruzam no cotidiano das pessoas – vêm transformando não apenas as formas de apreender o mundo, como também as de representá-lo. Desta forma, a compreensão de um determinado contexto histórico e sócio-cultural também perpassa pela análise

7

8

Cf. Idem.

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JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Tradução: João Roberto Martins Filho. Rio de Janeiro: Graal, 1995 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. In: LIMA, Luiz Costa Lima (Org.). Teoria da Cultura de Massa. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.p. 209-242. 9

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de filmes que podem ser pensados como documentos de discussão de uma época e encarados como objetos da cultura que encenam o passado e expressam o presente10. Tendo como horizonte essas questões e o cinema como fio condutor, esta pesquisa visa abordar um período – os quatro primeiros anos do regime militar sob a égide do Ato Institucional nº 5, decretado em 1968 – da história cultural brasileira, marcado pela censura de filmes, peças, músicas e outras expressões artísticas, além da perseguição a artistas e intelectuais, em meio a transformações na esfera econômica, como a internacionalização do capital, e na esfera da cultura, como o desenvolvimento de um forte mercado de bens culturais. Em contraposição a esse quadro, essa época também é marcada por formas alternativas e de resistência da produção cultural brasileira – inspiradas por eventos como o maio de 1968 na França, os protestos contra a Guerra do Vietnã, e a guerrilha armada contra a ditadura no Brasil, bem como por visões de mundo que questionavam os paradigmas das culturas dominantes – como o Tropicalismo e o Cinema Marginal. Este último exemplo será o eixo utilizado para se entender esse momento da cultura no Brasil, uma vez que se caracteriza como uma etapa do cinema brasileiro em que as formas de representação foram levadas ao limite e a relação com o público e o mercado foram colocadas em xeque. Tendo como marco o longa-metragem A Margem, de Ozualdo Candeias, o Cinema Marginal, denominação de um conjunto de filmes produzidos entre 1968 e 1973, ao mesmo tempo em que adotava procedimentos narrativos que não se adequavam aos padrões da indústria cinematográfica, aproveitava desta os seus produtos considerados descartáveis, ou produzidos em série, como os filmes pornográficos, os de terror e os de ficção científica, além de referências a peças publicitárias e histórias em quadrinhos11. Irreverentes, esses filmes combinavam humor e experimentalismo, narrativa fragmentada e auto-reflexiva, estruturados a partir do espírito contracultural em voga no período que, na sua assimilação para a então realidade brasileira, assumia um caráter de resistência e protesto ao estado de opressão e cerceamento da liberdade estabelecido pela ditadura. Em relação a esse espírito, essas produções efetuaram um diálogo com outras manifestações culturais em voga naqueles anos – o flower-power, o rock, o movimento hippie, a Pop Art e, no caso mais específico do Brasil, a Tropicália – que se notabilizaram por terem contribuído para o questionamento da distinção entre a “alta cultura” e a chamada “cultura de massa”12.

10

Cf. CAPELATO, Maria Helena et al. História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2007. Cf. RAMOS, Fernão. Cinema marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987. 12 Cf. Idem. 11

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Desta forma, faz-se necessário efetuar um recorte espacial, uma vez que o Cinema Marginal legou uma vasta produção de filmes com temáticas similares, porém refletindo aspectos variados em razão dos seus contextos de realização, pois foram realizadas películas em vários estados brasileiros no período, com traços narrativos e esquemas de produção singulares que podem ser reunidos sob essa designação. Sendo assim, e como forma de contribuir para a expansão do conhecimento sobre a história cultural baiana, mais detidamente, sobre o período em questão, repleto de lacunas e carente de estudos mais específicos, essa pesquisa tomará como corpus os filmes produzidos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972 que, pelo caráter sazonal da produção cinematográfica baiana, podem ser agrupados a partir da idéia de um “surto” 13 e pelas circunstâncias adversas em que foi concretizada essa produção, a partir das condições apresentadas para os seus realizadores – a inexistência de financiamento ou política estatal para o cinema, os poucos recursos advindos de iniciativas pessoais dos realizadores, amigos e família e a quase nenhuma possibilidade de distribuição e exibição –, assim como as suas ideias em sintonia com a política contracultural, também verificada nas propostas apresentadas pelos cineastas desse movimento em outras partes do país, como de cunho marginal, ou marginalizados em relação a uma cultura hegemônica14. O período foi delimitado entre os anos de 1968 e 1972, uma vez que nele se concentra a grande parte da produção cinematográfica com as características apresentadas. A escolha do ano de 1968 deve-se ao fato de que nele é possível detectar os primeiros movimentos em direção a uma retomada da produção de filmes na Bahia, bem como é quando são realizados no país os primeiros filmes considerados como da estética marginal, como Jardim de Guerra, de Júlio Bressane, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, coincidindo com momentos históricos no mundo e no Brasil como os protestos na França e a decretação do AI-5. No caso da Bahia, poderia ser considerado problemático definir o final do surto em 1972, uma vez que filmes no formato Super-8 foram realizados dentro do espírito de um cinema marginal durante toda a década de 1970 e mesmo até o final da década de 1980, como atesta o lançamento de O Superoutro, de Edgar Navarro, o que em si já revela a importância daquelas obras, contudo esta escolha faz-se necessária pela impossibilidade temporal de investigar um período mais vasto, cobrindo esses desdobramentos tomados pelas movimentações do final dos anos de 1960 e início de 1970. 13

Para definir aquele curto período de produções cinematográfica o Professor André Setaro utiliza, em diversos momentos de sua produção crítica, ironicamente o termo “Surto” que define o surgimento inesperado de diversos filmes em um período curto e de interrupção abrupta. Durante esse trabalho, será apropriado este term, uma vez que o termo Ciclo envolve uma produção maior, em um período mais extenso, além de caracterizar um conjunto de filmes que deixam marcas mais abrangentes na cinematografia brasileira. 14 Cf. Idem.

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O objetivo geral desta pesquisa é efetuar um estudo sobre o surto de cinema ocorrido na Bahia entre os anos de 1968 e 1972, através da análise das obras cinematográficas que o constituem e da identificação de aspectos do contexto histórico-cultural em que foram produzidas. Tomando-se essa meta como base, será possível estabelecer outros objetivos mais específicos – levando-se em conta a abrangência e os limites temporais desta investigação – como o de identificar, a partir desse momento da produção cinematográfica baiana, aspectos das práticas e movimentações na esfera cultural na cidade de Salvador – local onde os filmes foram produzidos e, em sua grande maioria, ambientados – durante a sua duração. Nesse âmbito, destacar as formas culturais que estão à margem daquelas hegemônicas, especialmente no campo das artes, se constitui premente, no sentido de articular o caráter marginal verificado nos filmes – no sentido não apenas das temáticas que imperam em suas narrativas como também nas suas próprias condições de produção e veiculação – aos dos outros movimentos e formas de expressão daquele período na cidade. Ainda nesse âmbito, identificar a teia de acontecimentos que proporcionaram o surgimento desse surto, seus protagonistas e estratégias de viabilização das produções constituem-se como eixo da articulação entre os filmes e o contexto histórico-cultural a ser verificado. Interessa também a esse estudo identificar elementos da dimensão cinematográfica das obras, seus estilos, filiações, temas encenados e outros aspectos técnicos e de linguagem que constituem e/ ou as unem. Nessa esfera, torna-se importante analisar as representações empreendidas pelas películas, à luz do contexto histórico-cultural do período em Salvador. Desta forma, os objetivos desta pesquisa são traçados a partir de uma via de mão dupla: a compreensão dessas obras em face do contexto histórico-cultural soteropolitano e o que essas obras revelam desse mesmo contexto. Para alcançar esses objetivos serão utilizados pressupostos teóricos que darão suporte a conceitos como cultura, contracultura, cinema marginal e relações entre cinema e história. Usado de modo amplo pela tradição dos estudos antropológicos, o termo “cultura” designa um modo de vida global de um povo ou de um grupo social. Porém diversos significados desse termo foram se desenvolvendo em usos mais gerais, desde um alto grau de desenvolvimento cognitivo de indivíduo – uma “pessoa de cultura” –, passando pelos processos que levaram a esse desenvolvimento – “interesses e atividades culturais”, até os meios desse processo, ou seja, as artes e o trabalho intelectual15. Nesse sentido, o conceito de cultura articulado nesse projeto diz respeito a produtos humanos que expressam a individualidade de uma coletividade, enfatizando as

15

Cf. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

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suas diferenças (regionais ou nacionais) e a identidade particular de grupos16. É a partir dessa dimensão da cultura que o presente estudo buscará a historicização dos eventos – no plano cultural – ocorridos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972. Para tanto, este trabalho utiliza-se da ideia de contexto, que será aqui tomado no sentido de tudo que cerca determinado elemento ou, no presente caso, no seu sentido estrito, aquilo que faz sobressair o quadro espaço-temporal e a situação social local através de trocas comunicativas, seus participantes, o tipo de atividade e a regra que as regem17. Desta forma, ao se referir ao contexto histórico em que determinado conjunto de bens culturais foram produzidos, essa pesquisa buscará trazer à tona os eventos que constituíram a produção no campo das artes articuladas à sua realidade social e à ação de seus realizadores. Os bens culturais em questão são os filmes produzidos na Bahia num período em que questões como a contracultura e a repressão empreendida pelo regime militar se imbricam e estabelecem o caráter marginal dessas obras. Sendo assim, é importante verificar a emergência de uma cultura marginal, ou à margem de uma cultura oficial, ou daquela de mercado que naquele período no Brasil tomavam o rumo da industrialização. A cultura marginal é a voz do Outro, a contracorrente de um sistema que produz bens de cultura em série, realizada por quem reivindica ou é colocado fora da roda desse sistema. Considera-se marginal tanto a historiografia produzida por esse Outro, como também o sujeito que a produz. Desta forma, a sua cultura destaca uma reconfiguração cosmopolita a partir do subalterno ou de um “cosmopolitismo do pobre”18. A cultura marginal, periférica e subalterna procura assim se afastar de uma imagem “oficial” de identidade nacional, descolar-se completamente do registro burocrático da história e tenta delinear o ponto de vista de um grupo ou minoria. Nesse âmbito, contracultura em muitos aspectos torna-se sinônimo de cultura marginal se se tomar o conceito desta última como um conjunto de valores, crenças e atitudes de qualquer grupo de minorias que se oponha à cultura dominante, feita relativamente de forma articulada e reflexiva19. Em um plano mais abrangente, pode-se pensar em contraculturas através da história ou de movimentos e práticas culturais que se posicionaram contra algum paradigma hegemônico. Desta forma, em seus primórdios, o cristianismo foi uma contracultura em relação ao judaísmo e aos cultos romanos, bem como as vanguardas européias do começo do século XX foram 16

Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 17 Cf. CHAROUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004. 18 Cf. SANTIAGO, Silviano. “Poder e Alegria: a literatura brasileira pós-64”. In:_. Nas Malhas das Letras. São Paulo: Rocco, 2002. 19 Cf. EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter (Orgs). Teoria Cultural de A a Z: conceitos chaves para entender o mundo contemporâneo. Tradução: Marcello Rollemberg. São Paulo: Contexto, 2003.

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contraculturas em relação à arte acadêmica20. O termo ganha essa conotação nos anos de 1960 quando um contingente de jovens empreendeu lutas contra a tecnocracia, o capitalismo, a burocracia e, conseqüentemente, contra guerras e ditaduras. A afirmação dos jovens como atores sociais e como segmento consumidor lhes deu uma visibilidade que outrora inexistia. A rebeldia e os protestos contra a geração mais velha e contra o sistema cultural vigente – a sociedade industrial, produtivista e consumista – ganharam força na mídia e se espalharam por todo o Ocidente capitalista, contribuindo para a formação de uma cultura jovem que iniciou um itinerário na contramão da sociedade da época21. No caso brasileiro, o final da década de 1960 e o início da de 1970 constituíram-se como período propício para a disseminação do ideário contracultural no país. A derrocada do projeto nacional-popular que havia criado um clima de otimismo social e politização da cultura nos dez anos que antecederam o golpe militar de 1964 contribuiu para certo deslocamento de uma ativa participação de artistas e intelectuais na sociedade para uma postura marginal e de combate através de estratégias como o deboche e o riso contra o terror da repressão ditatorial22. Essas estratégias inspiradas nos movimentos contestatórios e nas manifestações contraculturais verificados na Europa e nos Estados Unidos continham elementos que se diferenciavam da tradição nacional-popular, causando reações adversas tanto aos conservadores partidários do regime quanto à parte da esquerda, pois se baseava na afirmação individual, na liberação do corpo, na celebração da diferença sexual e racial, e no humor iconoclástico em face da autoridade. O principal movimento nas artes que adotaria expressamente essas posturas foi o Tropicalismo, tendo na música o seu ponto mais nevrálgico ao estabelecer a conexão entre protesto político, contraposição a cânones, quebra de sistemas hierárquicos e diálogo com o mercado23. Nesse mesmo contexto, emerge, no final dos anos de 1960, um conjunto de filmes também influenciados pela contracultura a partir de narrativas fragmentadas, esquemas de bricolagem e a redenção do que era tido como menor, baixo, desprezado, imperfeito e lixo como parte de uma estratégia de subversão, conhecida como “estética do lixo”24. O Cinema Marginal, como ficaram conhecidas essas obras, assim como boa parte da cinematografia latino-americana da época, também trilharam o caminho da inversão de sentido de tudo que era tido como negativo no discurso “colonialista”, intencionando transformar a fraqueza estratégica numa força tática. 20

Cf. GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de prometeu à cultura digital. Tradução de Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 21 Cf. ROSZACK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Vozes, 1972. 22 Cf. SANTIAGO. Silviano. Op.Cit. 23 Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem, CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 2004. 24 Cf. RAMOS, Fernão. Op. Cit.

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Permeados por um humor corrosivo, os filmes do Cinema Marginal estabeleciam um diálogo intertextual com as fitas de gênero – o cinema “noir”, o faroeste, o musical –, o documentário, a chanchada e a ficção científica numa compilação de pastiches 25. Radicalizando as propostas iniciais do Cinema Novo de uma “estética da fome”, o Cinema Marginal, porém, recusou esse tom pedagógico da tomada de consciência do “povo”, adotando uma linguagem agressiva causadora de tensão e afastamento do grande público26. Nesse sentido, a lógica marginal estabelecida pelos cineastas ultrapassava as suas próprias idéias estéticas, revelando-se também nos esquemas de produção e exibição, remando na contramão da formação do mercado de bens culturais que se consolidava no país. Para a compreensão e periodização do surgimento no Brasil desses novos traços formais na vida cultural que correspondem ao surgimento de um novo tipo de vida social e cultural e de uma nova ordem econômica, chamados também de capitalismo tardio, é preciso pensar de maneira diferente as etapas do capitalismo no mundo, a saber: o de mercado, o monopolista ou imperialista, e o atual, multinacional ou tardio27. Devido às suas especificidades, o caso brasileiro funciona com tempo e dinâmica diferentes, uma vez que devido a sua posição periférica em relação aos centros de decisões das economias hegemônicas, fazendo, assim, com que programássemos nossas próprias coordenadas culturais28. Dessa forma, a convivência entre desigualdades regionais, miséria e sofisticação tecnológica gera um descompasso que é o elemento formador da história cultural brasileira – marcada pela tentativa de harmonizar o nacional “atrasado” e o estrangeiro “adiantado”29. Os governos militares das décadas de 60 e 70, mediante a força, trataram de introduzir, no país, esse novo estágio do capital internacional em que ao se expandir até setores da vida até então secundarizados pela lógica de mercado, como a cultura que passa a se adequar à sua circulação em moldes industriais. Nesse sentido, na abordagem do contexto cultural em questão é de fundamental importância verificar elementos dessa nova ordem econômica e cultural internacional que é, simultaneamente, instaurada e abalada, tanto pelas suas próprias contradições internas quanto pela resistência interna30. Outra dimensão explicitada por essa pesquisa é a histórica. Nessa esfera, tendo em vista ser o cinema o tema deste estudo, faz-se necessário adotar conceitos que efetivam a relação entre 25

Cf. VIEIRA, João Luis. Lixo, Marginais e Chanchada. 2004. Disponível em Acesso em: 02 abr. 2007. 26 Cf. XAVIER, Ismail. O Cinema Marginal revisitado, ou o avesso dos anos 90. 2004. Disponível em . Acesso em: 02 abr. 2007. 27 Cf. JAMESON. Fredric. Op. Cit. 28 Cf. ORTIZ, Renato. Op. Cit. 29 Cf. SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 30

Cf. JAMESON, Fredric. A virada cultural. Tradução: Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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essa forma de arte e a história. Desta forma, localizam-se três possíveis campos que permeiam esse relacionamento: “a história do cinema”, campo da historiografia cinematográfica, “a história no cinema”, o cinema visto como fonte histórica, e “o cinema na história”, o cinema como agente da história. Dessas três vertentes nos interessa tomar elementos das duas primeiras. O campo da historiografia

cinematográfica

estará

presente

uma

vez

que

será

necessário

um

redimensionamento da bibliografia sobre o cinema baiano verificado entre 1968 e 1972, amparado pelo trabalho da crítica cinematográfica local – Walter da Silveira, André Setaro, José Umberto – fundamental para o estabelecimento de parâmetros historiográficos e preservação da memória dessas obras e dos acontecimentos que a cercaram, bem como para inseri-las dentro de um contexto mais totalizante da cinematografia da época. Nesse sentido, o estudo parte do âmbito sócio-cultural, pois um determinado conjunto de produções fílmicas cria representações de uma sociedade em um determinado momento histórico, podendo-se perceber desde intenções dos realizadores e das formas sócio-culturais por eles difundidas até as correntes culturais ou ideológicas que as películas se filiam31. Os filmes em questão também serão tomados como fontes históricas, ou seja, a obra cinematográfica traz informações a respeito de seu presente, mesmo os de ficção devido a sua natureza de maior divulgação e circulação, conseqüentemente exercendo um maior diálogo entre filme e sociedade. Desta forma, a obra cinematográfica, independente do gênero, trará imagens sobre algum aspecto da realidade não apenas pelo que se propõem a representar como da forma como foram elaborados32. As fontes primárias desta pesquisa serão os longas-metragens de ficção produzidos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972. Sendo assim, preliminarmente podem ser citados como realizações desta natureza os filmes Meteorango Kid, o herói intergaláctico (André Luiz Oliveira, 1969), Caveira, my friend (Álvaro Guimarães, 1970), 69: A construção da morte (Orlando Senna, 1970), Akpalô (José Frazão e Deolindo Checcucci, 1971) e O Anjo Negro (José Umberto, 1972). Ressalta-se, porém, que os filmes Akpalô e 69: A construção da morte não possuem cópias disponíveis – existindo, ainda, fortes indícios do desaparecimento definitivo dessas obras. Desta forma, a análise fílmica ficará restrita às películas existentes. O método de análise estará ancorado em duas perspectivas que se complementam: o cinema como fonte histórica e a análise fílmica. O cinema como fonte histórica propõe a revelação do processo de construção subjetiva do contexto histórico no interior da narrativa fílmica a partir da análise da fonte emissora, bem como das condições de produção e recepção do 31

Cf. CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos J. K. (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999. 32 Cf. FERRO, Marc. Cinema e história. Tradução: Flávia Nascimento. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

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filme. Nessa operação, efetua-se o esquadrinhamento do filme e o exame de como o seu sentido é produzido, refazendo, para tanto, o caminho trilhado pela narrativa, levando em conta as tensões – provenientes da associação de diversos tipos de signo – dessa prática discursiva. A partir daí, é possível “desvendar os projetos com os quais a obra dialoga sem perder de vista sua singularidade dentro de seu contexto”33. Nesse sentido, o esquadrinhamento, ou propriamente a análise fílmica, seria o destacamento de elementos da construção dos filmes – planos, seqüências, movimentos, passagens de um plano a outro, diálogos, trilha sonora, etc. – não percebidos de modo imediato, para num segundo momento estabelecer-se relações entre esses elementos isolados, fazendo surgir um todo significante, tendo sempre como perspectiva a obra em si.34 Outras fontes secundárias desta pesquisa são constituídas dos principais veículos de comunicação impressa em circulação na cidade de Salvador entre 1968 e 1973, sendo eles os periódicos A Tarde, Jornal da Bahia, Diário de Notícias – com tiragens em todos os meses dos referidos anos –, e A Tribuna da Bahia – a partir de 1970. É importante observar que a consulta a esses periódicos terá o objetivo de alicerçar a construção de um pequeno panorama dos acontecimentos relativos ao contexto da cultura no estado naquele período, uma vez que este não é o objetivo central da pesquisa. Desta forma, serão consultados os exemplares dos finais de semana, dedicando-se uma atenção maior aos chamados “suplementos culturais”, em que as atividades do mundo das artes destacam-se. Ressaltam-se aqui os limites dessas fontes no sentido de que podem oferecer informações contaminadas por uma política de controle e censura em face do regime de exceção em voga. Por outro lado, é preciso também considerar que muitos dos atores sociais dos eventos aqui abordados tinham uma efetiva produção de artigos e críticas naqueles jornais, como é o caso de José Umberto – diretor de O anjo negro e um dos pontos de referência para as atividades cinematográficas da época – que escrevia críticas de cinema e artigos nas “Páginas Azuis” da Tribuna da Bahia, o que pode sugerir o aparecimento de informações importantes sobre os próprios filmes em questão. Ainda nesse âmbito dos limites da mídia impressa da época, serão consultados os exemplares do jornal Verbo Encantado. Inserido no âmbito da “imprensa alternativa”, essa publicação traça um painel da cultura da época especialmente em Salvador. Influenciados pelo ideário da contracultura, o jornal possui edições entre os anos de 1971 e 1972, tendo a frente nomes fundamentais do Ciclo de cinema em questão

33

MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. In: CAPELATTO et al. História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2005. 34 VANOYE, Francis, GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 2002. .

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como Álvaro Guimarães, Deolindo Checucci e José Umberto, sendo fonte indispensável para a identificação dos elementos do contexto cultural da época. Outras fontes secundárias desta pesquisa serão as informações trazidas pelos diretores, produtores, atores e pessoal técnico dos filmes, seja através de entrevistas realizadas em periódicos da época, seja em biografias ou autobiografias, compondo assim um painel não apenas sobre os detalhes da realização das obras como também do contexto cultural da época. Sendo assim, o primeiro capítulo deste trabalho abordará o Cinema Marginal como uma vertente do advento da contracultura no cinema brasileiro. Para tanto, é preciso em primeiro lugar compreender alguns aspectos de como a contracultura foi assimilada no Brasil e inter-relacionar os fenômenos culturais caracterizados pelo questionamento da cultura hegemônica da época, ou seja, o Tropicalismo, o Cinema Novo e o Cinema Marginal - foco desta pesquisa; em seguida, ainda neste capítulo serão levantados os elementos narrativos, as características estéticas e as tendências e grupos desse movimento cinematográfico – apesar de não haver consenso quanto ao termo, nem ter havido propriamente uma coesão de grupo. A partir das definições

e

contextualização sobre a contracultura no Brasil e o Cinema Marginal, o segundo capítulo introduzirá o chamado Surto de Cinema Marginal da Bahia no âmbito da assimilação da contracultura na Cidade da Bahia, ou seja, como esse momento do cinema baiano foi engendrado naquele contexto, como foram realizados os primeiros curtas e como foi o processo que resultou no desaparecimento de dois longas-metragens de ficção. Assim, buscando os aspectos desse contexto cultural nessas obras, o terceiro capítulo analisará os três filmes de longa-metragem de ficção existentes, sendo que em “Meteorango Kid, herói intergaláctico” será visto como a contracultura e o contexto cultural baiano é representado, em Caveira, my friend, será abordada a questão da marginalidade a partir do conceito de banditismo social – empreendendo-se para tanto abordagem um diálogo com “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla ; finalizando com a análise do filme “O anjo negro” no sentido de perceber como a cultura afro-baiana é representada como contracultura.

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1. CINEMA MARGINAL: CONTRACULTURA À BRASILEIRA NO CINEMA

Theodor Roszak afirma que, apesar das lutas entre gerações serem uma constante na história humana, os acontecimentos de meados da década de 1960 até o início da de 1970, e em especial o ano de 1968, tinham um caráter específico. Denominados por ele de “contracultura”, todos os fenômenos daqueles anos - oposição à guerra de Vietnam, movimentos pelos direitos civis, o chamado “amor livre” e o uso de drogas psicodélicas na procura de uma “expansão da consciência”, entre outros -devem ser pensados não como fatos isolados, mas como gestos de uma dissensão radical e de grande inovação cultural35. Neste sentido, pode-se definir contracultura como a representação dada a um conjunto de manifestações de repúdio ao modo de vida predominante no Ocidente, por parte da juventude daqueles anos, das quais resultaram algumas transformações sócio-culturais, ainda que nem sempre as defendidas por seus teóricos e apologistas. Entre as suas manifestações mais visíveis, encontram-se a desvalorização do racionalismo, tendo com uma decorrência na época, as rebeliões nas universidades, contra ao sistema de ensino, e a construção de novos paradigmas, ou visões de mundo, baseadas em correntes culturais subterrâneas do Ocidente, em filosofias e religiões orientais e em certas vertentes da psicanálise e do marxismo; a recusa do estilo de vida consumista expresso em um estilo de vida desregrado e errante - sendo os hippies os principais exemplos deste modelo; e o hedonismo, caracterizado pela valorização do corpo e das emoções, sendo as suas principais manifestações a “revolução sexual” e o culto às drogas psicotrópicas, relacionadas especialmente ao rock in roll. Aquele período configura-se como um momento de transição para o surgimento de novos aspectos formais da cultura, de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica que aqui denominarei de sociedade de consumo pós-industrial ou de capitalismo multinacional36 – que no Brasil e em quase toda a América Latina imersos em modelos nacional-desenvolvimentistas necessitaram ser inseridos à força, via estados de exceção, a essa nova ordem do capital. Aquela foi uma época em que um contingente de jovens, a partir da percepção das contradições desse novo momento, tentou estabelecer paradigmas culturais em que a experimentação, a liberdade e a diversidade seriam as suas principais premissas e as principais vias para a elaboração de 35

Cf. ROSZACK, Theodore. Op.Cit. Para Fredric Jameson esse momento histórico-social que ele denomina de capitalismo tardio pode ser definido como o momento em que os últimos vestígios da natureza que sobreviveram ao capitalismo clássico são finalmente suprimidos: os anos de 1960 foram o período de transformação em que esta reestruturação sistêmica passou a se estabelecer em escala global. Cf. JAMESON, Fredric. Periodizando os anos 60. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 36

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estratégias de resistência. Desta forma, o que se convencionou chamar de contracultura, antes de sua absorção às regras de mercado, ou, na designação de György Lukács, antes de sua reificação, refere-se a um momento cultural em que é identificada a emergência de novas identidades coletivas e de novos sujeitos da história (JAMESON, 1991): o movimento contracultural da década de 1960 proporciona o surgimento de novas categorias sociais e políticas que põem em xeque a tradicional noção de classe social e as formas clássicas de ação política, pondo novos atores sociais em movimentos como o feminista e o de afro-descendentes, contribuindo, assim, para o descentramento e alargamento do campo das identidades e ainda o incremento da polarização entre elas (HALL, 2002). A contracultura, ainda, está inserida em um momento de democratização da vida cotidiana e da cultura política na segunda metade do século XX, principalmente através dos meios de comunicação impressos e eletrônicos e por associações não tradicionais de jovens, de caráter urbano, com preocupações que vão das artes à ecologia, passando pela moda, até questões raciais e de gênero. Nesse sentido, essa nova contracultura surge e alimenta essas novas identidades coletivas, associadas à emergência de novos movimentos sociais e a uma nova dimensão do fazer político, sendo síntese, mas também produto e resultado dos anseios de um período comprometido em sedimentar uma nova visão de mundo. Além disso, ao politizar o cotidiano, fazendo emergir para a vida política questões como gênero, sexo, liberdades individuais, ambientais, de raça etc., ampliou e tornou mais complexo o universo da luta de classes. Naqueles anos contraculturais, pode ser identificada uma nova postura política, agora centrada nas diferenças e na consolidação de novos movimentos sociais, associados através da identidade social de seus militantes, e na valorização de outras culturas, outras éticas, etnicidades e religiosidades. Com a contracultura multiplicaram-se iniciativas comprometidas com uma nova visão de mundo, sensibilidade e comportamento. No caso brasileiro, o final da década de 60 e o início dos anos 70 do século XX constituíram-se como períodos ideais para a afirmação do projeto contracultural. A derrocada do ideário político fomentado pelas esquerdas nos dez anos que antecederam o golpe militar de 1964 contribuiu para a valorização de uma postura marginal em relação ao sistema social vigente. Passam a ser erigidas novas formas alternativas de se relacionarem com o mundo, especialmente nos setores mais jovens da população. Em decorrência do estado de exceção implantado no país a partir de 1964, grande parte das concepções que buscavam uma intervenção social mais efetiva a favor da maioria da população passa a adotar ações voltadas para o bem-estar individual e o prazer pessoal. Novas questões notadamente do plano da subjetividade são vislumbradas, como a

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sexualidade, o uso de drogas etc, além de grupos sociais, outrora dispersos nas reivindicações do âmbito da classe, passam a priorizar exigências relativas às suas próprias demandas. A contracultura difunde-se nas diversas artes como no cinema, na poesia, na música, a partir da tentativa de não inserção nas estruturas socialmente voltadas para divulgação - mesmo destinada à absorção pelas estruturas da indústria cultural. Veiculada por parcelas da classe média, uma parte da ideologia contracultural desenvolveu-se no plano das artes à margem das expectativas do mercado, apresentando uma forma estética com características narrativas radicalmente opostas àquelas voltadas para a circulação do valor da mercadoria cultural. Nessa contracultura, uma produção alternativa encontra campo ideal para sua expansão, sendo, no caso brasileiro, a partir de dois aspectos cruciais: por um lado, a opção ideológica pela vida marginal e alternativa dentro da sociedade capitalista, por outro, uma formação social restrita, que resultou na exclusão de qualquer participação mais ativa na vida cotidiana. Ocasionando, desses dois aspectos, uma forma estética fechada na sua realização e divulgação que influenciou o afastamento de um público mais amplo. Seguindo uma corrente de realizações que privilegiavam a autoria, a experimentação e a contraposição a uma cultura hegemônica, em relação aos aspectos comerciais que giram em torno de um filme, o Cinema Marginal surgiu no final da década de 1960 na esteira dessas transformações radicais no plano da cultura perpetradas por uma camada da juventude brasileira, tornando-se também um foco de resistência ao recrudescimento do estado de exceção vivido pelo Brasil naqueles anos. O presente capítulo parte de uma via de mão dupla para se compreender esse movimento cinematográfico brasileiro em seu contexto mais amplo. Entende-se aqui enquanto marginal os filmes que, tanto no nível de seus esquemas de produção, distribuição e exibição quanto nos seus aspectos narrativos, técnicos etc, ocupam um lugar periférico no que concerne, respectivamente, ao seu valor no mercado cinematográfico e à sua relação com a maioria do espectador de cinema – arrematada pela tradição de uma narrativa clássica.

O

entendimento dessa dupla dimensão tornará possível definir o lugar ocupado por aqueles filmes na cinematografia brasileira no que tange às suas filiações, influências e pontos de rupturas, bem como servir de parâmetro para a análise dos filmes realizados na Bahia e que receberam a denominação de cinema marginal. Inicialmente, para se compreender aspectos dessa contracultura brasileira, serão feitas considerações sobre os três fenômenos culturais brasileiros que dialogam de alguma forma com o espírito contracultural: o Tropicalismo, o Cinema Novo e o Cinema Marginal, tendo como fio condutor o recurso da alegoria como estratégia de comunicação e linguagem comum a esses movimentos. Em seguida, tentaremos responder em linhas gerais à questão da marginalidade do 28

próprio cinema brasileiro a partir da análise de momentos de sua cinematografia, especialmente no que se refere aos três processos de viabilização de uma obra cinematográfica (produção, distribuição e exibição), para tanto tomaremos dois momentos dispares do cinema brasileiro: o Cinema Novo e os filmes do estúdio Vera Cruz. Abordaremos, logo após, a importância do Cinema Novo na formação dos cineastas marginais e os pontos de ruptura que originaram o movimento e prosseguiremos, ao tratar do surgimento do Cinema Marginal no que tange ao seu contexto histórico-cultural, seus pontos de aproximação e distância com o Cinema Novo, seus grupos, vertentes, características estéticas e narrativas dos filmes – ilustrando, como exemplos, filmes do surto marginal baiano e o de outros estados.

1.1. Tropicália/Tropicalismo, Cinema Novo e Cinema Marginal: alegoria e intersecções A música “Objeto Semi-Identificado”

37

, uma das que compõe a trilha do filme

“Meteorango Kid, herói intergaláctico” – uma das fontes desta pesquisa - indica alguns caminhos que o presente trabalho se propôs a trilhar. O experimentalismo tanto na letra quanto na música, a psicodelia, a fusão de ritmos e as diversas referências às diversas tipificações da cultura (as ditas alta, popular e de massa), incorporadas sem distinções nem hierarquias, apontam não apenas o que foi o projeto da tropicália, mas também o momento, verificado entre a segunda metade da década de 1960 e a primeira da década de 1970, de transformações sociais, históricas e econômicas no cenário cultural brasileiro. A letra, que expõe o gosto de comer moqueca, cultura e loucura com coentro e na qual Cultura e Civilização só interessam enquanto serve de alimento, remete-se e 37

“- Diga lá./- Digo eu./- Diga você./- E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis./E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis./ E se distribuíram e sobre cada um deles assentou-se uma./ E todos eles ficaram cheios de espírito santo e principiaram a falar em línguas diferentes./- Eu gosto mesmo é de comer com coentro./ Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura./ Eu gosto mesmo é de ficar por dentro, como eu estive na barriga de Claudina, uma velha baiana cem por cento./- Tudo é número./ O amor é o conhecimento do número e nada é infinito./ Ou seja: será que ele cabe aqui no espaço beijo da fome? Não./ Ele é o que existe, mais o que falta./- O invasor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou./ Com um sorriso nos lábios ele disse: "A eternidade é a mulher do homem./ Portanto, a eternidade é seu amor"./Compre, olhe, vire, mexa./ Talvez no embrulho você ache o que precisa./ Pare, ouça, ande, veja. Não custa nada./ Só lhe custa a vida./- Entre a palavra e o ato, desce a sombra./ O objeto identificado, o encoberto, o disco-voador, a semente astral./- A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento, dica, pala, informação./- A loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o 3 e o 7. /Eu crio./A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro./ A morte é a única liberdade, a única herança deixada pelo Deus desconhecido, o encoberto, o objeto semi-identificado, o desobjeto, o Deus-objeto./- O número 8 é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora./- Cada diferença abolida pelo sangue que escorre das folhas da árvore da morte. Eu sou quem descria o mundo a cada nova descoberta./ Ou apenas este espetáculo é mais um capítulo da novela "Deus e o Diabo etc. etc. etc."/- O número 8 dividido é o infinito pela metade./ O meu objetivo agora é o meu infinito./ Ou seja: a metade do infinito, da qual metade sou eu, e outra metade é o além de mim.” GILBERTO GIL. Objeto Semi-Identificado. In: GILBERTO GIL(Cérebro Eletrônico)Rio de Janeiro: Philips, 1969. L. B, faixa 10.1 disco (5’16”): 33 1/3rpm, microssulco, estéreo.

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imbrica-se imediatamente a um período anterior de transformações culturais que foi o do início do modernismo no Brasil, nos anos de 1920, em que artistas como Oswald de Andrade teorizaram e puseram em prática o movimento antropofágico que propunha a deglutição da cultura além das fronteiras brasileiras, especialmente a hegemônica – europeia e estadunidense - para regurgitá-la após ser mastigada e mesclada com a cultura local. A tropicália foi um pouco além, o bolo que se forma na boca “descria” o alimento original “abole” a diferença, no seu sentido excludente, e cria o novo objeto, o “Deus-Objeto”, encoberto, desconhecido e semi-identificado – novas identidades, não mais rígidas, emergem e se deslocam de acordo com as identificações do sujeito. A tropicália, movimento musical, e o tropicalismo, movimentações mais abrangentes no campo das artes, podem ser considerados experiências culturais contra-hegemônicas38, ou contraculturas, no sentido de contraposições e lutas culturais que emergem em um dado momento histórico. Esses grupos de artistas desconfiados dos discursos nacionalistas e populistas, sejam procedentes da esquerda ou da direita, procuravam compreender os embaraços do processo cultural brasileiro, ao mesmo tempo em que assimilavam informações dos movimentos culturais de juventude que ocorriam na Europa e nos Estados Unidos – o cinema de Jean-Luc Godard, os hippies, o rock experimental e psicodélico e a canção de protesto, tendo músicos como Bob Dylan, Frank Zappa e grupos como os Beatles e Rolling Stones como importantes referências. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda, a postura cênica e existencial dos jovens baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Rogério Duarte, Gal Costa dentre outros, com seus cabelos compridos, roupas coloridas, atitudes inesperadas e críticas de fundo político significavam um momento de crise. Para ela, ao recusar os padrões de boa conduta, os tropicalistas reagiam contra as formas de poder a partir da “ocupação dos canais de massa, a construção literária das letras, a técnica, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a critica de comportamento” 39. Ademais, observa a crítica literária paulista, a opção por um olhar fragmentado e descontínuo do mundo e a atualização de uma linguagem que estivesse em sintonia com o seu tempo demonstra a incorporação de elementos fundamentais da modernidade que a autora afirma não ser uma novidade em si visto que nos modernistas de 1922 também podem ser notados. Esses elementos,

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O sentido de contra-hegemônico aqui utilizado deriva da formulação, elaborada pelo filósofo italiano Antônio Gramsci, de hegemonia, ou seja, a compreensão de que o poder das classes dominantes sobre o proletariado e sobre todas as classes dominadas dentro do modo de produção capitalista advém não apenas do domínio dos aparatos repressivos, mas fundamentalmente pela “hegemonia” cultural, através do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação, buscando a manutenção dessas classes subalternizadas para que essas permaneçam naturalmente e convenientemente submissas, inibindo dessa forma suas pontencialidades revolucionárias. A contra-hegemonia se dá através de estratégias de contraposição fomentadas por setores da sociedade a esse controle, aplicadas nos âmbitos político, social e cultural (Cf. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). 39 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. Cit.p.64.

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perceptíveis seja no ideal pessimista do herói moderno baudelairiano que assume diversas facetas e personalidades em um mundo de existências desordenadas devido à velocidade das transformações sociais proporcionado pelo processo de modernização, em que, porém, o surgimento da técnica revela-se a negação da imagem do mundo; seja na constatação otimista de Walter Benjamin de que essa perda da imagem do mundo faz com que este seja representado de forma alegórica, ou seja, a representação do outro, dos vários outros e não do todo, pois suas alusões são pluralistas, tendendo à diversidade40. Se na reflexão de Benjamin a alegoria é a chave para se compreender a modernidade, essa estética é, na opinião da autora, reativada a partir de meados da década de 1960 de forma marcante pelos tropicalistas “num momento em que a industrialização e a modernização do Brasil – que vinham sendo o pano de fundo dos debates desde o fim da década de 1950 – já estavam definitivamente colocados”41. Todavia, este conceito sofrerá críticas, especialmente de setores do pensamento de esquerda daquele período que, como observou Roberto Schwartz, exerciam uma relativa hegemonia nos círculos culturais do país. Para Hollanda, no plano geral de ideias que influenciavam a crítica naquele período, György Lukács concluirá que a alegoria é um procedimento que nega a realidade imediata, detendo-se apenas à superficialidade de alguns de seus elementos. De fato, Lukács acreditava que o papel principal da arte é o de contribuir para a transformação da consciência do indivíduo, apresentando-lhe formas alternativas e profundamente críticas de confronto com a sociedade capitalista e seu modo de produção, sendo assim, partindo da análise de uma das, por ele consideradas, formas abstratas da realidade, no caso, a ornamentística ou a arte decorativa através da história, o pensador húngaro considerava que o alegórico se baseia.

[...] en el hecho deque no existe, entre el modo esencial sensible y visible de los objetos representados y su sentido que descubre por composición El todo de la obra de arte, ninguna conexión fundada en la esencia misma de los objetos. Visto desde esa objetividad, toda interpretación alegórica es más o menos arbitraria, y a veces lo es totalmente.42

Ao criticar a estética alegórica e o fenômeno da Tropicália, Roberto Schwartz efetua uma análise da conjuntura política e cultural do Brasil de antes e depois do golpe militar de 1964. Schwartz, influenciado pelo pensamento de Luckács, vai definir o momento como de crise,

40

Ibidem.p.67. Ibidem.p.68. 42 LUCKÁCS, György. :1966, p. 349 41

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marcado pela combinação entre o moderno e o antigo, ou seja, pelas “manifestações mais avançadas entre a integração imperialista internacional e a ideologia burguesa mais antiga – e obsoleta – centrada no indivíduo, na unidade familiar e suas tradições”43 (SCHWARTZ: 1992 p. 73). Sendo assim, segundo ele, o golpe militar de 1964 foi o instrumento para a anexação da economia brasileira aos desígnios do capital internacional, impondo um modelo político e cultural conservador e anacrônico a serviço de um modelo modernizador que passa a ser implementado sob o julgo da força, da censura e da submissão – em contraste ao do projeto nacional desenvolvimentista cuja modernização perpassaria pelas relações de propriedade e poder e pela ideologia, cedendo às pressões de esferas da sociedade civil e das necessidades de desenvolvimento nacional. Interrompido o modelo de modernização da nação a partir de fórmulas locais advindas dos debates promovidos por setores da cultura, da academia e das organizações políticas e de trabalhadores, restava aos seus atores assimilar a nova realidade e desenvolver estratégias que retomassem as discussões e reivindicações nos termos,

ou não, da nova

conjuntura. Para o sociólogo, os tropicalistas assimilaram esse momento fazendo justamente a junção entre o moderno e o arcaico, tendo como resultado uma espécie de alegoria do Brasil. Segundo ele,

a reserva de imagens e emoções próprias ao país patriarcal, rural e urbano, é exposta à forma ou técnica mais avançada ou na moda mundial – música eletrônica, montagem eisensteiniana, cores e montagem do pop, prosa de Finnegans Wake, cena ao mesmo tempo crua e alegórica, atacando fisicamente a platéia. É nesta diferença interna que está o brilho peculiar, a marca de registro da imagem tropicalista. O resultado da combinação é estridente como um segredo familiar trazido à rua, como uma traição de classe. É literalmente um disparate – é esta a primeira impressão – em cujo desacerto, porém, está figurando um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista (1992, p.74).44

Entretanto, por sua vez, Marcelo Ridenti sugere uma nova interpretação sobre a imbricação entre o binômio moderno versus arcaico, assim como urbano versus rural e estrangeiro versus local. Para o sociólogo paulista não se trata de

resistir à indústria cultural e à ditadura encastelando-se romanticamente no passado, mas de mergulhar de cabeça nas novas estruturas para subvertê-las por dentro, incorporando desde as últimas conquistas das vanguardas [...] até as tradições mais arcaicas, enraizadas na alma dos brasileiros45 (RIDENTI: 2000, p. 284).

43

SCHWARZ, Roberto. Op.Cit.p.73. SCHWARZ, Roberto. Op.Cit.p.74. 45 RIDENTI. Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: artista da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.269. 44

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Isto significa uma ruptura com uma das vertentes do pensamento nacional-popular, especificamente com a relacionada com a do PCB, mas não com todos os aspectos da cultura política brasileira, pelo menos à tecida desde o final do século XIX. O projeto tropicalista, um dos frutos diferenciados da cultura política engendrada naqueles anos, buscava superar o “nacionalismo” ao mesmo tempo negando-o e incorporando-o, preservando, assim, discussões em torno da problemática da identidade brasileira e do subdesenvolvimento, elaborando uma crítica ao que Ridenti denomina de “romantismo racionalista e realista nacional-popular”, mantendo-se, porém, no âmbito da cultura política romântica da época46. Por sua vez, Heloísa Buarque de Hollanda - ao chamar a atenção para uma ausência de uma percepção mais ampla sobre o Movimento Tropicalista que desse conta de seus efeitos críticos especialmente no que concerne à linguagem e a subversão de valores e comportamento – critica o citado ensaio de Roberto Schwartz e sugere que as preocupações do Tropicalismo eram referentes ao “aqui e o agora”, pois o movimento pensava “na necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, rompendo com o tom grave e a falta de flexibilidade da prática política vigente”47. E será exatamente por essa postura escrachada e o afrontamento à postura do bom comportamento, observa Hollanda, que Gilberto Gil e Caetano Veloso acabariam sendo exilados pelo regime militar. Por outro lado, ao analisar filmes do Cinema Novo e do Cinema Marginal que adotaram a alegoria como recurso para experiências estéticas e crítica política, tendo como fonte de inspiração e interlocução também o movimento tropicalista, Ismail Xavier cita alguns elementos do contexto da cultura da época que esses movimentos refletiam. Primeiramente ele aponta uma mudança de direção na consciência dos artistas e dos críticos em relação à Indústria Cultural no Brasil devido à “urbanização, pelo desenvolvimento dos meios audiovisuais e pelo boom da propaganda. O mercado cultural e o da informação crescem em importância e se transformam em área privilegiada de interesse.”48 Da mesma forma, Xavier observa que um determinado grupo social acaba se destacando nesse momento cultural e político vivido pelo país: “Na vida cotidiana, um dado plenamente visível é a proeminência dos jovens na vida política, na esfera do consumo e da propaganda, e na produção de cinema, teatro e música popular”49.

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Ridenti dialoga com a taxonomia elaborada pelos sociólogos Michael Löwy e Robert Sayre no ensaio Romantismo e Política que defendem a permanência dos princípios do romantismo na cultura e na política a partir do final do século XIX até os nossos dias (Cf. LÖWY, Michael, SAYRE, Robert. Romantismo e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003). 47 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. Cit.loc.Cit. 48 XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.p.40. 49 Idem.

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O teórico curitibano do cinema avalia ainda que essa “nova consciência” tem como expressão mais significativa a Tropicália o qual o Cinema Novo, no processo de assimilação da estética daquele movimento efetuou uma crítica ácida ao populismo anterior a 1964. Observa ainda que o Cinema Novo, mesmo sem recorrer ao advento da paródia, nem mesmo se valer de representações da sociedade de consumo como fizeram a Tropicália e o Cinema Marginal, “ressalta a dimensão grotesca de um momento histórico e permeia a discussão política com a exibição agressiva do kitsch , associando as ‘desmedidas nacionais’ e o descaminho da história”50, identificando, assim, o golpe militar como o momento do fracasso do projeto de reformas do pensamento nacional-popular, devido à distância mantida das classes populares, que permaneceram alienadas – como também a classe média. Ao analisar o filme Opinião Pública do diretor Arnaldo Jabor, Xavier resume as intenções dessa primeira fase do Cinema Novo e põe em evidência as diferenças de estratégias e de leitura da realidade social e cultural brasileira em relação à Tropicália e ao Cinema Marginal:

O filme penetra nos estúdios de TV, nas boates e nos bares, nos ambientes de reunião de turma e na república de estudantes, na fila do alistamento militar [...] E exorcizando qualquer possível fascínio, uma fala over empostada – o “discurso verdadeiro” – avança a interpretação do que vemos, imprimindo ao documentário um tom de tese sociológica. Na fala do locutor, o cantor de rock, a cultura jovem, Chacrinha, o melodrama da TV, os emblemas da incipiente sociedade de consumo e as “superstições do povo” são sempre referidos como alienação política.51

No plano estético, a Tropicália não apenas foi a expressão clara e evidente dessa “nova consciência” de que fala Ismail Xavier. Na interrogação, no experimentalismo e na agressão, o tropicalismo de 68 se fez confluência de inspirações; enquanto experiência de montagem do diverso, esse movimento da contracultura brasileira trouxe múltiplas tradições para o centro da cultura de mercado. Abrangente em seu diálogo, afirmou uma poética muito peculiar que o auxiliou a cumprir esse papel de síntese, pois, no seu retorno a Oswald de Andrade, fez da intertextualidade o seu maior programa, completando, deste modo, o arco de reposições do Modernismo de 20 realizado no binômio 50/60. No entanto, a antropofagia do tropicalismo de 68 se insere nesse contexto completamente diverso de que estamos tratando, no qual uma indústria cultural vigorosa e presente tornara-se hábil em absorver “a subversão e o veneno da paródia”52. A

50

Ibidem.p.41. Ibidem.p.42. 52 Ibidem, p. 20. 51

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lógica intertextual tropicalista deveria, portanto, se reinventar a todo tempo para não perder sua força de contestação. É difícil hoje, no momento em que a citação é prática rotineira da mídia, recuperar o contexto em que se fez possível um programa intertextual com aquele sentimento de ruptura que lhe deu a Tropicália, tendo como focos, simultaneamente, a questão nacional e a questão de uma estética dos meios.53 O programa tropicalista, na medida em que opera insistentemente com os recursos da intertextualidade, da citação e da colagem, demonstra uma vocação metalingüística intrínseca. Tanto em suas composições musicais — sem dúvida as mais características do movimento — quanto nas artes visuais, o procedimento metalingüístico ocupa papel central. No seu jogo de contaminações — nacional/estrangeiro, alto/baixo, vanguarda/kitsch — o Tropicalismo pôs a nu o seu próprio mecanismo. Ou seja, chamou a atenção para o momento estrutural das composições, lembrando um tipo de efeito de estranhamento que ganha maior nitidez nas artes visuais e de mise-en-scène; as que, não por acaso, tiveram papel fundamental para o impacto das canções. Pela função que cumpriu no procedimento tropicalista, a citação se articulou a um outro protocolo de modernidade, igualmente programático e variado em suas acepções: a reflexividade, a exibição dos materiais e do próprio trabalho da representação. Essa “vocação metalingüística” do tropicalismo, quando encarada dentro do cinema, assume outra dimensão, muito particular, dada a forte relação da técnica cinematográfica com a fascinação. Sendo assim, pode-se afirmar que o Cinema Marginal é a expressão tropicalista em suas vestes cinematográficas. Tal afirmação não é definitiva, já que a confluência de inspirações deste novo cinema abarca ainda outras experiências, como a da Nouvelle Vague, notadamente as experiências conduzidas pelo já citado cineasta francês Jean-Luc Godard. São estes, pois, os vértices que se destacam na conjuntura daquele final da década de 1960 e que propiciam o surgimento dessa nova visão de cinema e aplicação da linguagem cinematográfica que é o Cinema Marginal: no plano político-ideológico, o soterramento das expectativas progressistas do início da década e o conseqüente abandono dos projetos de poder; no plano sócio-cultural, o pleno estabelecimento de uma sociedade de consumo de massa e o forte papel exercido por uma cada vez mais presente indústria cultural; no plano tecnológico, os avanços dos meios audiovisuais; e, por fim, no plano estético, o movimento da Tropicália, em sua retomada ao antropofagismo de Oswald de Andrade, e as experiências mais radicais da Nouvelle Vague francesa e do cinema de Godard.

53

Idem.

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1.2. Cinema Brasileiro: uma cinematografia marginal? O tema da marginalidade do Cinema Brasileiro passa primeiramente por analisar a estrutura de produção de sua cinematografia, tomando-se como parâmetro o filme enquanto bem cultural e mercadoria. Segundo Fernão Ramos54, é possível considerar três etapas na realização do valor da “mercadoria cinematográfica”: a produção da mercadoria, ou seja, do filme, sua circulação no mercado através da distribuição e a efetiva realização de seu valor por meio da exibição. Essa cadeia que se constitui na chave para o entendimento da atividade cinematográfica revela, em sua parte final, a questão da aceitação do público. Para Ramos, tanto aqueles comprometidos com o lucro como fim de suas atividades como os que enfatizam a produção, privilegiando a criação artística, têm a audiência como espectro a ser encarado. Nesse sentido, pode-se eleger dois momentos da produção de cinema no Brasil em que essas duas perspectivas são observadas: os filmes dos estúdios Vera Cruz e o Cinema Novo. A Companhia Cinematográfica Vera Cruz surge, em 1949, com o apoio de intelectuais e principalmente da elite financeira de São Paulo, com a pretensão de estabelecer no Brasil um esquema industrial de produção de filmes55. Essa tentativa de tirar o cinema brasileiro do rol de atividades marginais levou seus investidores a depreender vultosas quantidades de capital para aquisição de imóveis, construção de gigantescos estúdios, contratação de artistas e técnicos estrangeiros, obtenção de equipamentos, associação com empresas estrangeiras de distribuição, além de esquemas publicitários nunca antes vistos pra promover filmes no país. Com a finalidade de afirmar uma produção cinematográfica local de “qualidade internacional” – tendo Hollywood como parâmetro, tanto no que concerne à forma clássica das narrativas dos filmes, como ao seu formato de produção - a Vera Cruz buscava, audaciosamente, consolidar um público interno consumidor de cinema brasileiro, bem como atingir o mercado externo. Entretanto, os responsáveis por essa empreitada – o engenheiro italiano Franco Zampari e o industrial paulista Francisco Matarazzo Sobrinho - desconsideraram encontrar soluções para o abismo que havia no Brasil entre a produção e as duas etapas finais: a distribuição e a exibição. Sendo assim, cinco anos e dezoito longas-metragens após a sua criação – dentre eles sucessos de bilheteria como “O Cangaceiro”(1953) de Lima Barreto e “Sinhá Moça” (1953) de Tom Payne - o estúdio paulista 54

RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.16. A nova burguesia urbana paulista, empenhada em superar a vocação provinciana, fomentou um sistema de produção cultural até certo ponto democratizante e liberal, e que se opunha aquela burguesia cafeeira para a qual a valorização da cultura tinha mera função aristocratizante. Cf. Galvão. Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 55

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entrou em decadência, sucumbindo a uma série de questões como a lentidão na comercialização dos filmes que impossibilitava o financiamento de outras produções, a inacessibilidade do mercado externo devido ao desinteresse das distribuidoras estrangeiras em promover a concorrência, os altos custos das produções, a falta de barreira à produção estadunidense – que detinha também naquela época quase o monopólio de exibição nas salas - e, principalmente, a não criação de uma grande cadeia nacional distribuidora e exibidora integrada à produção – exibidores e distribuidores ficavam com mais da metade da arrecadação da bilheteria. Por sua vez, nos seus primeiros filmes, o Cinema Novo privilegiou uma das etapas deste processo (a produção) -, desvinculando-se das exigências e expectativas da realização do valor da mercadoria (a exibição), enfatizando “a dimensão pessoal do autor e a individualidade de sua inspiração”, possibilitando a liberação do criador da “dialética da mercadoria”.56 Os cineastas do Cinema Novo, desta forma, assumiam estar à margem dos esquemas industriais de produção e exibição, o que se refletia também em suas soluções narrativas. Glauber Rocha explicitou essa relação com a indústria do cinema no artigo “Uma estética da Fome” de 1965, ao defender a marginalização do cinema do mercado uma vez que este tinha o compromisso com a “mentira e a exploração”. Esta afirmação do cineasta baiano revela muito mais uma crítica político-ideológica aos meandros do cinema industrial do que propriamente uma posição efetiva sobre a não realização do valor do objeto fílmico na exibição. A preocupação de Rocha e dos demais cineastas cinemanovistas estaria assentada na produção de películas que interviessem de forma concreta na realidade a partir da abordagem crítica das condições de vida da maioria do povo brasileiro, sendo os filmes um veículo de conscientização dessa realidade. Todavia, esse intento revelou-se um fracasso uma vez que as obras não atingiam o seu público alvo, ou seja, a maioria da população, visto que não houve uma preocupação de se estabelecer circuitos alternativos para a exibição dos filmes. Outra razão para o não alcance destas expectativas estaria na utilização de uma narrativa fora dos parâmetros clássicos57 a qual a grande maioria do espectador de cinema estava habituada. Assim, o Cinema Novo debateu-se em vão, durante anos, contra a indústria cultural, pois acabou cedendo a seus atrativos; o dilema dos primeiros filmes – como atingir o povo sem perpassar pela

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RAMOS, Fernão. Op. Cit.p.17. O entendimento de narrativa clássica estaria ligado, de um modo geral, às técnicas cinematográficas ligadas à clareza, à homogeneidade, à linearidade, à coerência da narrativa, bem como ao seu impacto dramático. Esses elementos dominam as cenas e as seqüências de um filme, sendo estes ligados por nítidas figuras de demarcação. Segundo Francis Vonoye e Anne Goliot-L’été, “o encadeamento das cenas e das seqüências se desenvolve de acordo com uma dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa centra-se em geral num personagem principal ou num casal (...), de ‘caráter’ desenhado com bastante clareza, confrontado a situações de conflito. O desenvolvimento leva ao espectador a responder às questões ( e eventualmente os enigmas) colocadas pelo filme” Cf. VANOYE, Francis, GOLIOT-L’ÉTÉ, Anne. Ensaio sobre análise fílmica. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994.p. 27. 57

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indústria – é substituído pela afirmação de que o mercado é um mal necessário, pois acaba se constituindo, em última análise, como um veículo de difusão válido para atingir o “povo”. A produção cinemanovista à margem do circuito não consegue estabelecer circuitos alternativos de distribuição e exibição de filmes, não atingindo as camadas populares, se adequando, desta forma às exigências do esquema industrial. A cultura alternativa apresenta-se em oposição ao cinema novo chocando-se contra essa mudança de trajetória. Nesse quadro de conflito entre o caminho em direção ao mercado e a ideologia alternativa que surge o Cinema Marginal58. Esses dois momentos do Cinema Brasileiro apesar de se configurarem como formas antagônicas dos pontos de vista do modo de produção e da estética revelam alguma similaridade ao observarmos os obstáculos que produtores e diretores encontraram na tentativa de afirmação de uma cinematografia nacional - seja através da conquista de parte do mercado interno ou do público - em busca de superar sua condição marginal em relação a outras cinematografias. Essa condição, por sinal, pode ser notada em toda a trajetória do cinema brasileiro59, apesar de ser possível destacar momentos em sua história em que filmes nacionais experimentaram sucesso de mercado e público como por exemplos na época das Chanchadas. Por outro lado, é importante observar que a situação periférica não apenas do cinema brasileiro, mas das atividades cinematográficas de boa parte do então denominado Terceiro Mundo 60 gerou diversas teorizações nos países que então detinham essa alcunha. Influenciados pelas idéias que fomentaram o neorealismo italiano e seu jogo cênico que utilizava técnicas de documentário, equipamento leve que remetia a um cinema tecnicamente pobre, filmado ao ar livre e voltado para uma abordagem dos problemas sociais – no caso, da Itália do pós-guerra. Sendo assim, diversos diretores e críticos latino-americanos, africanos e asiáticos que se contrapunham ao domínio comercial e estético de Hollywood passaram a defender um cinema comprometido com as questões nacionais, tendo um viés popular e a partir das experiências e perspectivas de seus locais de fala. Ensaios e manifestos como “Em direção ao terceiro cinema” de Fernando Solanas e Octávio Getino (1969), “Por um cinema imperfeito” de Julio Garcia Espinoza (1969) e no Brasil “Estética da Fome” de Glauber Rocha (1965) tinham em comum uma concepção de cinema em que as condições de pobreza de seus países estivessem não apenas nas temáticas das películas, mas também nos seus meios de produção. Ademais, os realizadores defendiam uma intervenção direta na vida da sociedade,

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RAMOS, Fernão. Uma forma histórica de cinema alternativo e seus dilemas na atualidade. In: STOTZ, Eduardo Navarro et alii. 20 anos de resistência: alternativas da cultura no regime militar. São Paulo: Espaço e Tempo, 1986.p. 59 Cf. GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

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sendo as pessoas comuns protagonistas de suas próprias histórias, buscando, desta forma, dissolver as fronteiras entre o artista e o público. Aprofundando essas questões, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes considerou em um conhecido ensaio61 que o cinema brasileiro sempre foi subdesenvolvido. Ao comparar a cinematografia brasileira com a de “países desenvolvidos” como Estados Unidos e Japão, o autor sentencia a incapacidade da sétima arte feita no Brasil de por si mesma escapar a essa condição, sugerindo ser conjuntural os momentos de expansão da sua produção de filmes. Apesar de reconhecer exceções como a do cinema indiano que mesmo em condições de subdesenvolvimento se sobrepõe às produções estrangeiras, Gomes associa o atraso tecnológico e a incapacidade desses países em estabelecer soluções para a distribuição e a exibição de seus filmes como fatores que impedem a consolidação dessas cinematografias. Para comprovar sua hipótese aplicada ao cinema brasileiro, ele traça um panorama da trajetória da sétima arte no Brasil, desde os seus primórdios até o início da década de setenta, destacando os momentos de tentativas de se estabelecer uma regular produção de filmes no país ou mesmo um mercado consumidor de filmes nacionais como visto nas experiências dos grandes estúdios Cinédia, Atlântida, Vera Cruz e outros. Por outro lado, Jean-Claude Bernardet ao revisitar a historiografia do cinema brasileiro62 questiona não apenas essas afirmações de Gomes como a de uma tradição de historiadores como Adhemar Gonzaga e Alex Vianny, ao observar a ausência de fontes e pesquisas consistentes para confirmar o fracasso ou o sucesso de público dos filmes produzidos no Brasil. Segundo Bernardet, “como, tradicionalmente, o trabalho de história volta-se para a produção e menospreza a exibição, não há como se ter informações sobre o público que resulta numa construção mental” 63. O autor prossegue em sua análise crítica dos procedimentos de pesquisa (não) adotados pelos citados historiadores propondo aos mesmos uma metodologia que ao invés de isolar a produção de cinema no Brasil, a articulasse com as outras duas etapas – distribuição e exibição - de viabilização de um filme, “não só para elaborar hipóteses sobre comportamentos e gostos do público, como para melhor analisar o próprio filão produção.”64 Desta forma, é possível concluir que o cinema marginal e sua exaltação ao que estava à margem da indústria do cinema tanto do ponto de vista da viabilização do filme quanto das suas estratégias narrativas – direcionadas para um cinema experimental e distante dos padrões tradicionais de narrativa - condensa a idéia de que as próprias condições apresentadas para a 61

GOMES, Paulo Emílio. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro – metodologia e pedagogia. São Paulo: Annablume, 1995. 63 Idem. p. 68. 64 Idem.p.68. 62

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produção de filmes no Brasil, intimamente relacionadas à situação socioeconômica do país, e a partir do legado das primeiras formulações estéticas do Cinema Novo, impelem e justificam certa posição periférica ou marginal do seu cinema. Ademais, admite-se que a própria trajetória do cinema brasileiro, no que tange à sua posição em relação às cinematografias hegemônicas, especialmente, à dos Estados Unidos e sua indústria monopolizadora, é marginal considerando aspectos da relação do público brasileiro com os filmes produzidos no próprio país65, apesar da falta de pesquisas substanciais que atestem o gosto do espectador de cinema no Brasil.

1.3. Cinema Marginal: o filho rebelde O começo dos anos de 1960 foi marcado pela perspectiva de que o Brasil e a América Hispânica, além de outros países que possuíam a alcunha de Terceiro Mundo, estivessem no meio de uma gama de transformações que concretizaria a utopia revolucionária. Todavia a história trilhou um itinerário diferente: regimes ditatoriais surgiram em toda a América Latina, interrompendo o sonho da Revolução e sedimentando a condição de periferia subalternizada da região. Para estudar a produção cultural brasileira no final daquela década — notadamente a partir da promulgação do AI-5 no ano de 1968 — é necessário levar em conta o papel do artista frente a falta de sincronia entre expectativas nacionais e a realidade, esta sim, cada vez mais firme na negação de uma suposta disposição do país em ir em direção de capitalismo mais avançado. Todavia, dentro do âmbito da cultura, a instituição da ditadura militar no país acionou um contragolpe estético de viés revolucionário, de que são expressões, por exemplo, o movimento Tropicalista, a encenação de O Rei da Vela — por José Celso Martinez Corrêa, o Cinema Novo e o próprio Cinema Marginal. Na sétima arte, tornou-se clara a vontade dos diretores em refletir sobre a condição do Brasil naquele momento; denominações como subdesenvolvimento e terceiro mundo ganharam relevância e passaram a ser insistentemente citados pelos diretores nos seus filmes. Ao mesmo tempo, esses cineastas encaravam o desafio de produzir respostas, em termos de linguagem, à questão da relação obra-público, ou seja, quanto a ceder ou não às formas padronizadas de comunicação com a maioria dos espectadores. Esta questão, por sinal está vinculada com o debate, muito presente entre a década de 1950 e início da de 1960, sobre o cinema de autor, conceito que surge na revista especializada Cahiers du Cinéma, a partir de artigos do então futuro cineasta François Truffaut, que opunha, implicitamente, arte e mercado. O chamado cinema de autor questionava a valoração de um filme pelo seu sucesso ou seu fracasso

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comercial. Segundo Ismail Xavier, essa questão da eficiência de mercado foi um dos divisores na polêmica que envolveu cineastas do Cinema Novo e uma nova geração que exigia a continuidade de uma estética da violência, de um cinema mais empenhado na expressão radical do autor do que nas concessões viabilizadoras dos filmes como mercadoria66. O período, rico em debate e militância, propiciou formas de produção alternativas, emancipadas da custosa produção industrial, possibilitando experiências estéticas radicais. Tal emancipação atingiu seu ápice no final da década de 1960, período em que foram produzidos filmes como O Bandido da Luz Vermelha(São Paulo) , Meteorango Kid, herói intergaláctico (Salvador), Bang Bang (Belo Horizonte), Matou a família e foi ao cinema (Rio de Janeiro) – citase aqui filmes feitos em quatro cidades diferentes o que demonstra a disseminação das idéias do movimento. Neste período, a negação do cinema como instituição atingiu seu ápice e tinha como uma das referências e inspiração as vanguardas históricas do início do século XX. Ao mesmo tempo, a problemática da Indústria Cultural e dos meios de comunicação de massa — que, nas primeiras décadas do século passado, gerou intenso debate entre os teóricos e filósofos da Cultura — adquire, nos anos de 1960, uma nova dimensão. No Brasil, a urbanização, o avanço tecnológico dos meios audiovisuais e a escalada da indústria da publicidade e propaganda deflagraram um aprofundamento destas questões. Do mesmo modo, na segunda metade da década de 1960, houve uma nova direção na consciência de artistas e críticos quanto ao tema da indústria cultural no Brasil, gerado pelo crescimento do mercado de bens culturais e de serviços. Aquele foi o momento em que são criadas as faculdades de comunicação e se aceleram as traduções de livros clássicos de análise da cultura de massa e da sociedade do consumo67. Diante disso, o Cinema Marginal optou por diferentes caminhos políticos, éticos e comportamentais em relação ao Cinema Novo, e manteve-se a este, no sentido estético, e, principalmente no poético, ainda mais resistente. Apesar de não ter aberto mão das possibilidades poéticas contidas na Estética da Fome, a Estética do Lixo criticou os novos itinerários percorridos pelos cinemanovistas que passam a procurar os padrões mais convencionais do grande público no final da década de 1960. Os marginais de certo modo radicalizaram a proposta do manifesto glauberiano de 196568. A postura anárquica e comportamental efetivamente contribuiu para levar às últimas conseqüências certos desígnios contidos na Estética da Fome relativos à pesquisa de linguagem e à modernização, fazendo-se incorporar à estética dos filmes a precariedade dos meios, materiais e da produção como um todo. O improviso e a "câmera na mão" como condições

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XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 10. Ibidem, p. 16. 68 XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 11. 67

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necessárias para o ponto de vista do livre questionamento sobre a situação brasileira ("uma idéia na cabeça") parecem ser as credenciais de resistência dos marginais. Por outro lado, o Cinema Marginal não possui a mesma coesão de grupo observada no Cinema Novo. Nesse sentido, pode-se distinguir alguns estilos semelhantes, mas a característica que reúne os filmes em um determinado conjunto bem delimitado é o momento histórico-cultural. O Cinema Marginal se colocou, tanto no plano estético como nas suas formas de produção e distribuição de modo a confrontar-se com as novas posições da maioria dos cinemanovistas em buscas de soluções estética que dialogasse com as normas de mercado, visando uma aproximação de um público de cinema mais amplo. Alguns pontos emergem como cruciais na estruturação desse movimento que não eram percebidos no Cinema Novo: o diálogo com a contracultura e uma abertura para estilos cinematográficos antes desprezados pelos cinemanovistas como a narrativa cinematográfica clássica e o filme de gênero69. Enquanto que o Cinema Novo é geralmente identificado com o realismo soviético e o neo-realismo italiano, o Cinema Marginal aproxima-se da linguagem da Nouvelle Vague Francesa, especialmente no que tange à citação de estilos e gêneros cinematográficos pouco valorizados pelas instâncias de reconhecimento como o western e o filme estadunidense de gangster (no caso do movimento francês) e a chanchada ( no caso brasileiro), - o que possibilitou um novo olhar sobre esse gênero brasileiro rejeitado pelo Cinema Novo - incorporados de forma lúdica às suas narrativas. Nesse sentido, Fernão Ramos resume essa gama de referências e citações como um diálogo afirmativo em relação à sociedade de consumo e da comunicação de massa70. Ramos também classifica alguns grupos dentro do movimento marginal que ele chama de detentores de uma produção mais coesa e uma relação mais próxima: o primeiro grupo é o dos marginais cafajestes: cineastas que filmavam produções rápidas e baratas que atingiam determinada fatia do mercado devido ao caráter erótico de suas abordagens. Dois elementos acabam se originando desta abordagem: uma de ordem estética relativa a uma postura reflexiva, irônica e autoconsciente dos procedimentos narrativos utilizados e outra de ordem histórica no que concerne ao surgimento de um esquema de produção de filmes eróticos verificada na Boca do Lixo conhecida como 69

Ramos distingue as referências ao faroeste nos filmes de Glauber e de Sganzerla apontando uma referência imagética – entendida aqui como alegórica – do primeiro e a incorporação ao texto fílmico dos elementos daquele gênero pelo segundo – o que o autor chama na terminologia de Julia Kristeva baseada na idéia de dialogismo de Bakhtin. Cf. RAMOS, Fernão. Cinema marginal(1969-1973): a representação em seu limite 70

Em Filmes como Meteorango Kid – herói intergaláctico pode-se constatar esse diálogo em diversos momentos como em um sonho do protagonista Lula ao se imaginar na estréia de seu filme “Tarzan e as bananas de ouro” em que um telejornal dá uma chamada direto do Teatro Castro Alves local do lançamento. No final da mesma seqüência duas moças após dar um banho nele fazem comercial do xampu e da colônia usadas.

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pornochanchada. Ramos cita os cineastas Carlos Reichembach (Audácia, Fúria dos desejos, 1970), João Callegaro (O pornógrafo, 1970) e o próprio Rogério Sganzerla( A mulher de todos, 1969) como integrantes deste grupo. O outro grupo se aproximava mais de um cinema experimental aos moldes da Nouvelle Vague francesa e em certos aspectos dialogava com a nova fase do Cinema Novo como Andrea Tonacci, Neville D’Almeida e Júlio Bressane. O Cinema Marginal pode ser dividido ainda pela origem dos cineastas. Os principais estados onde esses filmes foram produzidos foram São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. Em torno de Sganzerla surgiu o movimento paulista que conseguiu uma boa inserção no mercado de exibição graças à produtora Belair. Além de o diretor de “O Bandido da Luz Vermelha”, no movimento paulista ainda fazem parte Ozualdo Candeias que além de “A Margem” também filmou “Meu Nome é Tonho” e “A Herança”. Outros nomes é o de Andréa Tonacci que dirigiu “Bang bang” e João Silvério Trevisan que realizou “Orgia ou o homem que deu cria”. No Rio, Júlio Bressane tornou-se figura central no marginal carioca ao dirigir filmes como “ O Anjo Nasceu”, “Barão Olavo”, “ A Família do Barulho” e “Matou a Família e foi ao Cinema”, entre 1969 a 1973. Outro destaque carioca é Elyseu Visconti que concebeu os longas-metragens “Os Monstros de Babaloo” e “O Lobisomem, o Terror da Meia-Noite”. Em Minas Gerais, Neville d´Almeida foi o grande mentor que juntamente com Sylvio Lanna, João Batista de Andrade e Geraldo Veloso faziam parte da divisão mineira. Na Bahia, André Luis Oliveira com Meteorango Kid, herói intergaláctico, Álvaro Guimarães com Caveira, my friend e O Anjo Negro de Jose Umberto foram as obras que sobreviveram às adversidade da produção local. Se no aspecto relacionado à coesão de grupo é possível notar diferenças entre “marginais” e cinemanovistas não é possível afirmar com a mesma certeza em relação à estética. Além dos aspectos geracionais e mesmo conjunturais – como a influência do ideário contracultural em parte da juventude ao redor do mundo - percebe-se que em todos esses segmentos do Cinema Marginal houve uma radicalização da “política de autor”, ou seja, obras cujo estilo do diretor fosse visível e preponderante sobre o filme nas quais através de recursos estilísticos ou estéticos o diretor conseguisse expressar sua visão de mundo e de cinema, tal qual uma assinatura. Assim, a partir da lógica de reassimilação de campos da arte considerados na época descartáveis e à margem das instâncias oficiais de reconhecimento: filmes de gangsteres, faroeste, histórias em quadrinho, filmes de terror e toda uma gama de referências da cultura pop, a maioria desses filmes fará um recorte intertextual com essas diversas manifestações da cultura de massa que são introduzidas em suas estruturas narrativas como estratégias de representação, dando dessa forma, uma noção de homogeneidade aos filmes sejam eles produzidos no Rio de Janeiro ou na Bahia. O grotesco ou o abjeto é uma dessas estratégias: cenas de lixo, ruas e prédios sujos, pessoas vomitando ou 43

mastigando grande quantidade de comida, tirando secreção do nariz, rolando na lama e principalmente cenas de sangue. Segundo, Fernão Ramos nessa diegese fílmica há uma espécie de negação da representação do nobre71. Citando como exemplo “A Margem” de Ozualdo Candeia filme considerado marco do Cinema Marginal –, o autor observa que “o universo do ‘baixo’ se reflete não só ao nível das ações dos personagens desprovidas de intenções altruístas ou outras valoradas positivamente pela moral, mas principalmente pela significação imagética da abjeção”72

Deslocando sua análise para o âmbito da política, Ismail Xavier encontra nessas imagens abjetas soluções alegóricas para representar um Terceiro Mundo à deriva em sua realidade grotesca de corrupção, miséria e boçalidade fazendo do “contexto nacional uma província tragicômica às margens do mundo civilizado”73. Para o autor, essas “agressões” são respostas assumidas ao período de repressão imposto pelo governo militar através do AI-5, desfazendo qualquer dimensão utópica, característica do Cinema

Novo, ao adotar

uma encenação

escatológica “feita de vômitos, gritos e sangue” exacerbando o estilo kitsch e cultuando uma espécie de “horror subdesenvolvido”. Por sua vez, Jean Claude-Bernardet em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo74 ao apontar certo reducionismo interpretativo que o termo “Marginal” acabou impondo aos filmes, observa laços semelhantes nas estruturas narrativas de filmes cinemanovistas e marginais realizados no mesmo período. Revendo filmes de cineastas ligados ao Cinema Novo como “Pindorama” de Arnaldo Jabor ou “Os deuses e os mortos” de Ruy Guerra, Bernardet verifica que “ a viscosidade da lama, o corpo em decomposição, a degradação está presente naqueles filmes como em muitos filmes ‘marginais’”. Desta forma, o autor sugere, a partir de uma tentativa de empreender um novo olhar sobre a cinematografia dos anos de 1960 e 1970, que essas diferenciações apontadas pelo conceito tradicional de Cinema Novo e Cinema Marginal são resultado da “conformação político-ideológica vigentes na época”, sendo necessário no presente uma análise ampliada dos filmes realizados naquele período que busque antes a sua materialidade do que suas significações e ideologias.

71

RAMOS, Fernão. Op cit. p.116. RAMOS, Fernão. Op cit. p.116. 73 XAVIER, Ismail. Cinema e Tropicalismo: rupturas. In: XAVIER, Ismail, BERNARDET, Jean-Claude, PEREIRA, Miguel. O desafio do cinema: a política de estado e a política dos autores. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1985.p. 19. 74 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema marginal? Caderno Mais!. Jornal Folha de São Paulo: domingo, 21 de junho de 2001. p.08-10. 72

44

1.4. Cinema Novo e Cinema Marginal: continuidade e ruptura O Cinema Marginal desvincula-se do Cinema Novo no que concerne ao compromisso e expectativas sociais empreendidas pelo último. Em certo sentido, os cineastas marginais não se vinculam a qualquer setor político e social da sociedade. A marginalidade no cinema brasileiro não se interessa em assimilar ao seu discurso a máxima da intervenção da obra na realidade com o objetivo de transformá-la75, ao contrários os jovens diretores passam a questiona-la. Este discurso elaborado pelos cineastas do Cinema Novo e no qual Glauber Rocha é “[...]o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua mise-en-scène é uma política.”76 . Enquanto o Cinema Marginal se utiliza de alegorias pedagógicas para comunicar uma mensagem que visa a transformações políticas na sociedade, o Cinema Marginal faz uso da irreverência, do deboche, do kitsch, do grotesco e da ironia para formular um cinema provocativo sem priorizar qualquer política de intervenção na realidade ou conscientização das massas. Tratarse-ia de certo desengano que fica muito bem ilustrado com uma das frases inicias de O Bandido da Luz Vermelha: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha” e repetida como citação em Meteorango Kid pelo personagem Lula na cena em que este e os amigos Caveirinha e Zé consomem drogas e refletem sobre suas vidas. O filme de Sganzerla é muitas vezes citado como um divisor de águas. Ele pode ser entendido, segundo Fernão Ramos, como “o ponto de partida para o que mais tarde seria o Cinema Marginal”77. O Bandido “pode ser compreendido como o deflagrador deste processo, que se apresenta como uma ruptura que parte do bojo do Cinema Novo e vai, aos poucos, se distanciando dele”78. Terra em Transe mais do que está filiado ao movimento Cinema Novo representa em grande medida a crise desse cinema e nesse sentido o filme de Rocha e o de Sganzerla se convergem, no sentido de uma transição geracional de idéias sobre cinema e sobre o Brasil. Os dois filmes são produtos de uma mesma crise em que os diretores percorrem trilhas opostas de um mesmo itinerário. O cineasta baiano investiga os equívocos de sua geração enquanto que o “marginal” paulista volta-se para o futuro da sua. Ao analisar as alegorias apresentadas nos filmes Terra em Transe e O Bandido da Luz Vermelha, Ismail Xavier conclui que

as alegorias se fizeram expressões encadeadas, ou da crise da teleologia da história, ou de sua negação mais radical, marcando um corte frente a figurações anteriores da história, passagem 75

RAMOS, F. Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em seu Limite. São Paulo, Brasiliense, 1987, pg.28. ROCHA, G. Crítica do Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p. 14. 77 Ibidem, p. 78. 78 Carim Azeddine em artigo intitulado “A estética do lixo do bandido Sganzerla” In www.contracampo.com.br. 76

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que encontrou seu termo final nas expressões apocalípticas saídas da nova geração que rompeu com o Cinema Novo no final da década. Em tais expressões, a perplexidade e o sarcasmo se traduzem em estruturas agressivas que, negando horizontes de salvação, afirmam uma antiteleologia como princípio organizador da experiência. Ao descartar a feição programática do nacionalismo cinemanovista, a nova estética da violência traz o desconcerto e obriga a repensar toda a experiência79.

No segundo trecho, que pertence já ao último parágrafo de sua análise do Bandido — depois de concluida a análise de Terra em Transe —, Xavier conclui:

[...] acentuar a passagem dos emblemas, da fome ao lixo, no movimento que nos leva de Glauber a Rogério, é propor uma formulação econômica da mudança de perspectiva face ao quadro brasileiro. Dentro do contexto da estética da fome, o sertão de Deus e o Diabo é assumido como lugar de uma teleologia e a profecia da Revolução coloca a experiência nacional no centro da ordem mundial. O traço distintivo do presente face à história seria a vocação do Terceiro Mundo para cumprir uma tarefa universal, operar transformações essenciais à humanidade em seu caminho rumo à liberdade. 80

Deslocando-se essa discussão para o âmbito dos três filmes de longa-metragem de ficção baianos. Pode-se dizer que “Meteorango” segue os caminhos do “Bandido” ao se ater à temática e aos questionamentos sobre o futuro de uma geração; já “Caveira” conclui que o importante é viver intensamente o presente mesmo à margem da sociedade e o “Anjo” responsabiliza toda uma tradição do passado pelos erros do presente o que o aproxima das problematizações de Glauber Rocha em Terra em Transe. O protagonista de Terra em Transe procura pelo erro cometido e acredita poder salvar seus sonhos. O “Bandido” como “Meteorango” e “Caveira” já não os tem e de formas diferentes se autodestróem-se.

Tanto Sganzerla, quanto André Luiz Oliveira

(Meteorango) e Álvaro Guimarães (Caveira) elegem estratégias radicalmente diferentes à do Cinema Novo ao colocar em “xeque” o poder do discurso da arte, questionando assim a própria arte e o lugar do artista - não havendo mais espaço para a ideia de que obrigatoriamente o artista precisa ser engajado em sua missão política de “conscientizar as massas”, colocando também na berlinda o poder do discurso cinematográfico. Quanto ao “Anjo”, esse poder da arte de certa forma retorna como forma de denúncia da marginalização do negro e sua cultura. O ‘purismo’ estético dos cinemanovistas, que tinham como referência apenas os cineastas de inquestionável ‘bom gosto’, é substituído pelo processo marginal de incorporação de variadas referências que vai do clássico aos filmes considerados ‘classe B’, com acentuada predileção por estes últimos. Interessa aos marginais exatamente uma crítica à linha “esteticista” do Cinema Novo que tinha como referências cineastas evidentemente com uma obra amplamente conhecida e

79 80

XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 12. Idem.

46

sacralizados nos espaços de reconhecimento. A atração por cineastas e produções classe “B”, assim como a atração pelo estilo kitsch, se desenvolve neste sentido81. A metalinguagem como realização estética programática é outra destacada característica que está presente no Cinema Marginal e não se vislumbrava no Cinema Novo. A colagem, a citação, o pastiche e outras inúmeras manifestações intertextuais ocupam lugar central no “programa” marginal, ao passo que são raras essas mesmas manifestações nas obras cinemanovistas. O dimensionamento da cultura da fome em termos de uma elaboração intertextual, assim como toda problemática metalingüística em torno da “curtição” de gêneros e estilos cinematográficos, está de forma geral ausente do horizonte do Cinema Novo. Não se vislumbra em “Uma Estética da Fome” a possibilidade de questionamento do universo que se combate, através do aproveitamento de seus detritos82. Filmes como O Bandido da Luz Vermelha, Meteorango Kid e Caveira my friend marcam diferenças importantes entre os dois cinemas. Os cenários tipicamente rurais e sertanejos com grandes planos gerais do Cinema Novo, por exemplo, são substituídos por uma urbanidade desconstruída e fragmentada. Enquanto outros cineastas do Cinema Novo se utilizam de uma cultura popular regionalista, volta e meia identificada como baliza de resistência à cultura estrangeira, Sganzerla aproveita os ‘restos’ da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa para representar uma ‘identidade brasileira’ completamente diversa no seu tratamento. A postura ‘esteticista’ do Cinema Novo, muito similar à que se encontra nas rodas literárias — que, com raras exceções, possui um medo enorme de se contaminar com a cultura industrial —, é completamente rechaçada por Sganzerla. O Bandido não tem medo de se “infectar” com os detritos de uma cultura de massa barata. Na verdade, ele não só não teme como parece se sentir atraído por essa cultura - atração pelo vulgar, pelo kitsch, pelo universo da indústria, pela cultura massificada. Existe no Bandido uma vocação para deglutir. Com essa aptidão antropofágica, o Bandido incorpora um sem número de referências culturais sem valorar sua origem. Ao contrário do Cinema Novo — que assim como a tribo do romance O Guarani, de José de Alencar, só canibaliza heróis de elevada coragem —, Sganzerla deglute todo um universo cultural tido como de segundo ordem. Essa capacidade de deglutição é o que distingue de forma radical O cinema marginal do Cinema Novo. A atração antropofágica de O Bandido por todo um mundo industrial, urbano, cinematográfico, que circunda a realidade da metrópole, não contém em si um discurso valorativo que intervenha dispondo este universo numa hierarquia de

81

RAMOS, F., op. cit., p. 76. Ibidem75.

82

47

importâncias83. Outra diferença com o Cinema Novo que encontramos já no Bandido — e que, como dissemos, se estenderá pela vasta produção marginal — é o abandono daquela abordagem séria e reflexiva dos dilemas nacionais. O Bandido, no seu deboche e no seu avacalho, é o “reflexo distorcido da realidade”, “espelho ironicamente deformado pelo subdesenvolvimento”84. A cisão provocada pelo O Bandido da Luz Vermelha mais do que romper com a hegemonia do Cinema Novo, que havia se transformado num

cinema de teses sócio-políticos, o Cinema

Marginal incorpora definitivamente à nossa cinematografia a "contribuição milionária de todos os erros"85 de que falava Oswald de Andrade.

83

RAMOS, F. Op.Cit.45 XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 14 85 Idem. 84

48

2. A CONTRACULTURA NA BAHIA E A FORMAÇÃO DO “SURTO” DE CINEMA MARGINAL Parte da cultura jovem brasileira da década de 1960 assimilou os acontecimentos da chamada contracultura vigente no mundo, incorporando-a a uma reflexão da cultura e da realidade político-social do país naquele período, estabelecendo assim demandas e movimentações em diversas áreas da arte. O capítulo anterior procurou primeiramente mostrar as inter-relações entre alguns desses movimentos, notadamente a Tropicália/Tropicalismo, o Cinema Novo e o Cinema Marginal suas diferenças, perspectivas e estratégias estéticas como a alegoria, para em seguida centrar sua análise ao âmbito do cinema, mais notadamente ao do Cinema Marginal, suas representações, formas de narrativa e relação com o Cinema Novo. O presente capítulo, por sua vez, irá deslocar essas questões para o domínio do contexto cultural baiano, buscando como se deu essa assimilação em nível local. Inicialmente serão trazidos elementos desse contexto cultural desde o advento do Golpe Militar de 1964 até o momento do AI-5. Mesmo que citados de forma apressada, esses dois acontecimentos políticos acabaram norteando ou reconfigurando a cultura hegemônica baiana – a utilização aqui do termo hegemônico torna-se fundamental neste momento para esclarecer que os acontecimentos aqui relatados situam-se em sua totalidade na cidade de Salvador que por ser o centro econômico e político do estado da Bahia, acaba metonimicamente se apropriando do termo “baiano” para designar os fatos da esfera da sua cultura86 -, tendo como conseqüência o surgimento de um circuito quase subterrâneo de produção surgido das bases – ou escombros- de um período de pujança que foi o da chamada “Renascença Baiana”. Para iluminar o percurso dessa cultura local subterrânea, alternativa, marginal ou contracultural será analisada a seção “Cartas do Leitor” do Jornal Verbo Encantado, veículo impresso da chamada imprensa alternativa publicado em Salvador entre os anos de 1971 e 1972 e que tinha como colaboradores muitos dos agentes que fomentaram a contracultura baiana em diversas áreas, inclusive o cinema, como Álvaro Guimarães e Armindo Bião. As “cartas” trazem um pequeno panorama de como aquele momento foi assimilado pelo público e expõe uma faceta exterior às obras e aos artistas daquele período. Em seguida, centraremos a percepção desses acontecimentos nos fatos que fizeram surgir o “surto” de cinema marginal na Bahia, desde os cursos de cinema freqüentados pelos jovens aspirantes a diretores até

a produção e análise dos primeiros curtas. O capítulo será finalizado

com a descrição da gama de acontecimentos que fomentaram os dois filmes de ficção, “69: a construção da morte” e “Akpalô”, cujas únicas cópias foram destruídas ou estão perdidas. 86

Importante destacar que a presente pesquisa não localizou no período abordado filmes produzidos em outras cidades do estado, nem se propôs a averiguar os acontecimentos culturais em outra cidade baiana

49

2.1. O contexto cultural de Salvador entre 1968 e 1972 Em seus primeiros momentos, o golpe militar de 1964 intimidou a produção artística, sem, no entanto, conseguir êxito devido à resistência de seus realizadores e intelectuais em sua maioria filiados a um ideário de esquerda que predominava nos ambientes culturais antes do golpe. Eram, ainda, poucos os mecanismos de controle da cultura, sendo constatado um contraditório clima de flexibilização e tolerância em relação às atividades acadêmicas e ao conteúdo de livros, peças de teatro, músicas, filmes, etc. Imbuídos de colocar o Brasil no rumo do capitalismo multinacional ou tardio – estágio de expansão do capital em áreas até então não mercantilizadas –, e adaptar essa nova etapa às especificidades de nossa economia, os militares, nos primeiros anos do golpe, adequavam os produtos culturais ao circuito nacional e internacional da mercadoria87. Porém, com a decretação do Ato Institucional nº 05, medidas de controle, perseguição e censura foram radicalizadas, atingindo um tipo de conteúdo específico, pois, de um modo geral, a produção dos bens culturais cresceu e se solidificou, sustentada pelo crescimento de um mercado consumidor desses tipos de bens88. Na Bahia, o golpe de 1964 aparentemente teve reflexos negativos mais acentuados do que no eixo Rio–São Paulo, desarticulando um movimento cultural pujante que florescia desde a década de 1950. Grande parte dos intelectuais e artistas baianos migrou para o sudeste do país, enfraquecendo os investimentos e iniciativas no campo da cultura que ficou restrito a alguns “focos de resistência” como o Teatro Vila Velha e O Instituto Cultural Brasil e Alemanha – ICBA. Ademais, juntando-se a certo grau de repressão e censura, houve também a centralização das políticas para o setor no Departamento de Ensino Superior e Cultura – DESC do Governo do Estado da Bahia. Pode-se citar como evento cultural de repercussão na época as Bienais de Arte da Bahia, ocorridas em 1966 e 1968, sendo que a última foi marcada por um clima de medo e terror, culminando com a prisão do artista plástico Juarez Paraíso e do então diretor do DESC – que havia dado apoio oficial a esses dois eventos – o historiador Luís Henrique Dias Tavares. Em sintonia com o projeto de intervenção e organização estatal no âmbito da cultura, em 1967, o Governo da Bahia, comandado por Luís Viana Filho, criou o Conselho Estadual de Cultura com o objetivo de formular políticas públicas nessa área para o estado. Foram estabelecidas metas como o fortalecimento de instituições e órgãos, implementados programas nos municípios do interior, além de terem sido articuladas ações com o setor da educação. Desta forma, oito áreas foram 87 88

Cf. PELEGRINI, Tânia et al. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo, Senac, 2003. Cf. ORTIZ, Renato. Op. Cit.2006.

50

definidas para a concretização dessas metas: difusão cultural, atividades editoriais, teatro, dança, instituições culturais, música, museus e artes plásticas89. Iniciativas como as Semanas de Cultura foram implementadas pelo DESC, visando à interiorização de ações culturais através de caravanas que partiam de Salvador levando professores e expositores, e filme e obras de arte, permanecendo uma semana em cidades previamente escolhidas90. No âmbito da “sétima arte”, o fim do Ciclo Baiano de Cinema é também relacionado ao clima de dispersão dos seus principais realizadores – como Glauber Rocha e Roberto Pires que da mesma forma se transferem para o Sudeste –, bem como às dificuldades de distribuição e exibição dos filmes. Ademais, a maioria das obras acabou proporcionando prejuízo aos seus produtores, o que refreou novos investimentos, interrompendo novos projetos. As atividades de cinema na cidade ficaram restritas à exibição de filmes – predominantemente dos Estados Unidos –, no circuito de salas comerciais e ao Clube de Cinema da Bahia, outro foco de resistência aos rumos da estagnação que as atividades culturais tomavam em Salvador. Capitaneado por Walter da Silveira até a sua morte em 1970, o Clube priorizava a exibição de filmes dos chamados “cinema de autor” ou “cinemas novos” como a Nouvelle Vague francesa ou o próprio Cinema Novo, além dos “clássicos” do neo-realismo italiano e das vanguardas do início do século XX, dentre outros estilos e tendências pouco exibidos no circuito comercial91. No plano da realização de novos filmes, uma primeira tentativa de retomar a produção no Estado foi o curta-metragem O Carroceiro, de Ney Negrão, rodado com poucos recursos em 1966, o que aponta para as novas e difíceis condições de fazer cinema na Bahia. Sem a tutela de produtores como Rex Schindler e Braga Neto ou das empresas surgidas na esteira do Ciclo Baiano de Cinema, e com a ausência de políticas públicas para o setor, evidenciada pela não inclusão da “sétima arte” como uma das áreas eleitas para a intervenção do Governo do Estado na cultura a partir da já citada criação de um conselho estadual, o cinema na Bahia se marginaliza resumindo-se às ações de um pequeno grupo de entusiastas que, através de um processo coletivo e quase artesanal, empreendeu um novo momento de produções de filmes concentrados num período no Estado92. Na Bahia esses ecos rebeldes também foram ouvidos por uma juventude inquieta de classe média, vanguardas artísticas, grupos de universitários principalmente advindos das faculdades de jornalismo e ciências sociais – antigos militantes e simpatizantes de esquerda – e os hippies, dos quais uma parte era originária de outros estados e a outra, a maioria, advinha de camadas sociais mais baixas. Assimilando essas novas visões de mundo para as artes, alguns desses jovens criaram 89

RUBIM, Albino. Op.Cit. 2001. Jornal da Bahia, 21 e 22 de setembro de 1969, caderno 2, p. 01. 91 SETARO, André. Op.Cit.1997. 92 Idem. 90

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um ambiente ao mesmo tempo disperso do ponto de vista da sua organização e calcado em ações coletivas93. Alguns exemplos ilustram bem esse período de inquietação: em 1969, surgiu o grupo Etsedron, anagrama de Nordeste, uma proposta artística radical que envolvia artes plásticas, elementos de música, dança, teatro, cinema e pesquisa de cunho etnográfico, esboçando uma perspectiva multimídia, desenvolvendo um método singular de trabalho coletivo, baseado na convivência com comunidades rurais. Transitando pela contramão do circuito oficial de arte, o grupo – formado por jovens egressos da Escola de Belas Artes da UFBA – problematizou questões como autoria, unidade, originalidade e autenticidade da obra de arte, tendo sido encabeçado pelo artista plástico Édison da Luz e orbitado ao seu redor nomes como Almandrade e Marcio Meirelles94 (MARIANO: 2005). Na música, pode-se destacar “Os Novos Baianos” que, com sua mistura de samba, rock psicodélico, chorinho, afoxé, baião, foi responsável pela trilha sonora de dois filmes do Ciclo “Marginal”, Meteorango Kid, e Caveira, my friend. Grupo surgido também em 1969, e influenciados pelo ideário contracultural e pelo Tropicalismo, os seus integrantes – Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Moraes Moreira, Paulinho e Galvão – adotavam um estilo de vida associado aos hippies, vivendo em regime de coletividade em chácaras e sítios no interior do Estado (Tribuna da Bahia, 25 maio 1970, caderno 2, p.04). Inicialmente conhecidos como “O Desembarque dos Bichos Após o Dilúvio Universal”, o grupo se constituiu como o de maior sucesso entre os jovens da época, lotando shows e se apresentando em festivais locais como o Festival Secundarista de MPB da Bahia. Inspirado pelos festivais nacionais de músicas comuns na época, o Festival foi organizado em 1969 por estudantes, artistas e professores das redes pública e privada de educação, sendo realizado, em sua fase final na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, com o apoio do DESC e de setores artísticos locais. Tendo indícios de que se prolongou durante os primeiros anos da década de 1970, ele foi um dos eventos que mobilizou jovens músicos de todas as regiões da cidade através das unidades de ensino que, a exemplo do Severino Vieira, realizavam festivais internos95. Os eventos no campo das artes da cidade tinham dois tipos de financiamento: aquele viabilizado por verbas do estado e as iniciativas de familiares ou grupo de amigos. Eram aparentemente escassas as produções de companhias privadas como a Roberto Santana Produções que traziam shows e peças de teatro de fora da Bahia, além de produzir espetáculos como 93

BACELLAR, Jeferson. Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade. Rio de Janeiro:Pallas, 2006 94 MARIANO, Walter Emanuel de Carvalho. Etsedron. Salvador, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. 95 Verbo Encantado, 23 a 29 de outubro de 1971, p. 05

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Udigrudi, um musical de caráter experimental, inspirado no ideário contracultural, tendo no elenco jovens atores egressos das Escolas de Dança e de Teatro, com exceção do já experiente ator Mário Gusmão96. O teatro juntamente com a música movimentava o maior número de espetáculos na cidade. Os principais palcos de Salvador eram o Teatro Castro Alves que, na sua maior parte, abrigava montagens com repercussão em outros estados – especialmente companhias vindas do Rio e de São Paulo –, e o Teatro Vila Velha, cujas pautas eram em sua maioria de peças locais, com espaço amplo para as de formato experimental97. Experimentações mais radicais poderiam também ser verificadas, a exemplo das realizadas pelo grupo Família Slams e The Bichos, cujos integrantes, em torno de 20 pessoas, alugaram uma residência no bairro da Boca do Rio para viver em coletividade, pintar, fazer artesanato e realizar um espetáculo, segundo eles, “vivencial-circunstancial”, objetivando uma “experiência estranha à convencional”, a partir de improvisação e interação com o público98.

2.2. A contracultura expressa em cartas: o espaço do leitor do jornal Verbo Encantado Lançado em outubro de 1971, e tendo a frente nomes como Álvaro Guimarães, Armindo Bião, Deolindo Checucci e José Umberto, o jornal Verbo Encantado foi um veículo catalisador dos acontecimentos no âmbito da cultura no estado. Tendo como viés o clima contracultural e inserido no contexto da chamada imprensa alternativa, usando como referências os Jornais Pasquim e Flor do Mal, ambos do Rio de Janeiro, Verbo foi um dos poucos veículos de comunicação no período no Brasil em que era possível a expressão livre de idéias numa época de censura e repressão aos órgãos oficiais da imprensa99 (BARROS:2005). Em uma de suas últimas edições, Álvaro Guimarães resumiu um pouco os acontecimentos no âmbito da cultura baiana naqueles anos numa matéria que visava abordar um show de Gilberto Gil na cidade após o retorno deste do exílio:

Show de Caetano, rompimento, divórcio, despedida do antigo musical, show de Gil, novidade, na despedida, 1969. Philips. Desembarque dos bichos depois do dilúvio, Novos Baianos na Bahia Mundo. Meteorango Kid, o Herói Intergalático, Caveira, my friend, os filmes e músicas e textos e pinturas e artes engavetadas, criações anônimas, reboliço na criação, bandidagem e loucura. Cinema Julinho Bressane, cine Rogério Sganzerla, Teatro, MacBeth na Bahia, Shakespeare na Bahia/Mundo. London London. Phillips.Baianos em Portobello e Wigth, cariocas, paulistas, paraenses, parisienses no carnaval da Bahia/Mundo. Televisão, os cabeludos, Roberto Carlos, os caracóis, “que tudo mais vá pro inferno”, a gravação, “chega de saudade”, João Gal e Caetano. Vapor 96

Verbo Encantado, janeiro de 1972, nº 13, p. 17 Diário de Notícias, 2 de março de 1968; A Tarde, 01 de março de 1969. 98 Jornal da Bahia, Salvador, 29 de maio de 1971, p.02 99 BARROS, Patrícia Marcondes de. A imprensa alternativa da contracultura no Brasil (1968-1974): alcances e desafios. São Carlos: UNESP – FCLA’s –CEDAP, 2005. 97

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barato: Waly, Luciano, Oscar e Gal, capa e disco, superoito. Phillips. A presença da flor do mal no bondinho. 71, nascimento do Verbo Encantado. Show dos Novos Baianos, Caetano e Gil. Phillips. Tranza in concerto no fim do juízo, good bye, alegria alegria (Verbo Encantado, nº 19, março de 1972, p. 21).

O jornal Verbo Encantado circulou semanalmente entre outubro de 1971 e março de 1972100. Apresentando dimensões de tablóide, foram impressas e divulgadas nacionalmente 22 edições, 20 delas semanalmente. Os quatro primeiros números desse periódico tiveram 20 páginas e todos os demais 24. O jornal foi editado pela Alef Empresa Jornalística Limitada, criada para este fim específico e formada por três sócios - Álvaro Guimarães, diretor teatral, cineasta e agitador cultural, Armindo Bião, ator e dramaturgo, e Ceomara Paim Couto - que assumiram empréstimos bancários para suas primeiras edições, visando, posteriormente, que o jornal fosse financiado pela venda de exemplares em bancas de revistas e pela inserção de anúncios publicitários – não obtendo, não obtendo, todavia, êxito para esse fim. A partir do número sete, o Verbo Encantado passou a ser distribuído pela Distribuidora de Publicações Souza, sediada no Rio de Janeiro, e, a partir do número oito, em São Paulo pela mesma empresa. Do número catorze ao dezenove, o jornal circulou na Bahia como um encarte da Edição Especial de domingo do periódico diário Tribuna da Bahia, sendo, simultaneamente, distribuído em quase todo o país como um tablóide avulso, com a tiragem aproximada de 50.000 exemplares. O espírito da publicação estava completamente associado ao da chamada imprensa alternativa que tinha a contracultura e a cultura marginal como referências, misturando oralidade cotidiana e gírias, para abordar, na maioria das vezes, temas ligados à música, ao cinema, misticismo e ocultismo, bem como da vida cotidiana e dos costumes da juventude de Salvador que optou pela experiência contaracultural. As edições incluíam, além de reportagens, poemas, experiências literárias, contos, histórias, entrevistas, diversas ilustrações e fotografias, desenhos e quadrinhos, além de cartas e respostas, diferenciando-se dos modelos editoriais de grande parte da imprensa do período. O perfil dos leitores de Verbo Encantado era de jovens de classe média e de artistas em geral que expressavam sua arte a partir do ideário contracultural. A partir da análise da seção em que eram apresentadas trechos de cartas dos leitores, é possível inicialmente observar uma identificação muito forte entre os editores e o público do jornal uma vez que compartilhavam a mesma linguagem e cultivavam, na maioria das vezes as mesmas referências culturais. Por esse motivo, esses leitores aparentavam ter a mesma faixa etária dos editores, em média entre 18 e 25

100

Foram lançadas ainda mais duas edições em junho e julho de 1972.

54

anos, apesar de não ser possível afirmar com exatidão esse dado, uma vez que eram poucas as informações sobre o público que escrevia para o periódico. Das 22 edições do Verbo Encantado, 12 apresentavam a coluna de cartas dos leitores. O presente trabalho analisará as três primeiras edições nas quais essas cartas, ou trechos delas, foram publicados. Neste primeiro esforço analítico, pretende-se tomar as cartas e as respostas dos editores que tragam elementos do contexto da contracultura em Salvador naquele ano de 1971. O primeiro espaço do leitor foi publicado na página 19 da 5ª edição do Jornal em novembro de 1971 com o título “Cartas/Correspondência/Verbo e o Leitor/Transas”. Uma peculiaridade dessa seção é a tipografia que se destaca do resto da edição disposta parte em letra cursiva, para as respostas dos editores, e parte em letras de máquina de datilografia, para os trechos das cartas – o que não se repetiria nas outras edições do Verbo. Dentre os cinco trechos publicados e comentados nesta edição, destacarei dois. A primeira publicada é de uma leitora chamada Terezinha Saraiva que é apresentada como integrante de um coletivo de poetas chamado Conclave. Ela envia um poema intitulada “Letras Verbos Tipos Verbos Tipos” que exalta o lançamento do Jornal: “V E R B O J O R N A L/olho vibrante rotante/encinam-lo pórtico-página /olho objetiva adentrando mensagem/A P L A U S O S/SEMENTE GESTANDO ÁRVORE/FRUTOS FLORES TRANSMUDADAS[...]. Em determinado momento, o poema concreto faz uma referência à pouca divulgação do periódico e ao estilo irreverente da publicação: “BOCA

Comunicação/PÔCA[sic] divulg(ação)/boca [...] maledicência/por certa visão/dos

incontentados/em multidão/PROSSIGA

VERBO/VENCENDO DISTÂNCIA[...]. Na mesma

Seção, porém, há uma carta de um leitor que assina Pedro Antenor da Barra Avenida que apesar de considerar o jornal “maravilhoso”, ressalva que a publicação poderia ser menos alienada e sugere: “baixem o pau, como faz o Pasquim”- o que sugere que uma parte do público do Verbo Encantado espera uma linha editorial com um viés crítico e político como o do semanário carioca. Antenor finaliza mandando um beijo no França(Teixeira) o que corrobora com a proposta do Jornal de ser um veículo que destoa dos valores e costumes vigentes. O espaço para diálogo com o público retorna na sétima edição do Verbo Encantado, publicada em dezembro de 1971, na página 05. Com um total de 18 trechos de cartas de diferentes leitores – todos respondidos pelo editor da Seção -, a tipografia e a diagramação passam a ser a mesma do restante do Jornal, sendo intitulada “Cartas: transas com o leitor”. Dentre comentários sobre as matérias e colunas do periódico destaco duas críticas feitas a um dos editores, Álvaro Guimarães 101. No primeiro, feito

101

Álvaro Guimarães, além de ser um dos editores de O Verbo Encantado, produzia e dirigia peças de teatro, espetáculos de dança e de música, além de ter filmado um dos longa-metragem do cinema marginal baiano “Caveira,

55

por Elza Gomes do Areal de Baixo, é reproduzida uma ligação telefônica para o referido articulista do Verbo questionando as críticas negativas do mesmo sobre a cena teatral brasileira e sobre o dramaturgo baiano Dias Gomes: “Alô, é Alvinho? Me faça o favor de chamá-lo. Alvinho? Você também está numa do que o teatro já era? E ainda tem a petulância de chamar Dias Gomes de careta, um cara da pesada, autor de novelas maravilhosas como Assim na Terra como no Céu? Alvinho, Alvinho você está querendo público é? Contente-se com o que você já teve. Clic.”

A resposta publicada, também um “Clic”, sugere

que o telefone foi desligado sem

resposta. As críticas a um cânone cultural do período como Dias Gomes parece que também não foram assimiladas pelo leitor Mário Márcio Ribeiro de Ondina que considera que “Verbo ataca as pessoas de maneira mais absurda, como Dias Gomes, um teatrólogo de peso, respeitado internacionalmente. E quem é o autor das besteiras sobre Dias Gomes?” Desta vez, porém, os editores do espaço respondem em nome de Álvaro Guimarães e argumentam: “Não é tão absurda, diz Alvinho( o autor), e se fosse ótimo. O respeito internacional, amizade, só você tem notícia. De brasileiro ‘respeitado internacionalmente’ a gente só conhece Glauber, Cae, Gil, Hélio Oiticica, Helena Inês que são astros e estrelas Verbo, prata da casa. Alvinho manda dizer que besteira maior é Assim na Terra como no Céu. Ele acha Dias um pé no saco.”

Dentre os vários temas tratados no Verbo Encantado está à busca de novos caminhos para a espiritualidade que uma parte dos participantes da contracultura esboçou. Entretanto, um dos leitores observa que o momento exigiria que o Jornal se voltasse para temas da realidade e efetua uma crítica à coluna Transas Astrais assinada por um dos editores, Armindo Bião: “[...] Essa de espiritismo não dá. A Juventude quer algo mais real, mais palpável. Os problemas de hoje não se resolve[sic] só com oração” Na resposta ao leitor Antônio Carlos Neiva (Brotas), os editores do Verbo defendem a incursão no tema, argumentando que “[...] Espiritismo é uma área de interesse pessoal e jornalístico. E se a oração não resolve tudo, amizade, ajuda demais. Pode crer. Ou você não crê?” O tema do misticismo retorna na oitava edição do periódico na coluna agora intitulada “Cartas do Leitor” disposta na página 21. O leitor Hidelbrando Reis Cunha ( da Barra) questiona: “Por que tanto misticismo? Essa onda de misticismo tá passando, bicho...”. Os editores novamente têm que se justificar esclarecendo que “se está passando, Hidelbrando, está passando pelo menos há vinte séculos. E tomara que nunca passe. Se isso acontecer, estaremos num mato sem cachorro. O homem sem Deus é besta sadia[...]”. Nesta mesma edição, um leitor suscita uma my friend”. Imerso no ideário e nos símbolos da contracultura e da tropicália, constituiu-se em um dos mais profícuos agitadores culturais do período.

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resposta ambígua sobre o tema da homossexualidade. Paulo Roberto (do Matatu) questiona se os editores do Verbo Encantado são “ contra (ou) a favor do homossexualismo? Por que não abordaram tão importante problema?”. Após apontar uma contradição no próprio questionamento do leitor – “Olhe Paulo, se é problema é você quem diz” -, a resposta prossegue e sugere a pouca disponibilidade do jornal em discutir diretamente o tema, uma vez que este já estaria desgastado: “E depois, tanto se falou do assunto que se não gastou, chateou. É chato e velho. Papai Freud gastou a munheca, e muita gente com ele.” E complementam sendo irônicos sobre a opinião do jornal sobre o tema -” Não somos nem contra, nem a favor. Muito pelo contrário” -, admitindo, porém, que é um assunto complexo e que exige cuidado na abordagem: “ É que a gente não gosta de escândalo, nem quer faturar em cima desta transa. Que é delicada, séria, merece cuidado. Cada qual com o seu cada qual, tripitimos.” Na mesma edição, a leitora Analuisa Rebouças ( do Acupe) reclama que não consegue compreender quase nenhum dos textos do Jornal, porém ressalva “Mas acho muito bonito. Será que é assim o Underground? É isso que vocês são? Underground?”. A resposta dos editores busca demonstrar a proposta do periódico de assimilar as mais diversas referências, rejeitando o rótulo de underground. “Não somos quase nada, Analuisa. Que você entenda ou não, o legal é que ache bonito, como disse. Underground mesmo, só nos States. Aqui tem a receita: leva banana, acarajé, Waldick Soriano, Chacrinha, Dalva das Oliveiras, e guitarras e passarada. Misture bem. Você entendeu? Nem nós.” Em uma análise preliminar e ainda precária destas cartas, em busca de perceber elementos de como a contracultura estava sendo assimilada na Bahia, pode-se concluir que, através do Jornal Verbo Encantado – veículo imerso no ideário contracultural da época e publicado no formato da chamada imprensa alternativa -, no espaço destinado ao diálogo com os seus leitores, a leitura do periódico baiano suscitou

algumas reações tanto de estranhamento seja com a linguagem

utilizada , ou com os temas abordados o que demonstra que os leitores estavam pouco habituados com o formato do periódico. Percebe-se também que alguns temas continuaram tabus, como o da homossexualidade cujo debate era evitado pelos editores, apesar de algumas insinuações e alusões, o que poderia causar algum nível de frustração nesse público. O tema do misticismo era abertamente tratado pelos editores, causando discordância em alguns leitores em relação nível de importância dada ao tema, pois o momento era indicado para tratar de assuntos da realidade: neste âmbito, o adjetivo “alienado” aparece para classificar o conteúdo do jornal. A linguagem coloquial, cheia de gírias, como “bicho”, “amizade”, “transa” tanto dos editores quanto dos leitores também indica certo pertencimento de ambos a um mesmo grupo social de falantes. Pairava também certo desconhecimento do leitor de pelo menos parte desse ideário em que o Jornal estava inserido, uma vez que os leitores suscitavam questões como o significado da cultura 57

“underground” e críticas a certo privilégio à cultura estrangeira. O que editores respondiam fazendo alusões à lógica antropofágica de deglutição a essa cultura alienígena, misturando com os as expressões da cultura e da arte local, especialmente as marginalizadas e excluídas das instâncias oficiais de reconhecimento cultural.

2.3. A formação de novos cineastas e os primeiros experimentos Oferecido por uma entidade chamada Escola de Sociologia e Política, em maio de 1967, e ministrado por, dentre outros, Carlos Vaz de Athayde e Orlando Senna, um grupo de jovens decide realizar um curta-metragem, fundando, para tal feito, o Grupo de Iniciação Cinematográfica – GIC, cujas reuniões ocorreriam num bar no Centro Histórico de Salvador (Revista da Bahia, 1997). O GIC toma fôlego com o ingresso de José Umberto que incita os outros participantes a escreverem roteiros para que um fosse escolhido para ser rodado. Desta forma, o roteiro de Perâmbulo, elaborado por José Carlos Menezes, é selecionado, ficando a cargo de José Umberto a sua direção, sendo dividida entre os demais participantes as outras etapas de concepção do filme, inclusive o seu financiamento com a arrecadação a ser obtida a partir da venda de bilhetes para o sorteio de um quadro de um conhecido pintor da época. A sinopse do filme adianta o tema da marginalidade que será a tônica do Ciclo que se inicia, pois aborda as desventuras de um mendigo pelas ruas de Salvador em busca de comida. Ele consegue alguma repercussão nos círculos da crítica de cinema da cidade, sendo inscrito no festival de Brasília pelo próprio Walter da Silveira102. Em 1968, é oferecido pela Universidade Federal da Bahia um curso livre de cinema, tendo a duração de dois semestres, intitulado Grupo Experimental de Cinema - GEC, ficando as aulas a cargo de Guido Araújo e de Walter da Silveira. Durante o curso, em que ambos estão matriculados, José Umberto conhece André Luis de Oliveira e juntos elaboram o roteiro e filmam O doce amargo, curta-metragem de ficção que, para a surpresa dos diretores, leva o prêmio de melhor documentário na edição do mesmo ano do Festival de Cinema Independente JB/Mesbla ocorrido no Rio de Janeiro. Aqui, novamente, o tema dos marginalizados reaparece na forma de um vendedor de pirulitos que em contextos diferentes é espancado por um padre, um policial e um político103. Sobre a produção do curta, André Luis Oliveira observa que fez “um livro de ouro”. No ano seguinte, os dois jovens cineastas motivados pela repercussão do curta empreendem projetos individuais. José Umberto realiza Vôo Interrompido, média-metragem que 102 103

SETARO, André. Op. Cit.1976. SETARO, André. Op. Cit.1997.

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aborda a trajetória de uma migrante do interior que para sobreviver trabalha como doméstica, durante o dia, e como prostituta, durante a noite. Em artigo publicado pelo próprio diretor no Jornal da Bahia – onde exercia atividade de crítico de cinema – quando do lançamento do filme no SESC–Nazaré, o realizador ressalta que, como jovem, não aceita a realidade de uma América Latina subdesenvolvida. É importante observar, entretanto, que é através da abordagem da condição feminina na sociedade brasileira e latino-america que o filme ilustra a situação de degradação social do continente104. .

2.4. Senna, construção e morte de um filme As tentativas de ressurreição do cinema baiano não evitaram, entretanto, que dois filmes tivessem uma “curta existência”, deixando assim de ser objetos do presente estudo. Entre 1968 e 1969, o produtor e diretor Orlando Senna dirigiu “69: a construção da morte” que chegou a ser concluído, mas nunca foi exibido. Por sua vez, Akpalô, dirigido entre 1970 e 1971 por Deolindo Checcucci e José Frazão, foi concluído e exibido em poucas sessões em Salvador, mas a sua única cópia acabou se perdendo. A história da realização desses filmes, porém, revela que aquele foi um período de retomada para o cinema baiano a partir do prisma da marginalidade, do experimentalismo e da criação coletiva, apesar de todas as tensões e entraves políticos e escassez de recursos econômicos para a produção das obras. Esse clima de retomada do Cinema Baiano envolvia jovens e experientes diretores e produtores. Orlando Senna, por exemplo, já acumulava experiência em cinema e teatro quando se aventurou na direção de “69: a construção da morte”. Nascido em Lençóis – Bahia e formado no ambiente de transformações culturais ocorridas em Salvador no final da década de 1950 e início da de 1960, Senna constituiu-se como um agitador cultural eclético – crítico, cineasta, diretor teatral, produtor musical – e, juntamente com amigos como Glauber Rocha e Roberto Pires, participou ativamente do processo de eclosão do Ciclo Baiano de Cinema. Estudante de teatro e de direito, acompanhou, na década de 1950, diversas produções estrangeiras que escolheram a Bahia como cenário o que o fez entrar em contato com as diversas etapas da produção cinematográfica. Em 1960, aos 20 anos, Senna já exercia a função de crítico de cinema no jornal “O estado da Bahia” em Salvador, sendo que no mesmo ano faria parte da equipe que fundaria o “Jornal da Bahia” que dentre outros contava com Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro, João Carlos Teixeira Gomes e Florisvaldo Matos. Durante suas atividades de jornalista, passou a 104

Jornal da Bahia, 15 e 16 de março de 1970.

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ter interesse em fazer cinema, sendo que, após acompanhar as filmagens de “Barravento” e “O pagador de promessas”, fez parte da equipe de “A Grande Feira” de Roberto Pires, escrevendo alguns diálogos para o filme. Sua primeira experiência na direção foi no curta-metragem “Festa” de 1961 que tratava sobre uma das festas de largo mais popular de Salvador a “Segunda-feira gorda da Ribeira”. No ano seguinte, produzido por Glauber Rocha, realizou um documentário para a TV Itapoan intitulada “Imagem da Terra e do Povo” que traçava um retrato da miscigenação étnica e cultural da cidade de Salvador. Em 1963, Senna realizaria com o conterrâneo Geraldo Sarno “Rebelião em Novo Sol”, documentário produzido pelo Centro de Cultura Popular da UNE tendo como tema as Ligas Camponesas da Bahia. Após o impacto do golpe militar que desarticulou o “boom” de produções cinematográficas no Estado, Orlando Senna só conseguiria voltar a filmar em 1965, ao realizar três documentários institucionais de curta-metragem, patrocinados pela Prefeitura de Salvador, tendo como tema aspectos da cultura baiana: “Lenda Africana na Bahia” (sobre o carnaval de Salvador), “Dois de Julho”( sobre a independência da Bahia) e “Bahia Bienal” (sobre artes plásticas).

Com

a interrupção das

produções de cinema no estado, o cineasta nascido em Lençóis retoma sua atenção ao teatro produzindo e dirigindo, ao longo dos próximos três anos, peças como “Terror e Misérias do Terceiro Reich” de Bertold Becht, o “Romanceiro da Inconfidência” de Cecília Meireles

e

“Teatro de Cordel” uma adaptação de vinte folhetos de cordel que se tornou “o primeiro passo concreto para a profissionalização do teatro em Salvador”105. Em 1967, em meio ao aumento dos protestos e radicalização da repressão política, foi contratado pelo Conselho que gerenciava a fundação mantenedora do Teatro Castro Alves para dirigir a aquela sala, empreendendo uma gestão que priorizava na pauta produções locais, e de consonância com a conjuntura cultural e política, quebrando regras como a obrigatoriedade do uso de trajes como paletó para o público, além de outras ações como a reativação da Concha Acústica para a realização de espetáculos populares e a inauguração da Sala do Coro para peças de pequeno porte. Após, no ano seguinte, ser demitido e acusado de subversão pelo caráter provocador de sua gestão a frente do maior teatro de Salvador, Senna montou quatro outras peças na Escola de Teatro e no Teatro Vila Velha, porém após censuras, cortes e proibições como a da peça “Companhia das Índias”, seus textos passaram a ser vetados fazendo com que interrompesse suas atividades no âmbito teatral. Fica evidente na trajetória de Orlando Senna um aspecto crucial para compreendermos a formação dessa retomada pela via marginal ou contracultural do Cinema da Bahia que foi o ambiente teatral da cidade no período. Ao iniciar a sua trajetória no teatro ao produzir espetáculos 105

LEAL, Hermes. Orlando Senna: o homem da montanha. Salvador: Imprensa Oficial, 2008. p.142.

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engajados nos termos da esquerda influenciada pelo nacional-popular tendo o CPC como o grande catalisador dessas ideias na juventude do início dos anos de 1960, o diretor de “69: a construção da morte”, através dessa atividade artística, realizará a travessia dos anos de repressão, censura e resistência até o momento das movimentações contraculturais – caminho este marcado por uma arte que adotou a temática social, o experimentalismo e consequentemente a fuga dos apelos comerciais. No percurso dessa travessia, pode-se considerar as montagens das peças Roda Viva e principalmente O Rei da Vela, no Sudeste, ambas pelo dramaturgo e encenador José Celso Martinez, como marcos da transição em que a crítica política e social incorporava e era incorporada pela de costume. Esses marcos, associados principalmente ao movimento Tropicalista, também vão inspirar jovens encenadores baianos como Álvaro Guimarães e João Augusto a montarem em 1968 respectivamente “Uma obra do governo” e “Stopem, stopem” espetáculos caracterizados pela “alegoria, a mistura de gêneros teatrais impregnados de deboche, o melodrama, o escracho, a chanchada, o teatro de revista, uma pitada operística e ingredientes da cultura de massa utilizados não apenas de forma crítica, mas assumidos como parte da poética do espetáculo”.106

Influenciado também por esse momento contracultural-tropicalista-marginal que se afirmava no teatro, especialmente pelas montagens de José Celso Martinez, Orlando Senna realizará o espetáculo “Caminho das Índias” um “musical falado em portunhol, com muita rumba, tango, bolero, muito colorido. Rumbeiras, índios, jogadores de futebol, vaqueiros, mariachis e toda uma fauna humana latino americana compunham um coro ao redor do ditador e sua corte, fazendo referências a ditadores reais e à cumplicidade da OEA , Organização dos Estados Americanos, com a ditadura107.” Essa alegoria do momento político do Brasil ficou em cartaz cerca de dez dias, pois, após diversos cortes dos censores, foi proibida de ser exibida, causando além de prejuízos e dívidas, perseguição aos seus produtores. Com a dificuldade de viabilizar peças de teatro devido ao aumento da censura na Bahia, Senna resolve retornar ao set de filmagem para tentar viabilizar suas ideias. Atento ao momento cinematográfico do período, ainda em 1968, que era o do surgimento de um conjunto de filmes realizados por jovens cineastas que abrangia grande parte do ideário do Cinema Novo, contendo elementos da Tropicália, deslocando o enfoque para o individuo marginalizado como o bandido, o 106

LEÃO, Raimundo Matos de. Segundo ato: O teatro iluminado de sol. In: LEÃO, Raimundo Matos de. Transas na cena em transe: teatro e contracultura na Bahia. Salvador: Edufba, 2009.p. 55. 107 LEAL, Hermes. Op. Cit.p. 150.

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louco e o jovem, Senna juntamente com seu amigo de infância e parceiro de empreitadas no teatro de Salvador, Álvaro Guimarães, resolve

realizar um plano de produção para dois filmes:

“Caveira, my friend” que seria dirigido por Guimarães e outro que mais tarde se chamaria “69: a construção da morte” o qual ele assumiria a direção. Após participar das filmagens de Caveira que transcorreram no final de 1968, Senna iniciou a pré-produção de seu filme baseado num conto do escritor Ariovaldo Matos, que narra a história de um jornalista que compra a morte de um suicida em troca da exclusividade da notícia. O homem aceita os termos do acordo que prevê o cometimento do ato em hora e local marcado, no caso, durante o dia no alto do Elevador Lacerda. Segundo Senna, ao descrever o seu primeiro longa-metragem de ficção em seu livro de memórias, “ o homem aceita, convencido pela herança inesperada que vai deixar para a família, e o acordo é cumprido até o fim. No filme o tempo entre o acordo e seu cumprimento é alongado, a relação entre o jornalista e o suicida é radicalizada e a metáfora com as perversidades e perversão que estavam acontecendo naquele momento era, além de planejada, inevitável.” 108 Para não deixar dúvidas sobre suas intenções de construir uma narrativa que apesar das alegorias, deixasse evidente a representação daquele momento histórico e político que era o estado de exceção pelo qual vivia o país, o cineasta lençoiense utilizou pela primeira vez.

“ a mescla de ficção e documentário que desenvolveria posteriormente com Bodansky109: fiz um acerto com a editoria de polícia do Jornal da Bahia e nossa equipe ia com os repórteres na cobertura de crimes, perseguições a bandidos, prisões, bocas-defumo. Essas cenas documentais do baixo mundo se justificavam porque tínhamos um personagem jornalista, era o mundo do personagem”. 110

Filmado quase que secretamente para evitar a perseguição das instâncias de controle e censura, “69: a construção da morte” foi montado juntamente com Caveira, my friend em São Paulo. Antes do seu lançamento, porém, Senna realizou uma apresentação da obra para a equipe e o produtor Braga Neto – personagem importante nos acontecimentos do Ciclo Baiano de Cinema, pois produziu alguns filmes como “Barravento”. Este último, segundo Senna, ao ver o resultado do filme, dividiu os negativos em várias partes e os enviou para diversas pessoas sem o consentimento do diretor. Quinze anos depois, ainda segundo ele “foram encontrados dois rolos 108

Ibidem. p.160-161. Senna aqui se refere ao filme “Iracema: uma transa amazônica” dirigido por ele e o cineasta paulista Jorge Bodansky em 1976 e cuja história, narrada em estilo semidocumental, segue a trajetória de um caminhoneiro e uma prostituta, que viajam juntos pela Rodovia Transamazônica recém-construída. 110 LEAL, Hermes. Op. Cit. Loc. Cit. 109

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de imagem e dois rolos de som, não correspondentes, na Cinemateca do MAM, no Rio. Estavam em péssimo estado, sem condições de recuperação. Sobraram algumas fotos, roteiro e a memória de quem participou.”111

2.5. O negro a cores: Akpalô, um psicodélico filme baiano Em 1970, José Frazão, participante do Grupo Experimental de Cinema - GEC, associa-se ao diretor de teatro Deolindo Checcucci para realizar o longa metragem Akpalô. A primeira obra em cores não apenas do “Surto” como do Cinema Baiano narra a história de um extraterrestre que se corporifica em humano e vive um dia de aventuras em Salvador. Enfocando fatos pitorescos da cidade e imerso no clima do movimento “flower-power”, palavra de ordem entoada pelos “hippies” que simbolizava a não violência, o amor livre e o consumo de drogas, o filme teve no seu elenco nomes como Mário Gusmão, Anecy Rocha e Armindo Bião. Em entrevista dada pelos dois diretores a José Umberto para a seção de cinema do Caderno 2 do Jornal da Bahia, Checucci tenta desfazer a idéia de que o filme seria apenas uma “curtição” de dois jovens e não teria roteiro: “O roteiro que a gente fez dá assim uma abertura para a criação artística no momento que a gente parte pra ela. Então tem um roteiro básico, mas é um roteiro que é maleável que é flexível.”112. Questionado por José Umberto como Akpalô pode ser situado dentro das cinematografias brasileira e baiana, José Frazão afirma que Akpalô se parece com o primeiro grupo 113, com o cinema tecnicamente perfeito em technicolor. Dentro do cinema baiano eu não saberia situar, porque realmente eu conheço pouca coisa do cinema baiano, não sei quase nada do que se fez anteriormente da fase de Meteorango para cá, e depois houve a experiência com o Alvinho, que não foi exibida, e uma com o Orlando Senna que não se sabe onde está. 114.

A preocupação de Frazão e Checcucci em evitar o estereótipo de filme de “curtição” e de ressaltar a seriedade do projeto, citando as experiências conturbadas de Álvaro Guimarães e Orlando Senna que não conseguiram exibir seus filmes, parece revelar uma mudança de perspectiva daqueles jovens ao querer alcançar credibilidade no ofício de se realizar películas na 111

Ibidem. Op. Cit.p.166. Jornal da Bahia, 30 e 31 de maio de 1971, p.04 113 Durante a entrevista, José Umberto estabelece uma espécie de tipologia de filmes brasileiros: o primeiro tipo refere-se aos filmes que possuem maior aceitação, isto é, “um troço mais oficial, ou filme-industrial-in-technicolor”, os outros são o cinema engajado em que inclui o Cinema Novo, o Cinema Marginal ou o filme da “patota” e o filme intimista que tenta imitar uma “cinestética estrangeira”. Idem. 114 Idem. 112

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Bahia. Todavia, os seus esforços acabaram não logrando êxito, pois a obra teve apenas uma única exibição na estréia em Salvador no mês de maio de 1971, encontrando-se atualmente desaparecidos os seus negativos115 . A ideia inicial de Akpalô surgiu de um argumento de José Frazão, apesar do desenvolvimento do filme ter ocorrido de forma coletiva como nos curtas iniciais produzidos pelo GIC e pelo GEC. O projeto foi levado para Deolindo Checcucci jovem diretor teatral que havia montado uma peça do dramaturgo Ionesco tendo obtido muita repercussão no início da década de 1970. Frazão e Checcucci começaram a escrever o roteiro e dividiram a direção. Frazão ficou responsável pelos enquadramentos e Checcucci pela direção de atores e pela mise-em-scène. Akpalô é uma palavra da língua iorubá que significa “contador de histórias”. Porém a forma como essa história é contada demonstra o interesse daqueles jovens de se enveredar por estruturas narrativas não-convencionais, visando o estranhamento e o choque. Segundo Deolindo Checcucci, o mote narrativo do filme é mantido pela presença de uma personagem misteriosa, “um Oxalá”, “um anjo das águas”, em uma Salvador conservadora e pouco aberta a mudanças nos âmbitos dos costumes e do comportamento. Para tanto, segundo Checcucci, a presença do lúdico e do escatológico podem ser percebidos em diversas cenas, sendo que os atores em diversas ocasiões eram orientados a improvisar livremente, apesar da existência de um roteiro prédefinido. Em seu depoimento, Checcucci cita cenas como o do desfile de moda organizado para receber uma condessa de passagem por Salvador. Convidados chegavam ao aeroporto nas asas de aviões monomotores. Após o evento, os participantes são levados para um banquete no qual os orixás servem frutas tropicais aos representantes da alta sociedade baiana que com a comilança entram em catarse coletiva diante das entidades do candomblé. Em mais uma seqüência citada por Checcucci, uma jovem da classe média briga com os familiares e foge a cavalo por entre as ruas de Salvador em meio ao trânsito intenso de automóveis; numa outra cena, eletrodomésticos bóiam no mar. Em meio a esses acontecimentos, um extraterrestre, o Oxalá, ou anjo por ele citado, recém chegado de outro planeta observa inicialmente tudo de longe e aos poucos vai se integrando ao ambiente e acontecimentos da cidade. Já integrado à vida soteropolitana – especialmente à dos jovens hippies de estilo de vida livre e imersos na contracultura -, acaba deixando a cidade e voltando para o seu planeta após ser assaltado.

115

Cf. SETARO, André. Op. Cit. p.

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Lançado em abril de 1972 para uma pequena platéia de jornalistas e exibidores no Cine Liceu, Akpalô obteve alguma repercussão na imprensa e no meio artístico da cidade, podendo ser observado algum nível de recepção crítica. A edição do Jornal da Bahia dos dias 16 e 17 de abril de 1972 realizou uma matéria intitulada “Akpalô: um testemunho de nosso tempo?” De início é possível perceber que a chamada questiona se as representações verificadas no filme constituem-se como um documento daquele período, ou seja, se os eventos e acontecimentos da película de Checcucci e Frazão diz respeito aos fenômenos da cultura e da sociedade daqueles anos. A primeira crítica é do então jovem cineasta José Umberto Dias que naquele mesmo ano dirigiria “O Anjo Negro” – filme que abordaria os mesmos elementos da cultura afro-baiana em meio á um ambiente contracultural, também tematizados por Akpalô. Dias primeiramente observa que o

aumento da produção

cinematográfica significou uma queda de qualidade da maioria dos filmes cujos cineastas têm como prioridade a conquista de mercado. O cineasta nascido em Sergipe acrescenta que “neste círculo fechado nós penetramos por uma porta obscura, mercantilista, grosseira, lixo/colorido”.116 Para em seguida entrar em contradição ao associar o advento de um Cinema Marginal ao declínio na produção de filmes, bem como, ao que ele considera, pouca qualidade das obras. “As tentativas de Cinema Marginal redundaram em declínio da produção. Havia liberdade de criação, mas inconsistência ideológica e insuficiência estética. Salvam-se poucos. E no mais o suicídio.”117 Sobre o filme especificamente, Dias considera o resultado aquém de suas expectativas, uma vez que acompanhou o processo de realização da película. Segundo ele, “Quiseram fazer um filme de cor, pessoas, som e mar. Mas tudo isto junto merecia uma maior ênfase. Um maior impulso criativo. Um ritmo mais sacudido, ensaboado nesta paisagem tropical que não aceita qualquer tipo de timidez. Uma dúvida, um receio, uma interrogação, um embaraço, redundam sempre em fracasso absoluto.” 118

O diretor de “O anjo negro” considerava ainda o filme indefinido. “Não que a definição seja necessária. Mas é preciso ser lixo ou luxo. ‘Caveira, my friend’ ou ‘Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora’119. Além disso, José Humberto definiu o filme como “fechado” e “elitizante”, uma vez que os “dramas existenciais do jovem pequeno burguês são transpostos em parábolas contemplativas, quando se exigia uma atitude crítica ou então polêmica de Akpalô, para 116

DIAS, José Umberto et alii. Akpalô: um testemunho de nosso tempo? In: Jornal da Bahia – Caderno de Cinema. Salvador, 16 e 17 de abril de 1972, domingo e segunda-feira. 117 Idem. 118 Idem. 119 Idem.

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ele reflexo de um mundo “pequeno burguês” sem pretensões mais sérias com a crítica política e social. De forma mais enfática, André Setaro afirmava seu descontentamento com o “sombrio” panorama do cinema brasileiro de início da década de 1970, onde as “apelações sexuais no campo da comédia” concorriam com “obras herméticas, curtições generalizadas, destituídas de maior valor”. Vivia-se na época a percepção aguda de que o fôlego do Cinema Novo havia se extinguido e as conseqüências disto comprometeram – e comprometem até hoje – a cinematografia brasileira. Por outro lado, Roberto Pires, um dos mais ativos diretores do Ciclo Baiano de Cinema e autor de Redenção primeiro filme de longa-metragem produzido em 1959 na Bahia, considerou o filme um sinal de que naquele ano o cinema baiano reviveria seus momentos áureos, retomando o nível de produção do início da década de 1960. Exaltando o trabalho de fotografia de Vito Diniz, Pires considerou o tom amador do filme “fundamental nesses trabalhos”, tendo ficado sensibilizado pela “dignidade da irreverência cinematográfica”. O cineasta baiano, no entanto, mostrou-se preocupado com o futuro do filme. Para ele, Frazão e Deolindo teriam “outra barra a comprar: a exibição comercial. Sinceramente, espero que não enlouqueçam, a barra é pesadíssima. Muita sorte para vocês. Vão precisar dela”. E, de fato, nesse aspecto a “barra” não demorou a pesar. Mesmo exibido com sucesso no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde recebeu uma crítica favorável de Jean-Claude Bernardet, Akpalô nunca foi lançado comercialmente. Com uma única cópia, o filme acabou guardado e esquecido.

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3. CONTRACULTURA E MARGINALIDADE: OS FILMES DE LONGA-METRAGEM DE FICÇÃO DO “SURTO” DE CINEMA MARGINAL NA BAHIA O presente capítulo realiza um estudo dos elementos das representações dos filmes baianos de longa-metragem de ficção existentes realizados entre 1968 e 1972 para, através destes, compreendermos como o contexto cultural daquele período se revela. Para tanto, os temas como marginalidade ou cultura marginal e contracultura, que foram abordados nos capítulos anteriores, virão à tona, tendo agora “Meteorango Kid, herói intergaláctico”, “Caveira, my friend” e “O anjo negro” como fios condutores. Como o Capítulo 2 sugere, a contracultura verificada na Bahia seguiu muitos dos paradigmas do movimento no Brasil e em outros países: especialmente no que concerne a aspectos como linguagem, costumes e modo de vida. Do mesmo modo, porém, é possível reconhecer a priori particularidades como a marginalização dos artistas e das obras e mesmo a precarização de parte das produções artísticas que foram acompanhadas de uma reflexão sobre a condição de país periférico, subalternizado e subdesenvolvimento do país e sobre a situação política de violência institucional, censura e cerceamento das liberdades individuais. Alia-se a esses elementos o advento da identidade cultural local cuja perspectiva se transforma a partir de questões trazidas pelas novas visões de mundo e pelos questionamentos à cultura hegemônica da época. Um dos aspectos que Akpalô – um dos filmes desaparecidos do “surto” – traz, apesar das críticas sobre a sua abordagem hermética e centrada na irreverência e na curtição, não se preocupando em problematizar mais diretamente questões sociais como a condição do negro na sociedade baiana, é

a primazia da cultura de origem africana cujos

elementos são destacados como parte integrante dos jogos entre cultura de massa e cultura popular e como importante traço nas relações sociais e culturais da cidade de Salvador. O filme de José Umberto, “O anjo negro”, neste sentido, faz uma das mais singulares abordagens desse tema ao pensar a culta negra no contexto da sociedade baiana daquela época como contracultura, sem, no entanto, deixar de ressaltar a condição de exclusão do negro nessa mesma sociedade. Sendo assim, cada um dos filmes abordados aqui destaca como uma camada da juventude baiana do final da década de 1960 e início da de 1970 assimilou o seu contexto histórico para representar em filmes de longa-metragem de ficção, ou seja, como se deu a relação com os signos da contracultura e da cultura de massa (Meteorango Kid), os caminhos da marginalidade muitas vezes impostos pelos limites políticos e culturais da conjuntura brasileira (Caveira) e como esses dois contextos escondem e/ou apresentam a configuração identitária de Salvador e suas relações sociais e étnicas (O anjo negro).

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3.1. Herói marginal intergaláctico: Meteorango Kid e a contracultura à baiana Após a experiência de, aos 19 anos, dirigir, produzir e fotografar o curta-metragem “Doce Amargo” que lhe rendeu, no Festival de Cinema Amador JB/Mesbla em 1968, o prêmio de melhor documentário120, André Luiz Oliveira decidiu seguir o caminho do cinema: “eu saía para filmar com a câmera-na-mão e a cara-de-pau, achando que ia mudar o mundo. Na verdade, eu estava mudando o meu mundo, porque depois desse filme não mais consegui ficar na Faculdade”.121 Oliveira acreditava que o mundo passava por um processo de transformação e que os jovens estavam à frente dessas mudanças. Segundo ele, “o mundo hipócrita, falso, que tanto nos oprimia com suas regras, leis, ordens, explicações medíocres e que carimbávamos de careta, estava com os seus dias contados”122. O seu depoimento revela um pouco do ambiente de parte da juventude de Salvador naqueles anos de contracultura e ebulição política: “A loucura daquele ano de 69 estava para mim como uma dose única: passagem sem volta para o desconhecido, o renascimento, a vingança de Che, o adeus às ordens, a Era de aquário, o Armagedon, o amor livre, o Quinto Império, os heróis marginais, o Apocalipse, a rebelião de lúcifer, Jesus Cristo Superstar...” 123

Esse mosaico de referências culturais assimilado pelo diretor é traduzido para a linguagem cinematográfica e experimentado pelo personagem Lula, assumidamente o seu alterego no filme. Da mesma forma, Lula é construído para ser uma soma de experiências e expectativas de uma juventude que entrava em contato com os paradigmas contraculturais. Assim, o personagem principal é apresentado como o estereótipo do jovem rebelde e em constante choque com os padrões sociais e culturais hegemônicos da época. Um exemplo que chama a atenção logo no início do filme é a referência ao comprimento do cabelo124. O diretor André Luiz Oliveira procurou alguém que representasse esse perfil transgressor do personagem encontrando no artista

120

O Festival JB/Mesbla (FBCA – Festival Brasileiro de Cinema Amador) teve início em agosto de 1965, como um dos eventuos que marcariam o Quarto Centenário da cidade do Rio de Janeiro, com participação de filmes em 16 mm e super-8 mm, sonoros ou mudos. Era promovido pelo Jornal do Brasil, sendo a Mesbla ( antiga loja de departamentos) sua patrocinadora nos quatro primeiros anos. Na edição de 1968, houve apenas 48 inscritos e muita polêmica. Uma delas foi a prêmiação de “Doce Amargo” como melhor documentário, apesar do filme ser um curtametragem de ficção ( um falso documentário sobre a vida dura de um vendedor de doces que peranbulava pelas ruas de Salvador), o que causou surpresa aos seus realizadores. A última edição do festival foi em 1977. Cf. ALENCAR, Miriam. O Cinema em Festivais e os Caminhos do Curta-Metragem no Brasil. Rio de Janeiro: Artenova, 1978.p.55. 121 OLIVEIRA, André. Op. Cit.p.22. 122 Ibidem. p.27. 123 Ibidem.p.28. 124 Um exemplo disso é que, ao final dos créditos iniciais, o diretor André Luiz Oliveira dedica o filme ao seu cabelo. Mais tarde, em uma matéria intitulada “Meteorango Kid” publicada no Jornal Tribuna da Bahia de 18 de maio de 1970, Oliveira justifica essa dedicatória, argumentando que “se alguém inventar de cortá-lo, ele vai ficar apenas uma comédia engraçada e eu não gosto de cabelo curto”, estabelecendo aí uma alegoria entre o ato de cortar o cabelo e o de cortar cenas – prática efetuada pela censura.

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plástico Antônio Luiz Martins, também conhecido como Lula, inicialmente encarregado da cenografia, a figura ideal para interpretar o papel principal. Segundo Oliveira, “naquela época, 1969, Lula Martins era o único cara na Bahia que tinha cabelos compridos até os ombros. Todos nós ainda estávamos deixando crescer.”125 Não apenas o cabelo de Martins, mas o seu estilo de vida chamou a atenção do jovem cineasta, confundindo-se assim ator e personagem, uma vez que “Lula tinha chegado de Ipiaú, interior do estado, região da Cannabis, com um palavreado moderno (com sotaque, claro), uma postura totalmente rebelde. Conhecia Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Lou Reed, essa troupe de gente fina que só uns poucos conheciam em Salvador.”126 Assim, para Oliveira, Lula Martins “reunia todas as características e requisitos que o papel exigia: não tinha técnica interpretativa, não discutia o óbvio, não estranhava o texto, sempre queria contribuir com algo mais, não tinha horário, não tinha casa, não tinha família em Salvador, estava solto no mundo e tinha carisma.”127

No filme, a escolha de um não-ator imerso no modo de vida de jovens identificados com a contracultura da época faz com que em muitos momentos tenha-se a sensação de estar assintindo a um documentário - apesar do completo descompromisso da obra com o realismo – tal a naturalidade e identificação com os papéis como Martins, além dos outros atores, como Manoel Costa Júnior, o Caveirinha, interpretam seus personagens. Mesmo a equipe de filmagem parecia estar contribuindo para a elaboração de uma obra que registrava um momento de seus cotidianos. Segundo Oliveira, “ a equipe foi aparecendo ao longo das filmagens. Fizemos a nossa base em Itapoã em um sítio emprestado por minha avó com o maior carinho.[...] Cada vez que saíamos para filmar, a equipe voltava com mais gente.[...] Formamos uma trupe unida no trabalho que durou três semanas, sem atropelos. Éramos conhecidos na cidade como a Esquadrilha da Fumaça”128.

Luís Carlos Marins em sua biografia também sugere um clima comunitário da equipe de filmagens: “A equipe funcionou mesmo. Havia um clima de cooperação, interesse e entusiasmo. Márcio Cury na continuidade, (Mário) Cravo Neto nas fotos de cena, Wagner na cenografia, Valter Lima na assistência de direção, alguns do setor de produção também

125

OLIVEIRA, André Luiz. Louco por cinema: arte é pouco para um coração ardente. Brasília: GDF/ Secretaria de Cultura e Esporte/Fundação Cultural do DF, 1997.p.32. 126 Ibidem.p.33. 127 Ibidem.p.34. 128 Ibidem.p.34 e 35.

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trabalhavam como atores: Walter Lima, José Wagner, Manoel Costa Júnior (Caveirinha), Gato Félix, Édson Grande, Dó, Barbicha, um time de loucos por cinema, maconha e liberdade.” 129

Inicialmente o filme iria se chamar “O mais cruel dos dias”, pois a narrativa é centrada em um dia na vida d um jovem branco, universitário e de classe média que perambula pelas ruas de Salvador em diversas situações de seu cotidiano. Intercalada a essas situações há os sonhos e delírios de Lula que em muitos momentos da mise-en-scene se confundem com a própria realidade do jovem. A realidade é representada de forma mais direta e seca, sem muito espaço, por exemplo, para seus interesses no âmbito da cultura, seus desejos e expectativas. Percebem-se, nessa representação do real, traços de uma personalidade narcisista, individualista, um tanto irreverente, porém reprimida especialmente pelas relações familiares. Em contrapartida, os delírios e sonhos são espaços em que Lula participa de seu universo cultural, seus desejos são desrecalcados e sua vida flui em um ritmo intenso de parque de diversões. As primeiras sequências do filme são de sonho: Lula se imagina em uma praia. A câmera em plano fixo acompanha a sua descida do alto de um dos diversos coqueiros que compõem o cenário. Percebe-se, ao longe, uma estrada onde trafega lentamente um automóvel, não deixando dúvidas de que o ambiente onírico se passa nos dias atuais. Após a descida, o rapaz, com uma coroa de espinho circundando a cabeça, apenas trajado com um pano branco que o cobre da cintura até parte das coxas, caminha de forma atabalhoada fazendo gestos desesperados e bruscos em direção a um cruzeiro, saltando, ainda de costas, para a sua base, colocando-se em posição de crucificação. Lula se imagina Jesus Cristo crucificado em uma praia da Bahia. Desta forma, o filme acena que há um sacrifício pessoal e o de uma geração. Naquela época misticismo e religiosidade passavam por transformações especialmente com o crescente interesse pelas religiões orientais e uma visão menos dogmática dos cânones cristãos. Jesus é assimilado por parte do ideário contracultural como um dos símbolos do lema “paz e amor” e sua imagem – cabeludo, barbudo e andarilho que pregava a comunhão entre os homens – imitada por aqueles jovens, especialmente os hippies. Cristo também passa a ser objeto de interesse da cultura pop, tendo sido feito na década de 1960 diversos filmes sobre a sua vida, um deles, “O Evangelho Segundo São Mateus” dirigido pelo cineasta italiano Pier Paolo Pasolini uma das referências para ao Cinema Marginal. Um musical, em especial, que relacionava a vida de cristo poderia ter servido de inspiração a Meteorango Kid: “Jesus Cristo Superstar”130 do autor inglês Andrew 129

MARTINS, Antônio Luiz. Mágicas Mentiras. Salvador: Vento Leste, 2009. p.109. Com letras de Tim Rice e música Andrew Lloyd Webber, o musical alcançou uma grande audiência por utilizar esse gênero teatral como linguagem, estabelecendo de vez o estilo opera- rock (que vinha sendo rascunhado no teatro 130

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Lloyd Weber, mas essa opera-rock foi escrita em 1970, ou seja, após o filme de Oliveira, sendo que a sua primeira encenação ocorreu em 1971. Em uma outra sequência de sonho a imagem de Jesus Cristo como figura pop aparece mais evidente. A seqüência se inicia com um plano médio de um apresentador de um Telejornal que inicia a locução das últimas notícias do dia – são as primeiras falas do filme. Uma delas refere-se à aglomeração de milhares de pessoas para ver “o grande ator de todos os tempos Lula Bom Cabelo” que comparecerá na estréia do seu filme “Tarzan e as Bananas de Ouro” no Teatro Castro Alves. A cena corta para as imediações do Teatro Castro Alves, onde um rápido travelling com a câmera na mão mostra uma fila de pessoas. Um corte então mostra a chegada triunfal do jovem protagonista trajado como Cristo – manto estampado e coroa de ramos ao redor da cabeça, montado em um jegue – em uma referência à chegada de Jesus à Jerusalém - e sendo ovacionado pelas pessoas. Lula é ovacionado pelas pessoas e em seu jegue cumprimenta as pessoas como um uma grande celebridade enquanto é assediado pela imprensa. A música extra-diegética é uma marcha militar e a sonoplastia é de multidão histérica. Em um outro momento da sequência, Lula está ladeado por duas mulheres numa fonte na parte externa do Teatro observado por uma multidão. As mulheres despem Lula que acena para o público e espalham sabão em pó na fonte, logo em seguida o personagem senta na água da fonte e as mulheres passam a lhe dar um banho, numa paródia da passagem bíblica do batismo de Cristo. As mulheres prosseguem o banho e começam a passar xampu em seu cabelo enquanto o público contempla a cena. A cena prossegue que uma das mulheres se vira para câmera e profere a seguinte frase: “ele usa sabão baiano, o sabão dos grandes astros”, em seguida a outra moça completa virando-se também para a câmera: “ Ele usa colônia LB Johnson & Johnson. Usando LB Johnson & Johnson Lar, você respira em paz. Forever”, sorrindo e dando um giro. Novo corte para um plano médio em que Lula e as duas mulheres aparecem em pé, uma em cada lado seu. Elas então proferem a seguinte frase (uma completando a outra): “Ele usa toalhas Mastinha...a mais usada no universo”. Há aqui diversas representações relevantes a serem apontadas no que concerne ao universo cultural trazido pelos jovens cineastas “marginal” baiano. Em primeiro plano percebe-se uma vontade de fazer parte daquele mundo da indústria cultural e da cultura de massa e com isso obter visibilidade. Apesar de certa ironia ao retratar Lula como Cristo e como uma estrela de cinema, uma vez que o personagem principal consegue esse feito apenas em sonho, o filme deixa claro que aquele é um espaço desejado por Lula: o de superstar.

desde os anos 60 e teve sua explosão em Hair, de 1968) e associando o rock-n’-roll à rebeldia libertária que Jesus representa para seus discípulos. Cf. FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: uma história social. São Paulo: Record, 2002.

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A identificação com a cultura pop e com o que hoje entendemos como mundo das celebridades tem a televisão como via de acesso. Meio de comunicação ainda sem a dimensão que teria nas décadas seguintes em que a indústria cultural se solidificaria no país, a TV é vista no filme como o espaço de glamurização e espetacularização, e, ao mesmo tempo, parte integrante das referências do campo cultura. Da mesma forma, o batismo de Lula/Cristo faz referência aos comerciais de TV e ao âmbito da publicidade que passa a ser reconhecido também como instância da cultura para além de sua função na esfera das relações econômicas. Do mesmo modo, outras instâncias e referências culturais acabam sendo assimiladas como o da cultura de massa. Como veremos, a cultura popular também fará parte do mosaico que filmes como Meteorango Kid incorporam em suas narrativas coadunando-se, assim com os filmes do Cinema Novo e do Ciclo Baiano. A novidade é que o que era ignorado e descartado enquanto arte pela maioria dos setores da cultura brasileira seja os da elite, sejam os de esquerda, passam a ter validade pelos cineastas marginais, sendo inclusive incorporados à sua narrativa. Desta forma, percebe-se no filme de André Luiz Oliveira a quebra das relações hierárquicas no campo da cultura, podendo-se encontrar no mesmo nível de referências elementos da cultura de massa, da cultura popular e também da chamada “alta” cultura. Por outro lado, em comparação às temáticas trabalhadas em filmes como “Bahia de Todos os Santos” e “A Grande Feira”, Meteorango Kid parece centrar-se em questões

e dilemas

individuais. Os sonhos e desejos pessoais substituem o projeto dos citados filmes do Ciclo Baiano de Cinema que buscavam compreender as relações sociais e culturais da sociedade baiana, mais notadamente de elementos de sua cultura popular. Por sua vez, o objetivo central da obra de Oliveira não é o de apontar as demandas sociais que se apresentavam no período nem o de conscientizar as grandes massas a partir de um projeto coletivo e sim o de enfrentar ao seu modo os emblemas que se apresentavam naquela conjuntura; “Eu não era o único que acreditava e me entregava ao mergulho cego daquela loucura. Eram jovens de todos os cantos, com suas roupas coloridas, deixando seus cabelos e suas barbas crescerem, enfrentando as ordens sociais, cada um à sua maneira. Sempre me comovi com isso. Nos reconhecíamos uns aos outros imediatamente como parte de uma tribo diferente do resto do mundo, antigo, feio, sem cor”131 (grifo nosso).

Outra passagem do filme que exemplifica melhor essa mudança de perspectiva é o da plenária estudantil. Após despertar do sonho, Lula vai cumprir a sua rotina diária e se dirigir à

131

OLIVEIRA, André Luiz. Op. Cit.p. 27.

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Faculdade132. Chegando lá, um colega de Lula o interpela, dizendo: “Lula, Lula, como é que é?! Você está conosco, não? Ele coloca as mãos nas costas de Lula e enquanto começam a subir as escadas juntos arremata: “ A votação está sendo agora. Vá lá!”Corte para continuação da subida em câmera em leve plongée. E o colega de Lula prossegue: “Como é cara você não vai nos decepcionar novamente, né”? A votação está sendo agora”. Então ele para no meio da escada, enquanto Lula prossegue subindo, aponta para cima e diz: “Vamos lá! Firme, viu?!”. Na mesma cena, Lula entra no interior do prédio e encontra outro colega – eles prosseguem caminhando de costas para câmera que os seguem - que o rapaz então diz: “ Lula não recue. Você sabe o que eles estão querendo? Lula resmunga: “ Sei, sei”. “Expulsar os alunos reacionários da escola”. Corte para corredor no interior do edifício, plano médio enquadrando os dois conversando de frente, o colega de Lula prossegue: “Você já pensou o que é isso? O que nós vamos discutir, caso eles consigam essa desgraça. Não. Não se deixe convencer. Lute! Lute até o fim, rapaz!” E Lula responde, indiferente: “Tá, legal!” Corte para o interior de um auditório em que está sendo realizada uma assembléia estudantil. Nessa seqüência, percebe-se o lugar em que os jovens identificados com a contracultura ocupavam na visão dos da esquerda tradicional. Em primeiro lugar é importante destacar que a posição de Lula é de indiferença frente à ameaça de ser expulso da escola por ser “reacionário”. O filme é irônico nesse sentido uma vez que eram exatamente os jovens militantes de esquerda que estavam sendo expulsos das Faculdades por se contraporem ao regime. O recurso à ironia deve-se ao fato de que esses mesmos jovens de esquerda terem acusado de reacionária e alienada a juventude ligada à contracultura por não compartilharem das mesmas visões de mundo e formas de se contrapor ao regime militar. Durante a plenária de estudantes é possível notar todo o sarcasmo do filme com os estereótipos e jargões dos jovens da esquerda tradicional. Primeiramente a sensação que se tem é de confusão e desordem. Todos falam ao mesmo tempo e gesticulam muito. Um deles pede calma para a turba ensandecida em vão. A música “Na cadência do samba (Que bonito é)”133, extradiegética, associada ao futebol, acompanha toda a sequência - o efeito de ironia relaciona aquela assembléia a uma briga de torcidas em uma partida. Enquanto toda a confusão se desenvolve, 132

As cenas se passam na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Samba composto em 1956 por Luiz Bandeira e que se popularizou na década de 1970 ao ser utilizado em cenas de futebol no jornal cinematográfico Canal 100: “Que bonito é/As bandeiras tremulando/A torcida delirando/Vendo a rede balançar/ Que bonito é/A mulata requebrando/Os tambores repicando/uma escola desfilar/ Que bonito é/Pela noite enluarada/Numa trova apaixonada/Um cantor desabafar/Que bonito é/Gafieira salão nobre/Seja rico, seja pobre/Todo mundo a sambar/O samba é romance/O samba é fantasia/O samba é sentimento/O samba é alegria/ Bate que vá batendo/ A cadência boa que o samba tem/Bate que repicando/ Pandeiro vai, tamborim também”. 133

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Lula lê calmamente uma revista em quadrinhos e é então interpelado por um dos estudantes: “Lula, você tem que me ajudar. Você tem que fazer alguma coisa. Não é possível. Tem que fazer alguma coisa. Por favor, Lula!” A câmera gira ao tempo que Lula ainda sentado deixa de ler a revista e fixa os olhos no seu interlocutor e diz: “ Ahh! A dinamite da escola serve pra coisa nenhuma, rapaz!” E sai da assembléia. A crítica às formas tradicionais de contraposição e de luta da esquerda tradicional vista como contraditória e conservadora espelha como a juventude influenciada pela contracultura desdenhava do modo de vida dos jovens militantes das organizações daquele matiz ideológica. Um trecho da biografia de Luiz Carlos Martins ilustra as diferenças de visões de mundo entre eles. A passagem tem o título de “desencanto” e relata a ida do ator de Meteorango Kid por um acampamento do PCB nas imediações de sua cidade natal, Ipiaú, localizada no sul da Bahia: “Lembro que fui levado para um aparelho de reunião do PCB, viajei em um Toyota numa trilha pelos matos, umas quatro horas com os olhos vendados para não ver o caminho. Chegando no aparelho, me botaram para catar feijão e ajudar na preparação do rango. [...]Andava mal alimentado e faminto. Um camarada [..] entregou-me um velho fuzil e ordenou-me que eu fosse vigiar de cima de um morro perto. Eu disse que estava com fome. Ele deu uma risada e me chamou de pequeno burguês que era por causa de camaradas frouxos como eu que o país estava numa merda, comeria na volta da tarefa.”134

Ao voltar da tarefa, porém, Martins constatou que tinham comido todo o feijão. Então em uma reunião no dia posterior, o futuro Lula Bom Cabelo fez “uns desenhos que ia passando para os camaradas em volta. Era Fidel Castro com imensa barriga e a legenda, ‘esquerda grávida’. Olhavam-me desconfiados”. Pouco depois foi expulso do acampamento e do partido após dar uma crise de risos devido a um episódio de flatulência de um dirigente, sendo acusado de alienado e pequeno burguês. Após relatar o episódio, Martins arremata: “A minha ideologia continua sendo o respeito à vida, senso de justiça, trabalho, preguiça e alegria. Agora estava livre do pensamento tirano. Mas valeu a pichação que fiz nos muros de Jequié esculhambando a ditadura militar. Se fosse uma ditadura de esquerda, eu faria o mesmo”135.

A valorização de formas de arte associadas às culturas de massa e popular e descartadas pelas instâncias que se dizem oficiais de reconhecimento também é um dos pontos a ser destacados em Meteorango Kid. Nesse sentido, o mundo das histórias em quadrinhos é uma 134 135

MARTINS. Luiz Carlos. Op. Cit. 2009.p. 71-72. Ibidem. p.73.

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dessas formas citadas na narrativa do filme desde o título136 até passagens em que Lula toma forma de diversos personagens dessas histórias em diferentes sequências e situações – todas elas em sonhos ou delírios. A primeira referência é indireta. Enquanto permanece indiferente à assembléia estudantil em sua Faculdade, ele lê uma revista em quadrinhos. A citação retorna quando o jovem personagem se dirige a um produtor de filmes, interpretado pelo veterano ator Milton Gaúcho para tentar concretizar seu sonho de fazer cinema. Enquanto ele espera ser atendido, ele, a partir da contemplação dos cartazes de um filme chamado “Tarzan e as Bananas de Ouro” passa a se imaginar no papel principal. Uma outra citação ocorre durante a cena da “viagem de drogas” em um apartamento com os amigos Caveira e Zé. Após fumar maconha, Lula passa a ter alucinações, uma delas ele se imagina no papel de Batman. Após oferecer um cigarro de maconha ao pai, durante um café da manhã da família, Lula é humilhado e espancado. Ele então sobe para o quarto e veste-se como o Cavaleiro das Trevas e retorna para matar a mãe e em seguida o pai. Os super-heróis dos quadrinhos permeiam o filme como forças para realização dos desejos de Lula. Tarzan representa o sonho de estar no mundo do cinema e Batman o elemento que catalisa o desejo de anular a castração da família. Desta forma, os dois personagens de histórias em quadrinhos marcam uma narrativa que constitui um mundo ficcional marcadamente fantasista. Por outro lado, fica evidente também certa impotência do personagem em relação à realização dos seus desejos, pois estes ficam restritos ao nível da imaginação e do delírio, o que fica claro na cena final quando Lula retorna para casa depois de um dia de “aventuras” e resignase com seu mundo real quando percebe que seus pais prepararam uma festa surpresa para ele. Outra passagem do filme que revela uma característica da contracultura - o uso de drogas - é a do encontro entre Lula e seus amigos Caveira e Zé. Após se reunirem nas ruas da cidade, os amigos vão se dirigir para um apartamento. Lula senta em uma ponta do colchão o amigo barbudo senta embaixo da janela no centro, Caveira, ainda em pé pega um pano e cobre uma parte do colchão a qual irá sentar-se – a câmera acompanha os movimentos desse personagem -, depois se dirige até a mala e pega um embrulho, então se senta em posição de meditação na outra ponta do colchão e começa a abri-lo. Corte para plano médio onde Caveira e Lula estão sentados no colchão. Caveira cheira o conteúdo do embrulho e tira a camisa e os óculos escuros e como num ritual, esfrega as mãos. Observado de vez em quando por Lula – sentado de forma relaxada encostado na parede – Caveira pega o embrulho e retira pequenos papelotes de seda, escolhe um e retira uma certa quantidade do conteúdo do embrulho – nesse momento iniciam-se os acordes da 136

Título homônimo de uma canção do compositor, flautista e discípulo do maestro Walter Smetak, Tuzé de Abreu, amigo de André Luiz Oliveira, e que curiosamente não faz parte da trilha do filme.

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música “Assim falou Zaratrusta” de Karl Orff logo interrompidos. Caveira pacientemente espalha o conteúdo do embrulho no papel de seda. A cena prossegue com Caveira enrolando cigarro de maconha, acomodando a erva com um objeto na seda passando saliva para colar a seda, cortando uma das pontas. Lula oferece um fósforo – nesse momento os acordes de “Assim falou Zaratrusta” são novamente orquestrados -, para que Caveira acenda o cigarro e dê o primeiro trago. A Câmera, até então fixa, move-se no momento em que Caveira passa o “baseado” para Lula e diz “esse fumo parece que é do bom!”. Lula sai do recosto e dá um trago enquanto Caveira recosta na parede e fecha os olhos para sentir o efeito da droga. O plano-seqüência continua com Lula passando o cigarro para o terceiro amigo - até então fora do plano – e dizendo: “ É da boa!”, sendo que a câmera acompanha até enquadrá-lo juntamente com Caveirinha – Lula então fica fora do quadro - já de olhos abertos acompanhando a passagem. Zé então dá uma tragada, mas mantém o cigarro na mão deixando Caveirinha um pouco nervoso para depois ordenar: “passe o fumo!”. O amigo então diz: “espere aí!” e dá outra tragada. Depois então passa o cigarro para Caveira; a câmera então acompanha e volta o enquadramento de Caveira e Lula no colchão. Corte para plano fechado no amigo de barba, ele olha fixo em direção onde está Caveira e diz: “Caveira, você não presta”. Corte para plano fechado em Caveirinha que olha para Zé, o amigo de barba, e responde: “Também acho, pô!”, volta- se para Lula e ri. Corte para plano fechado em Lula que diz: “Ninguém presta rapaz, só o Duda que era bicha se apagou!” começando a rir. Corte para plano fechado em leve plongée em Caveirinha que inicia uma crise de riso devido à frase de Lula – acordes finais de “Assim falou Zaratrusta”. Segundo Goffman e Joy há um longo histórico sobre utilização de plantas psicoativas como a cannabis sativa para obtenção de visões espirituais e religiosas e poderes curativos xamânicos, permitindo que indivíduos e grupos tenham acesso à divindade sem a intermediação de uma autoridade religiosa. Para os autores estadunidenses, “no que diz respeito à nossa história, estados alterados de consciência algumas vezes podem ajudar as pessoas a conceber verdades alternativas ou deixá-las abertas a múltiplas perspectivas”137. Se por um lado, na contracultura, desde os beatniks, as drogas ocasionalmente estimularam um frutífero frenesi criativo ou criaram um contexto para histórias hilariantes e melancólicas ao tempo de outro o uso prolongado prejudicou em muitos casos a manutenção da dessa criatividade, a sustentação de muitas vidas, ocasionando muitos óbitos. Entretanto, de um modo geral, os jovens daquele período procuravam, através das drogas, alterar seus estados de consciência para ajudá-los a conceber verdades alternativas ou deixá-los 137

GOFFMAN, Ken, JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital. Tradução: Alexandre Martins. São Paulo: Ediouro, 2004.p.61.

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abertos a múltiplas alternativas. Desta forma, para GOFFMAN e JOY, “psicodélicos como LSD e mescalina, embora certamente apresentem alguns riscos, foram um combustível para o impulso contracultural ao iluminarem visões utópicas, inspirarem desvios artísticos e exporem a realidade consensual como um imperador bufão com pés de barro e sem roupas.”138 No final dessa sequência, Lula e Caveira começam a questionar a noção de futuro ao curtir com o discurso de Zé que, durante a “viagem”, começa a se perguntar como será a sua vida dali para frente, segue então o seguinte diálogo: - Lula: O Bandido da Luz Vermelha já disse: ’quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha, pô. Avacalha e se esculhamba’. - Zé: Minha vida, meu futuro... - Caveira: qual vida, rapaz? Qual futuro? O que é que você ainda está esperando? A ascensão das classes desprestigiadas, beijar princesa encantada ou achar a lâmpada maravilhosa? - Lula:Continue esperando,rapaz! Continue esperando que o trem chega, pô! - Zé: Não é nada disso!, Não é nada disso! Não é o que vocês estão pensando! Não é nada disso ! Vocês estão querendo me gozar só porque falei em futuro, pô! - Lula:Quem está querendo te gozar aqui, rapaz! Você está Caveira? - Caveira: Eu não! Eu só falei que quem espera sempre alcança. ( Três vezes salve a esperança. Três vezes salve a esperança). - Caveira: Lula, e o futuro do rapaz?139

Em primeiro lugar, é importante notar que toda essa reflexão aparece após o uso de drogas, ou seja, após a alteração do estado de consciência. Mostra também uma relação de desinteresse com o futuro e sim com o aqui e agora, com o imediato. E em uma referência direta ao filme Bandido da Luz Vermelha, cita uma dos principais lemas dos cineastas marginais e de parte de uma geração encurralada por um país que oferecia poucas opções para a criação e nenhuma liberdade: “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”. Em um ensaio sobre a literatura brasileira durante o regime militar, Silviano Santiago fez uma distinção entre o otimismo que caracterizava grande parte da produção cultural antes do golpe militar e a alegria da cultura tropicalista e pós-tropicalista. Para Santiago, um "otimismo social edificante e construtivo"140 animado pela fé no desenvolvimento nacional informava muito da cultura politizada do período anterior ao golpe militar. Com ascensão de um regime autoritário, esse otimismo se amainou, mas não foi substituído pelo pessimismo. Antes, o terror político provocou o que Santiago chama de reação "dionisíaca e nietzschiana” contra a repressão e a censura: "A alegria desabrochou tanto no deboche quanto na gargalhada, tanto na paródia e no 138

Idem. Meteorango Kid, herói intergaláctico. Sequência 11ª. Cenas: 03- 05. 140 SANTIAGO, Silviano. “Poder e Alegria: a literatura brasileira pós-64”. In:_. Nas Malhas das Letras. São Paulo: Rocco, 2002.p. 139

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circo quanto no corpo humano que buscava a plenitude de prazer e gozo na própria dor"141. Santiago está se referindo aqui à irrupção de uma contracultura jovem brasileira centrada não apena como visto na afirmação individual, na liberação do corpo, na celebração da diferença sexual e racial, no humor iconoclástico em face da autoridade. Setores da oposição de esquerda optaram pela luta armada, enquanto outros adotavam uma política de não-conformidade pacifista conhecida como desbunde. A estreia de Meteorango Kid foi no V Festival de Cinema de Brasília. Segundo o próprio André Luiz Oliveira o filme ganhou uma projeção pública inesperada naquele evento o que assustou o jovem cineasta: N”ao tive estrutura (energia disponível) para assumir integralmente o Herói Intergaláctico”142. Segundo o diretor do filme, foi um choque ver diretores, jornalistas, críticos e personalidades da cultura brasileira que ele tinha como referência “completamente perdidas, sem rumo, acovardadas diante da perspectiva de mudanças que o momento exigia e o filme cobrava”.143 Ao relatar sobre os acontecimentos daquela noite no festival, Oliveira, também, revive a angústia de não saber se o filme seria liberado pela censura: “Até poucas horas antes da sessão do filme ninguém sabia se ele seria exibido ou não. A censura jaó tinha assistido cinco vezes (segundo consta nos autos) e ainda não sabia o que fazer: se proibiam, se prendiam, se queimavam.[...] Ficaram na cabine de projeção abaixando e aumento o som dos diálogos no momento que os incomodavam. Nesses instantes a plateia vaiava.”144

Todavia, o longa-metragem ganhou o Prêmio do Público do Festival e a Margarida de Prata da Central Católica de Cinema. Porém, Oliveira não se recorda muito do momento da premiação: “Lembro muito pouco daqueles momentos porque estava realmente aturdido e chapado com toda aquela movimentação. Não queria falar, não sabia o que dizer e quando dizia era sempre algo catastrófico. Mas o filme falou por mim.” Apesar da liberação da censura para a exibição no Festival de Brasília, Meteorango Kid ficou retido pela censura durante quase um ano. O pai do diretor, Milton Oliveira, viajou diversas vezes de Salvador para Brasília tentando a sua liberação. O que ocorreu depois que o diretor aceitar a inclusão de uma frase exigida pelo chefe da censura: “Todos nós carregamos uma cruz,

141

Idem. OLIVEIRA. André Luiz. Op. Cit. 1997. p.39 143 Ibidem.p.40. 144 Ibidem.p.41. 142

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herança do calvário, e nos crucificamos nela.” Lançado em Salvador em maio de 1970, o filme ficou poucas semanas em cartaz no cine Tamoio.

A recepção crítica de Meteorango: o cinema da Bahia que (não) se vê

O propósito desse tópico não é o de fazer um estudo completo sobre a recepção de “Meteorango Kid, herói intergaláctico” e sim o de obter impressões sobre como essa obra foi em alguma medida recebida. É importante ressaltar que, como visto nos capítulos anteriores, no que tange à distribuição e à exibição, havia limites muito claro para que o cinema brasileiro fosse visto pelos próprios espectadores do país. As empresas exibidoras e distribuidoras, assim como os donos das salas de cinema visavam o lucro e esse elemento estava associado com um modelo bem definido de dramaturgia e narrativa o qual os filmes enquadrados como Cinema Marginal não se alinhavam. Como produções à margem do mercado, muitos desses filmes nem sequer foram exibidos no circuito oficial de salas de cinemas, mas apenas em festivais e mostras. Em relação aos três filmes aqui analisados, a pesquisa constatou que apenas dois deles “Meteorango Kid, herói intergaláctico” e “O anjo negro” foram exibidos em um curto período em salas de cinema locais, obtendo alguma repercussão. Após a destruição de uma das cópias de “Caveira my friend”, sem que o filme fosse lançado e exibido em salas do circuito, uma segunda foi encontrada apenas na década de 1990. No que tange ao registro dessa recepção, a situação torna-se ainda mais problemática uma vez que apenas críticos especializados em periódicos locais detinham o monopólio da opinião sobre os filmes. Sendo assim, foram averiguadas algumas opiniões ou discursos sobre as duas obras citadas. Considera-se também que o universo da recepção “é configurado e formado por diversos tipos de objetos, realidades e fenômenos de caráter subjetivo, cultural, político, social etc.”145 Levando-se em conta que o estudo de interações entre públicos, a obra, o texto e o contexto sociocultural e histórico podem se referir aos modos individuais, coletivos e comunitários do processo de recepção e devido à própria quantidade de registros levantados, escolhemos a crítica, especializada ou não, pois os seus “vestígios discursivos parecem tão importantes quanto os filmes sobre os quais ela escreve.”146

145

BAMBA, Mahomed. Introdução: estudos da recepção e da espectorialidade cinematográfica: da teoria aos estudos de caso(vice-versa). In: BAMBA, Mahomed(org.). A recepção cinematográfica: teoria e estudos de caso. Salvador: Edufba, 2013.p.8. 146 Ibidem.p.11.

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Um pouco da recepção crítica de Meteorango Kid pode ser medida em uma reportagem feita pelo jornal “Tribuna da Bahia” de 18 de maio de 1970147, ocasião em que o filme foi lançado. Foram colhidos alguns depoimentos de artistas e intelectuais na época o que limita uma percepção mais ampla da obra. De qualquer forma, alguns elementos podem ser percebidos desses comentários os quais ajudarão a entender como o filme foi recebido na época. O escritor Jorge Amado é o primeiro a expressar a sua opinião sobre o filme. Primeiramente ele considera a obra “um soco violento, denúncia amarga de uma sociedade em fase de decomposição”. O autor dos romances “Gabriela Cravo e Canela” e “Capitães de Areia” observa muitas qualidades no diretor André Luiz Oliveira como talento e honestidade, além de uma personalidade original. Amado atém-se ainda mais sobre esse último predicado do jovem diretor, observando que “o moço baiano, se nasce de todas as conquistas do cinema atual, é distinto dos demais, não repete, não imita é um criador”. Ao falar sobre o filme, percebe uma “intensa força dramática, sendo por vezes cruel”, porém contrapondo-se a momentos de fundo lírico. “Drama e lirismo cortados por um senso de humor que não das menores qualidades do cineasta”. Finalizando a opinião, o escritor ilheense considera o filme uma obra de “alta beleza” que “comove e revolta”. Na mesma matéria, o artista plástico Mário Cravo Filho também expõe sua opinião sobre o filme. Ele considera a obra coesa, pois apresenta “flashes de situações, mitos e símbolos”. Ao analisar a película de André Luiz Oliveira, Cravo Filho constata que o longa-metragem é “mais documental que filosófico, mais sensível que intelectual” e “aponta um desabrochar de um jovem criador”. O escultor, ainda, considera como pontos altos do filme o fato deste abordar os problemas da juventude da época “dentro da atmosfera e da paisagem baiana”, e o de ser um “registro cruel, às vezes cômico, outras lírico, porém sempre carregados de uma enorme força plástica e humana”. Mário Cravo Filho, ainda destaca o desempenho de Luiz Carlos Martins, a fotografia de Vito Diniz, bem como a montagem e as músicas, classificando também a direção de Oliveira como “magnífica”. Avalia ainda que Meteorango Kid é a maior revelação do cinema baiano dentro do cenário nacional. Há duas curtas opiniões na citada matéria, uma de Genaro de Carvalho que considera André Luiz “o jovem Chaplin do Tropicalismo” e o de Carlos Coquejo que avalia o filme como uma revelação e o cineasta, mesmo jovem, já amadurecido para os problemas do seu tempo. Ainda sobre o longa-metragem, Coquejo observa que ele é “um depoimento dramático, irreverente, pessimista sobre os jovens desesperados que não encontram a saída.” Jairo Simões 147

AMADO, Jorge et alii. Meteorango Kid/Meteorango dentro da galáxia. Tribuna da Bahia. Salvador, 16 de maio de 1970.p.03.

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achou o filme “espetacular”. Ao avaliar o diretor, informa que conhece André Luiz e o classifica de “necessariamente inteligente”. Afirma, também, que o filme excede às expectativas para uma obra de um estreante. Da mesma forma Simões observa que o filme, além de bonito, é de fácil comunicação com o público, achando esse um mérito indiscutível; “um filme de linguagem diversificada, mas que não cansa o espectador, não exigindo a este esforço excepcional”. Simões ainda nota que apesar da universalidade da linguagem há uma “indisfarçável ternura baiana que sem qualquer intenção turística, aparece nos ambientes e nos tipos retratados.” No final, comenta que “André poderia ter dito: ‘eu vivi na Bahia e, por incrível que pareça, eu vejo o mundo...’”. O texto mais longo da reportagem é assinado pelo crítico e cineasta Guido Araújo. Logo de início ele afirma que Meteorango Kid é o grande lançamento da temporada cinematográfica local. Em seguida compara Meteorango com o longa-metragem Macunaíma do cinemanovista João Pedro de Andrade, lançado na mesma época. Araújo considera que o filme de Oliveira “fala mais de perto”, ou seja, diz mais sobre a realidade da Bahia. Ainda confrontando os dois filmes, o criador das Jornadas Baianas de Cinema observa que Macunaíma teve um orçamento muito mais robusto que Meteorango e que, mesmo assim, esse último, com pouco dinheiro, conseguiu ser um filme de qualidade, constituindo-se um exemplo de que é possível realizar filmes com baixo orçamento. Araújo, também, iguala em importância Meterorango à Barravento e afirma que se Glauber era uma promessa no início da década de 1960 e se tornou uma realidade, André Luiz da mesma forma “pode se tornar um alento da produção cinematográfica baiana”. Guido Araújo vê semelhanças entre os dois cineastas, pois suas obras de estreia revelam uma visão crítica aguçada da realidade social. Prosseguindo a comparação, o critico constata também diferenças entre os cineastas nos seus primeiros filmes. Para ele, Glauber parte de uma visão folclórica e romântica para, em seguida, à medida que apresenta as condições sociais dos pescadores do litoral baiano, dialeticamente denunciar a exploração econômica e religiosa a que são submetidos. Enquanto isso André Luiz, segundo ele, possui uma visão pessimista e anárquica de uma realidade a qual o diretor está familiarizado e o mesmo abomina. Araújo em determinado momento da crítica observa “uma influência hippie no filme, apesar da contestação em Meteorango ser bem mais viril do que aquela que costuma ser praticada pelos movimentos hippies” e vê certa imaturidade e sequências desnecessárias, como a dos piratas, e magníficas como a da sessão de maconha “quando os jovens ‘maconhados’ entram no espaço cósmico – única viagem espacial possível para uma juventude de um país subdesenvolvido”. No último comentário em forma de artigo intitulado “O tango de Meteorango”, Luis Simões também destaca a cena da sessão de maconha, percebendo que nela “concentra uma dramaticidade e até certa magia”. Ele destaca outras sequências que chamaram à sua atenção 81

“positivamente, ou negativamente ou tudo ao mesmo tempo” como a crítica ao movimento estudantil que ele considerou engraçada e ultrapassada e a cena da sala de jantar na qual Lula mostra ao pai um “simplório cigarro de maconha” que ele considera uma “sacação antiquíssima e atualíssima”. E finaliza dizendo que “o filme é divertido. Mas isso para mim não basta”. Analisando-se essa recepção crítica do filme, podem-se constatar alguns aspectos: o primeiro deles é que o filme provocou variadas impressões nos espectadores, desde denúncia amarga, passando por drama, diversão, humor e lirismo. Chama a atenção, em grande parte das críticas, as observações sobre a juventude do diretor e o fato de, mesmo com pouca idade, ter feito um filme de qualidade. Como ponto positivo do filme uma parte da crítica aponta para o fato do diretor ter abordado temas universais tendo o ambiente e a paisagem da Bahia como cenário. Os problemas de juventude e a falta de perspectiva desta diante da situação político-social do país também foi comentada por parte dessas críticas. Nenhum dos comentários vincula diretamente o filme ao movimento da contracultura e apenas um, o de Genaro de Carvalho, associa-o diretamente ao tropicalismo. Nesse âmbito, apenas Guido Araújo faz associação do filme com o movimento hippie, porém com a ressalva de que a crítica observada no filme é muito mais “viril” que a feita pelos integrantes daquele movimento associado com a contracultura. Muitos falam em visão de mundo anárquica e cruel, porém grande parte afirma que o filme se preocupa com a realidade social, sendo inclusive uma crítica em relação à conjuntura da época. Em relação às comparações com o Cinema Novo, apenas Guido Araújo observa as diferenças de perspectivas entre os dois momentos do cinema, equiparando Meteorango a dois filmes: Macunaíma e Barravento. Nesse sentido, observa que o filme de Oliveira possui um traço mais niilista, trágico e pessimista em relação à geração cinemanovista. A cena que mais chamou a atenção dos críticos positivamente foi a da sessão de maconha, interpretada como uma fuga da realidade difícil a que a juventude daquele período estava submetida. Interessante notar que nenhum deles faz menção a um vínculo do filme com uma cultura marginal e, uma parte destaca a linguagem do filme, considerada como de fácil comunicação com o público. 3.2. Caveira, my friend: contracultura e banditismo social Álvaro César Guimarães nasceu em Salvador, no ano de 1943. Ator, diretor, cenógrafo, figurinista, aderecista, designer, produtor, dramaturgo, jornalista, apresentador de televisão, radialista, fez diversos cursos na Escola de Teatro antes mesmo que esta fosse absorvida pela Universidade Federal da Bahia. Alvinho, como era mais conhecido, foi um pioneiro da profissionalização da arte cênica no estado, uma vez que protagonizou diversas iniciativas de produção de espetáculos com 82

financiamento privado ou esquemas coletivos e independentes de produção. Desta forma, dirigiu, produziu e atuou em diversas montagens durante a década de 1960, participando assim de todo o contexto da cultura da Bahia daquele período. Sua estréia no teatro foi em 1960, como ator, no espetáculo “Uma Véspera de Reis”, com direção Carlos Falk, uma produção da Escola de Teatro da UFBA. No ano seguinte, atuou na peça “Calígula” no Teatro Castro Alves; uma grande produção da Escola de Teatro que contava como atores como Sergio Cardoso, Nilda Spencer, Helena Ignez, Geraldo Del Rei e Antônio Pitanga, direção de Eduardo Guennes, cenografia de Lina Bo Bardi e adereços de Mario Cravo. Sua primeira experiência com o cinema remonta à participação como um dos assistentes de direção de Glauber Rocha em “Barravento” de 1961, além da realização do curta-metragem “Moleques da Rua” em 1962. Naquele mesmo ano, Guimarães criou a Cia. de Teatro Popular da Bahia – TPB e com esta montou o espetáculo A Exceção e a Regra, de Bertold Brecht, apresentada no Auditório da Biblioteca Pública. A peça foi dirigida por Wilson Vitorino e tinha como assistente de direção o jovem Caetano Veloso. No ano seguinte, a TPB encenou Os Fuzis da Sra. Karrar, também de Brecht, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, com Harildo Deda no elenco e na assistência de direção. Após algum tempo longe dos palcos, Alvinho volta-se novamente ao cinema em 1965, ao dividir a cenografia do filme “Menino de Engenho”, de Walter Lima Jr., com Júlio Bressane – um dos principais diretores do que viria a ser o Cinema Marginal. No ano posterior, fixa-se no Rio de Janeiro e funda um grupo teatral denominado Teatro de Câmara, ocupando a função de diretor artístico. O grupo montou alguns espetáculos, destacandose a adaptação do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles. Todavia o espaço onde o grupo montava suas peças foi invadido e interditado pela polícia em abril daquele ano. Em 1967 encena Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues, com o Teatro Popular da Guanabara, no Teatro Miguel Lemos, encerrando assim uma experiência de três anos na “Cidade Maravilhosa”. Retornando para Salvador em 1968, ocupa as funções de cenógrafo e figurinista da peça “A Senhorita”, encenada no Teatro Castro Alves. Naquele mesmo ano, também criou cenários e figurinos d a peça O Guardião de Túmulo, produção da Companhia de teatro Studium que tinha no elenco Nonato Freire, ator que foi convidado a ser um dos protagonistas de Caveira, my friend. No final do mesmo ano e começa a produção de Caveira, my Friend juntamente com o amigo de infância e colega de palco Orlando Senna. Os dois resolvem fazer uma parceria que incluiria a produção e a pós-produção de “69: A construção da morte” filme dirigido por Senna e filmado quase que no mesmo período. Devido à censura, a invasão de teatros da polícia e 83

proibição de algumas peças teatrais na cidade, Senna e Guimarães resolvem expressar suas idéias em outra linguagem em produções inspiradas na realização de um cinema barato e independente que surgira em São Paulo e que tinha inspirado André Luis Oliveira a realizar “Meteorango Kid”. Segundo Orlando Senna, “os produtores dos filmes eram a família de Alvinho (nenhuma novidade, Meteorango Kid foi bancado pelo pai de André Luiz) e Braga Neto, figura histórica do cinema baiano, ator do mítico Redenção.”148 No filme, o cineasta baiano nascido em Lençóis participou como co-roteirista e ator, interpretando o personagem do deputado/empresário que casa com a garota de programa interpretada pela sua mulher a atriz Conceição Senna. O ambiente das gravações coadunava-se com o momento da contracultura em que os jovens atores e técnicos em regime de trabalho coletivo em que passaram a conviverem juntos em um clima de celebração, curtição, e consumo de drogas que se refletia no tipo de mise-en-scene voltada para o improviso. O filme aproximou jovens atores formados na Escola de Teatro da UFBA como o já citado Nonato Freire, Paula Marins e Sônia Dias a veteranos como Nilda Spencer e Wilson Mello. Há ainda a presença da atriz Gessy Gesse que se tornaria famosa meses depois por se tornar a sétima esposa do poeta Vinícius de Moraes e também do grupo Novos Baiano que além de compor toda a trilha do filme teve os seus integrantes participando como figurantes das filmagens, principalmente Baby Consuelo que acabaria interpretando a namorada do personagem Caveira. Três representações da juventude: artistas, bandidos e caretas. O filme concentra a sua ação na trajetória do jovem Caveirinha149 que, juntamente com um grupo de amigos, resolve empreender assaltos pela Cidade, criando um mito em torno de si. A película envereda-se por uma espécie de crônica diária tanto do núcleo dos jovens do bando quanto de um grupo de artistas. No meio desses, há o mundo dos caretas, onde se destaca um jovem bancário que acabará tendo relacionamentos fugazes com garotas dos dois grupos, tentando se aproximar destes sem, no entanto, conseguir pertencer a nenhum. A trama então expõe três possibilidades de conduta para a juventude da época: os convencionais, ou “caretas”, na figura do bancário, sua namorada e colegas de trabalho, os artistas e seu mundo de curtição, festas e futilidades e os rebeldes na figura dos assaltantes que empreendem um estilo de vida de aventuras e riscos até o final trágico. Há ainda uma personagem que transita entre os três mundos: a prostituta Baby Consuelo150, interpretada pela atriz Conceição

148

LEAL, Hermes. Op. Cit. 2008. O ator Manoel Costa Júnior fez um personagem com o mesmo nome em Meteorango Kid 150 Segundo Orlando Senna em suas memórias, a hippie Bernadete Yang Sol trocou de codinome durante as filmagens, adotando o nome da personagem de Conceição Senna. 149

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Senna, que procura casar com um homem rico para mudar de vida e o da artista plástica interpretada por Paula Lima que busca conseguir dinheiro para sair do país. A seqüência inicial do filme apresenta o grupo dos bandidos. Um plano aberto mostra a prisão de um dos membros do bando nas dunas do Abaeté, ele vai ser um narrador que pontualmente conduzirá a trama ao narrar os fatos ocorridos até aquela prisão. Em seguida, após uma elipse temporal do presente para o passado, Caveira e seu bando são apresentados em ação ao assaltarem um grupo que levava uma encomenda desconhecida - em cenas em que se destacam a montagem ágil e sem diálogo, a trilha dos Novos Baianos e a narração em off dos fatos. Logo uma faceta se destaca, a crueldade do bando que mata sem piedade os portadores da encomenda que tentam reagir ao assalto – no momento em que rende o grupo, o narrador repete as palavras ditas por Caveira: “eu sou Calígula. Ajoelhem-se agora! Eu tenho a vida de vocês nas mãos. Eu sou Deus. E Deus é isso: um homem com um revólver na mão”. Um deles é perseguido em um local de muita vegetação e acuado em um casebre de barro onde é fuzilado por Caveira e um comparsa – há uma elipse em que se ouvem apenas os sons dos tiros, e um corte para os dois bandidos saindo do local da execução sorrindo. Percebem-se alguns elementos que dirá muito sobre o filme nestas primeiras cenas em relação a esses jovens: em primeiro lugar nota-se que todos são oriundos da classe média, todos estão bem vestidos e nitidamente se divertem em toda a ação, especialmente quando matam. Em segundo lugar, fica evidenciado que os propósitos daqueles atos além da curtição é o dinheiro. Não havendo, portanto, qualquer motivação de fundo político-ideológico. A dureza e a crueldade ressaltada dos bandidos também são motivadas pela quebra dos seus códigos de ética. Em uma seqüência posterior, o bando se dirige a um bairro pobre afastado onde está escondido um membro que denunciou o grupo para a polícia. Primeiramente eles encontram uma idosa com problemas mentais e sua filha que explica ao grupo a situação em que se encontra sua mãe. A cena prossegue com a indiferença frente ao quadro da mulher intercalada pela procura do ex-integrante do bando pelas casas do lugarejo. Os atores atuam como se estivessem em transe. Seus gestos são lentos e realçados pelos planos fixos. Quando o traidor é encontrado e cercado o narrador em off declama um poema que aponta a personalidade do personagem Caveira: “Caveirinha era bom. Ele achava que se trair é humano, morrer também era. Caveirinha era mau. Ele achava que se trair era humano, morrer também era. Caveirinha era amigo. Ele achava que se trair era humano, morrer também era. Caveirinha era duro, ele achava que se trair era humano, morrer também era.”

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Após o narrador declamar esses versos, o homem e a jovem do início da cena são executados com vários tiros. Na seqüência, para não haver dúvidas sobre a frieza do personagem central, o mesmo vai à direção da mulher doente e a encara. Esta, com medo, tenta fugir, mas Caveira a assassina com vários tiros para não deixar testemunhas e diz:“acabaram de fundir a cuca da velha”. Esses dois momentos do filme revelam uma representação da juventude envolvida em atos de violência que pode ser lida como uma alusão aos militantes da resistência armada ao regime militar na sua maioria jovens universitários da classe média que, como sabido, assaltavam bancos, sequestravam diplomatas estrangeiros e possuíam um rígido código de conduta. Por outro lado, também há um forte diálogo, apesar de certo tom irônico, com o imaginário dos cangaceiros e, portanto, com as representações do Cinema Novo, especialmente os filmes de Glauber Rocha em algumas passagens, como a cena final em que o bando é perseguido e seus integrantes são mortos pela polícia na Lagoa do Abaeté, localizada no bairro de Itapoã, em que a mise-en-scene da morte dos jovens bandidos lembra as cenas finais de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Juntamente a essas referências, pode-se notar uma narrativa próxima às releituras dos filmes de gangster feitas pelo diretor francês da Nouvelle Vague Jean-Luc Godard. Essas referências demonstram que a relação com o Cinema Novo era muito menos crítica do que os outros filmes associados ao Cinema Marginal. Importante notar que tanto Álvaro Guimarães quanto Orlando Senna transitaram de alguma forma pelo Ciclo Baiano de Cinema e muitas de suas idéias sobre a sétima arte advinham dessa experiência, o que permite dizer que condensou de forma positiva o legado que o Cinema Novo transmitiu para aquela nova geração. O núcleo dos artistas é centrado na trajetória da pintora interpretada pela atriz Paula Martins. As primeiras cenas em que o grupo é enfocado são como esquetes nas quais os personagens interagem em diversas situações e momentos – festas, entrevistas, reuniões, exposições de arte, recitais de poesia etc. São cenas rápidas montadas como se fossem em seqüência, apesar dos ambientes diferentes, cujos diálogos entre os atores, em sua maioria, estão dessintonizados com o que ouvimos. A contraposição de gerações que marca a contracultura do momento é logo explicitada em uma das cenas em que um dos jovens artistas em um plano fechado e se dirigindo ao espectador proclama: “As gerações passadas só conheciam as coisas erradas. Eles só conheciam os erros. Nós, pelo menos, não conhecemos nada.” Percebe-se ao mesmo tempo, apesar do tom de galhofa em que a frase é dita, além da crítica às gerações anteriores, um tom de autocrítica em relação à geração atual no sentido de sua alienação do mundo. A apresentação desses jovens centra-se então na pintora que em seu atelier declara que

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sonha em sair do país, mas que lhe falta dinheiro. Assim, se os bandidos assaltam, pilham e matam sem um motivo concreto aparente que não a diversão, os artistas são alienados e fúteis, voltados um mundo. O sonho de sair do país da pintora se revelará trágico, uma vez que ela tentará ingressar no bando para conseguir o dinheiro para a viagem. Na cena em questão, após iniciar um relacionamento com o personagem do bancário interpretado pelo ator Nonato Freire que também se aproximou do bando, ela é levada pelo namorado para o esconderijo do bando que a essa altura estava acuado e caçado pela polícia. Paranóicos, eles passam a questionar se a mesma não tinha trazido a polícia com ela. Um dos membros do bando acaba apontando a arma para as costas da pintora e apesar do próprio Caveira mandar liberá-la, ele atira. A morte da pintora nas mãos do bando revela a incompatibilidade entre os grupos, ao mesmo tempo em que demonstra que a vida de aventuras e perigos dos bandidos atraía tanto artistas, quanto caretas. Sobre este último grupo de jovens, é possível identifica que são retratados como pessoas conservadoras, preocupadas em seguir as normas de conduta e comportamento da sociedade como a de ter um bom emprego, e a de constituir família através do casamento. Neste grupo há a figura emblemática do bancário que parece querer fugir a esta convenção. Representado como um romântico, ele se apaixona durante o filme por diversas mulheres. Primeiramente por uma colega de banco cuja família considera que o relacionamento com ele não teria futuro. Em seguida se aproxima da prostituta Baby Consuelo – a outra personagem que transita entre os grupos - que o esnoba e o troca pelo deputado, a seguir ele tenta se relacionar com uma das integrantes do bando que o rejeita e por fim se envolve com a pintora. No fim, ao ver a companheira assassinada pelo bando do Caveira, ele consegue fugir e deleta o grupo para a polícia. O jovem comum então é retratado como alguém sem identidade ou uma marca própria e, portanto, conformado com os ditames sociais. Os que tentam sair desta lógica, os fazem por razões pessoais e não por pertencimento a uma causa ou grupo – explica-se então a desconfiança dos bandidos e a indiferença dos artistas em relação ao bancário. Álvaro Guimarães assimila para o universo contracultural os binômios artista x povo, alienação x conscientização, ética x estética, poder x revolta discutidos principalmente nos filmes “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha. A diferença, porém, é que no filme de Álvaro, não apenas o povo é alienado, mas artistas e bandidos também. O artista, em Caveira, my friend, não tem nenhum interesse em ser a voz do povo, muito menos de conscientizá-lo, mas apenas curtir e produzir arte, nem que para isso tenha que entrar para o lado dos bandidos. O povo, por sua vez, aqui representado tanto pelo bancário quanto pela garota de programa, mantém-se em sua posição de obedecer aos ditames do status quo ou de se aproximar de artistas, bandidos ou do poder – neste último caso, a prostituta que se casa com o deputado – 87

apenas por interesses individuais. Já os bandidos, signos da revolta e da revolução nos filmes cinemanovistas, agora ganha contornos também individiualistas e os motivos de sua revolta e de seus atos não possuem uma causa.

Caveira e banditismo social: imagens à Luz Vermelha O historiador inglês Eric Hobsbawn151 conceitua o banditismo social como uma das formas mais primitivas de protesto social organizado e situa este fenômeno quase universalmente em condições rurais, quando o oprimido não alcançou consciência política, nem adquiriu métodos mais eficazes de agitação social. Esta forma de protesto social surge especificamente e se torna endêmica e epidêmica durante períodos de tensão e deslocamento, em épocas de escassezes anormais, como fome e guerras, depois destes ou no momento em que as presas do dinâmico mundo moderno se fincam nas comunidades estáticas para destruí-las e transformá-las. O banditismo social se configura como um modo pré-político de resistir à um tipo de opressão social que destrói a ordem considerada tradicional, em condições de violência extrema, ocasionando transformações em um curto espaço de tempo. O bandido social representa uma rejeição às novas forças sociais que impõem um poder cuja autoridade não é totalmente reconhecida ou aprovada pela sociedade que auxilia e protege o bandido. O bandido social não planeja com suas ações a transformação do mundo, não é um revolucionário, apenas tenta pôr um limite ou reverter a violência dos opressores. Seu papel não é o de acabar com o sistema que origina a opressão e a exploração, contra as quais esta figura se confronta, mas fazer com que os valores tradicionais fossem preservados - valores estes que a população protege e considera justos. Portanto, por sua ação e ideologia, o bandido social é um reformista: age dentro do marco institucional imposto por um sistema cuja existência não é posta em juízo. Por isto, afirma Hobsbawm, para converterem-se em defensores eficazes de seu povo, os bandidos teriam que deixar de sê-lo. Essas considerações sobre o conceito de “banditismo social” formulado pelo historiador inglês Eric Hobsbawn, ajudará este trabalho a entender como na década de 1960 os cineastas Rogério Sganzerla e Álvaro Guimarães construíram personagens sínteses da própria condição de marginalidade de suas obras e ao mesmo tempo pastiches dos (anti)heróis contraditórios do povo representados em diversos filmes como, por exemplo, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de

151

HOBSBAWN, Eric: Bandidos. Rio Janeiro: Florense/Universitária, 1976.

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Glauber Rocha. Antes, porém, é necessário uma contextualização do que foi a representação do marginal e ou do bandido no mundo das artes brasileira do final da década de 1960 e início da de 1970. II A representação social do marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970 permeou debates e discussões em diversos campos do conhecimento. Aquela foi uma conjuntura de crescente urbanização em decorrência da migração das populações das áreas rurais para os grandes centros, ocasionando o aumento da favelização, do desemprego e também da violência. Nesse sentido, o aumento de pessoas à margem da sociedade confundiu-se também àqueles que recusavam o status quo político e cultural vigente no país. Sendo assim, “subversivos, bandidos, favelados, drogados, desbundados ou loucos eram algumas das suas derivações, dependendo do espaço discursivo em que eram aplicadas.” 152 Naqueles anos, bandidos como Mineirinho, Cara de Cavalo e João Acácio Costa, o Luz Vermelha ficaram famosos pelas suas ações que confirmavam o clima de violência urbana que a sociedade brasileira começava a viver, derrubando o mito do retirante e do morador de favelas pacíficos. Aliados a um início de repercussão midiática de vários casos e o surgimento de programas de rádios especializados em casos policiais e seções exclusivas desse tema em periódicos, havia a ação dos grupos de resistência armada contra a ditadura militar que os meios de comunicação no geral colocavam no mesmo rol dos crimes comuns. Neste sentido, “bandidos e ativistas políticos faziam parte de um universo onde o uso legítimo da violência era reivindicado pelo Estado e apoiado por grande parte da população.”153 Desta forma, desde os trabalhos de Hélio Oiticica até os filmes de Rogério Sganzerla refletiram um clima de violência urbana social e política e representavam dois elementos de marginalização do país: o banditismo e a clandestinidade. Esses dois pólos acabaram funcionando como uma alegoria da própria condição do artista espremido entre os esquemas tradicionais de arte, os esquemas de mercado, o aprisionamento do gosto, o conformismo da classe média e as limitações da liberdade de expressão impostas pelo regime ditatorial vigente no país naquele período. Para esses artistas, estar à margem era uma postura consciente em razão das possibilidades oferecidas, criando assim novos espaços de ação e produção. A essa nova postura, casou-se o advento da contracultura no sentido de um movimento global da juventude que se contrapôs à cultura hegemônica e empreendeu novos paradigmas comportamentais e culturais.

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COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 208. 153 Ibidem.p.214.

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Nesse contexto, o cinema (marginal) produzido por jovens cineastas que recusavam a linguagem e as formas de produção e exibição de filmes identificados como de indústria ou comercial teve como personagem principal o indivíduo à margem da sociedade, relegado aos ambientes sociais e culturais degradados em que o desbunde e o avacalho eram procedimentos de contraposição ao momento pelo qual o país se encontrava; personagens urbanos com traços violentos, sejam originários das camadas populares ou sejam da classe média. Filmes como “Zezero” de Osualdo Candeias, “Matou a Família e foi ao Cinema” de Júlio Bressane “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla repetiam esquemas que representavam uma legião de bandidos, outsiders, artistas, catadores de lixo, vendedores ambulantes em situações nunca passivas e sim de reação catártica aos modelos de uma sociedade vista como repressora e conservadora. Tendo o Cinema Novo como horizonte de influências no sentido de reassimilação do ideário de seus anos iniciais – uma câmera na mão e uma idéia na cabeça -, os jovens cineastas marginais trouxeram a figura do bandido – abordado pelos cinemanovistas como uma figura utópica revolucionária do povo revoltado – para o do bandido motivado por questões não apenas coletivas mais principalmente individuais, constituindo-se como um herói produto da degradação cultural e social.

III A variante do bandido do filme “O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla” se estrutura a partir do banditismo social, relacionado ao ambiente urbano. Avacalhada e escrachada, a imagem de Luz Vermelha ficava sempre vinculada à ideia de marginalidade, no sentido de “estar à margem” da sociedade, o que deixava sua figura muito próxima da representação do criminoso vítima das injustiças sociais, como vista nos moldes do banditismo social retratado pelo Cinema Novo. Essa marginalidade de ‘Luz Vermelha’ relacionava-se a tudo que se encontrava fora da lei, ou seja, fora da institucionalidade repressora, em um universo em que era inevitável reagir ao que o excluía. Essa reação geralmente vinha acompanhada de uma significativa dose de violência, legitimada pela condição de exclusão social do bandido. Segundo Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha é um personagem político na medida em que é um boçal ineficaz, um rebelde importante, um recalcado infeliz que não consegue canalizar suas energias vitais”. 154 Na versão do filme Caveira my friend, o bandido social também, como no filme de Sganzerla, está alocado no ambiente urbano. A ideia de marginalidade, porém, não se utiliza do avacalho e do escracho; Caveira é um marginal tenso, sério e reflexivo. O personagem de Manoel

154

FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Ed. Max Limonad. 1986.p.55

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Costa Júnior quase não fala, age. Parece se divertir apenas quando comete assaltos, ou mesmo quando mata. Caveira está sempre compenetrado como se pensasse nos próximos passos. Mesmo sem o escracho, característica de personagens típicos do Cinema Marginal, como Luz Vermelha e Lula de Meteorango Kid, a sua condição de à margem da sociedade, e no caso, de fora da lei, o configura como um bandido social. Entretanto, diferentemente de Luz Vermelha, Caveira não tem uma história que justifique sua opção pela marginalidade. Seus atos sugerem que tudo é curtição, ou mesmo somente um modo fácil de obter dinheiro. Todavia a conjuntura em que foi realizado o filme pode sugerir outras interpretações como a de que aquela é uma alusão aos grupos de jovens que se enveredaram pela luta armada para combater a ditadura militar, disfarçada pela ausência de um discurso político, de uma causa mais objetiva para os atos e pelo clima de curtição apesar da sobriedade e frieza do bando. Outra diferença entre Caveira e Luz Vermelha é o fato do primeiro agir coletivamente como um bando, diferente do protagonista do filme de Sganzerla que age solitário, como os bandidos urbanos que ganharam projeção naquele período. Nesse ponto, Caveira se aproxima de personagens como o de Lampião que comandava um grupo de cangaceiros e desta forma das referências trazidas pelo Cinema Novo, especialmente Glauber Rocha e seus dois filmes sobre o cangaço: “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”. Os bandidos Luz Vermelha e Caveira são anti-heróis155 que não se prendem a nomes, lugares e nem a pessoas. As imagens por eles construídas na perspectiva da marginalidade os colocam no prisma da contracultura no sentido de se contraporem à cultura hegemônica. No caso do filme de Álvaro Guimarães os atos de Caveira se contrapõem ao jovem de classe média enquadrado em um padrão de comportamento que mantém inalterada a estrutura social e política, personificado no papel do bancário, bem como ao do artista/intelectual que vive no plano do lúdico e das divagações. A favela, em “O Bandido da Luz Vermelha” é o suposto lugar da origem do bandido, não é necessariamente o local do inicio de sua empreitada no crime, mas sim uma representação abrangente do universo da exclusão social, sendo o espaço uma das alegorias do subdesenvolvimento descritas por Ismail Xavier156. No filme baiano, apesar de não revelado, o personagem Caveira advém de um ambiente de classe média. Ele se relaciona com os jovens artistas e com os hippies, frequentando festas e badalações, vestindo-se com roupas da moda. Ao contrário, a relação com os personagens que se aproximam com a imagem de “povo” é de

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O sentido de anti-herói aqui percebido é o do personagem que se aproxima das características humanas guiadas por sentimentos como egoísmo, individualismo, vaidade, etc.. 156 XAVIER, Ismail. Op. Cit, 1993.

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interesse pessoal – eles compram drogas nas mãos da prostituta Baby Consuelo – ou de desconfiança – como fica evidenciado na relação com o bancário que quer entrar no grupo. Desta forma, percebe-se que Caveira, my friend ao contrário do filme de Sganzerla -que está imbuído de construir um discurso em que relaciona o lugar positivo da marginalidade no sentido de ser uma contraposição ao poder e às formas de cultura que são hegemônicas, bem como uma alegoria do Brasil enquanto periferia do mundo devido ao seu subdesenolvimento – revela um traço mais pessimista da marginalidade e do marginal - a citação no início do filme já sintetiza essa idéia quando afirma que “Bandido demais vira bicho. Bicho interessa?” – ao retratar os bandidos do filme como jovens angustiados, sem uma causa para os seus atos, além de cruéis e indiferentes. Apesar de ambos os personagens principais dos filmes serem mortos no final pelas forças do poder constituído, Caveira não receberá como Luz Vermelha as honras de um herói e sim de um jovem errante que impunha o respeito pelo medo. O banditismo social de Caveira, my friend revela uma rejeição às novas forças sociais que impõem um poder, mas essa contraposição é mais estética do que política. A violência é um estilo de vida radical e no limite, um modo de recusar as formas tradicionais de convivência, bem como à contraposição que teinha como o lema “Paz e Amor”. Da mesma forma, as diversas facetas da juventude – objetivo mais acabado do filme – retratadas em Caveira, my friend demonstram uma amarga visão de sentimento de vazio e ausência de causas para lutar e perspectivas de futuro já apontadas em Meteorango Kid. De qualquer forma a mensagem de Guimarães não pôde ser passada para a juventude daquela época. Ao saber que o filme fora proibido de ser veiculado pela censura, o diretor baiano, ao seu estilo, fez um ato/performance de protesto em uma praça do Rio de Janeiro que incluiu a queima dos negativos do filme. Todavia, mais de vinte anos foram encontradas uma cópia que foi restaurada e o filme finalmente exibido.

3.3. Saindo das margens: cultura negra e cinema em O Anjo Negro I O “Surto” se fecha com o primeiro longa-metragem realizado em 1972 por José Umberto, O anjo negro. O filme narra a história de uma família tradicional baiana em processo de decadência, protagonizada por um casal, formado por um empresário que também atua como árbitro de futebol e por uma médica traumatizada por problemas de saúde e amargurada com as escolhas dos sobrinhos – um jovem “hippie” que deixa os estudos para viver sem regras e uma moça que é expulsa do convento após realizar um aborto. Em meio a esses dilemas, introduz-se no ambiente familiar a figura do negro Calunga – interpretado por Mário Gusmão –, um homem 92

que após ser atropelado pelo árbitro e acolhido na casa deste, transforma o cotidiano daquelas pessoas com o seu espírito libertino e subversivo. Abordando o lugar da cultura afro-descendente frente à tradicional sociedade baiana, O anjo negro antecipou o paulatino processo de afirmação dessa mesma cultura na ordem cultural do Estado que se concretizaria nos anos seguintes. Em matéria publicada no Jornal da Bahia, José Umberto objetiva querer mostrar, de um lado, a cultura do preto com sua anarquia, sua liberdade, seu colorido, sua magia e de outro a sociedade branca brasileira, especialmente a nordestina. O preto vem desencadear a desordem, o caos e revela a falsa harmonia numa família patriarcal do Nordeste (Jornal da Bahia, 28 e 29 de janeiro de 1973, p. 03). Essa dicotomia percorrerá toda a narrativa do filme e fará com que a cultura negra, assimilada como contracultura, seja o símbolo de uma contraposição, lúdica e fincada nas raízes brasileiras à cultura hegemônica. Nesse sentido, a juventude sem rumo, sem futuro e em busca de uma identidade de Meteorango Kid e Caveira, my friend, descobre em O Anjo Negro, pelo caminho da cultura popular de base africana, discriminada, excluída e menosprezada, novas expressões identitárias e desta forma novas possibilidades de expressão. O início de “O Anjo Negro” é marcado pela apresentação do personagem central e toda a sua simbologia. Sobre o sol poente caminha um bode preto em cima dos telhados de casarões antigos. Enquanto se ouve o badalar do seu sino, o bode caminha na areia da praia. Diante do animal, vemos um despacho com velas acesas, charuto, cachaça, farofa de azeite de dendê, dinheiro, etc. O bode se aproxima e começa a comer a oferenda, logo em seguida começa a passar mal. Os atabaques soam forte enquanto jorra o sangue. O bode agoniza e em poucos minutos morre. Uma voz em off canta: “Este bode, oh! Lunga lê amarra na mangueira, oh! Lunga lá. Prá tirar o couro, oh! Lunga, lê e fazer pandeiro, oh! Lunga lá”. Panorâmica em uma praia, em plano aberto onde passa um homem negro trajado com uma indumentária típica da cultura afro, montado num enorme cavalo branco. A imagem está quase em silhueta enquanto os atabaques prosseguem com mais força. A apresentação do personagem Calunga é cercada de todos os elementos que permearão o filme: a imponência da religiosidade na forma do candomblé, a presença da música e a dominância do povo negro em todos os cantos da cidade. Outro elemento que o começo do filme traz e que ocupa o mesmo contexto místico/religioso do filme é o da celebração que envolve todas as pessoas independentemente de classe social. No caso, a festa de Iemanjá. Cenas de documentários sobre a festa do Rio Vermelho mostram o povo se aglomerando na praia com grande e euforia. O mar está agitado e os barcos atracados para receberem os presentes para serem levados para a Rainha do Mar. Nesse cenário, uma mulher branca, Júlia, se aproxima com seu carro de luxo. Ela se dirige para o meio da 93

multidão para entregar sua oferenda a Iemanjá. Ela entrega seu presente a Calunga que traja terno, sapato e chapéu tipo Panamá branco e um imenso charuto. Ele toma o presente e rasga uma carta que ele vê na oferenda, dizendo: “a gente não ‘arreia’ presente amarrado, Madame.” Ele, então, esclarece a ela com ar debochado: “Madame, vamos arriar todos os seus presentes no mar, mas o bilhete não. A Rainha não atende a esses pedidos. Nada de encrenca entre marido e mulher.” Em um travelling, sob o som dos atabaques, Júlia foge desesperada em meio a multidão até chegar ao seu carro, enquanto Calunga continua depositando as oferendas que recebe.

A crise conjugal entre Júlia e seu marido Hércules é evidenciada no transcorrer do filme. Depois de tentar a interferência do candomblé, ela vai até uma igreja católica. A cena é filmada em um templo barroco, onde são destacadas as imagens sacras. Em um determinado momento, Júlia vai até uma imagem de Jesus morto e o beija. Essa seqüência evidencia que o misticismo e o sincretismo religioso também faziam parte dos costumes das elites brancas da cidade. É importante apontar que esse jogo entre etnicidade, classe e religião apresentado pelo filme aponta para uma discussão pouco vista no cinema baiano que é o da formação de identidade como um processo histórico e político. Segundo Edward Said, assim como os seres humanos fazem sua própria história, eles também fazem suas culturas e identidades étnicas. Por sua vez, Stuart Hall constata que a identidade é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes. Para o pensador jamaicano, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia, pois as conceptualizações do sujeito mudam e, portanto, têm uma história. “O anjo negro” afirma essa identidade aparentemente não assumida, apesar de reconhecê-la como diferenciada, múltipla, contraditória, em movimento. Saem os esquemas estáticos e uma visão idílica e pouco generosa com a cultura negra vistas tanto em filmes como “Barravento” e “A grande feira” – e mesmo nos relatos sobre Akpalô – ou mesmo o completo apagamento em Meteorango Kid e Caveira, my friend, e entram em cena uma abordagem mais perto da realidade cultural de Salvador, exposta no conflito de classe apesar do ainda ponto vista da classe média. A crise entre Júlia e Hércules é ainda potencializada pela atividade de árbitro de futebol que este último exerce. Ela quer que ele abandone essa profissão que para ela expõe e compromete a paz da família. Hércules resiste, porém em uma sequência em que apita o clássico Bahia X Vitória, ele é xingado e perseguido pelos torcedores. Júlia vai até o seu encontro no vestiário da estádio e os dois fogem desesperados. Em um Travelling, o casal é visto através do parabrisa, calado, taciturno. Ambos estão com pensamentos distantes. Júlia começa a falar para o companheiro como se estivesse falando para si mesma: 94

“tudo isso me fez lembrar um fato que ocorreu comigo no hospital. Tinha que operar uma moça bonita, delicada, olhos azuis, o parto estava horrível, a hemorragia era incontrolável. Eu me lembro bem que fiz tudo que eu pude para salvá’la. Mas tudo em vão. O marido já idoso não se conformou. Quase me mata enforcada no corredor..se não fossem os enfermeiros... Passaram muitos anos, mas de vez em quando eu sonho com os seus olhos azuis como se estivessem pedindo alguma coisa.” No meio do seu monólogo aparece a imagem do negro sobre o cavalo branco, correndo contra a praia, o mar e o sol. O carro continua em velocidade pela rodovia, sem movimento, com os coqueiros e o mar que sacode as suas ondaseternamente. No meio da pista passa um cavalo selvagem, todo branco. A câmera faz uma panorâmica, acompanhando seus movimentos. Vai ficando atrás do carro. Júlia tenta tranquilizar o marido: “Não se preocupe Hércules. Nós ainda vamos ter paz.” E Hécules responde: “ Estou sentindo cansaço. Preciso de um pouco de sossego, de tranquilidade.” Nesse momento, Júlia dá um grito. Ouve-se o relincho de um cavalo, e em seguida um som de pancada. Em contra-plongée é visto o corpo de um homem negro estirado no meio do asfalto e, no fundo, o carro do juiz. Este desce do carro ee se aproxima. Atabaques e cântigos do candomblé são ouvidos. Câmera em movimento o juiz se abaixa e pega nos braços o homem desfalecido, Calunga, que se encontra de roupão vermelho e branco, brinco na orelha e de pés descalços.O juiz carrega o corpo, anda um pouco pelo coqueiral e se dirige ao carro. Coloca-o perto de Júlia que está com imensos óculos escuro. Hércules sugere levar o homem para o prontosocorro, mas Júlia discorda e alisando o rosto do homem desacordado diz: “levemos pra a casa! Eu mesma cuidarei dele. Close-up em Calunga que abre um olho espantado e torna a fechar tranqüilo. Ele é introduzido então no seio daquela família em crise. Os assuntos da vida privada de uma família branca de classe média são então mediados pela presença de Calunga como uma alegoria sobre a inevitabilidade do reconhecimento da presença do negro na sociedade baiana. O interesse de Júlia por Calunga, mas do que representar uma atração física entre uma mulher e um homem, indica a atração classe média pela cultura negra muito mais motivada pela onipresença do negro e seus simbolismos no cotidiano da sociedade do que pela superação de estigmas e preconceitos. A ausência de visibilidade do negro na classe média é são perceptível quando Júlia e Hércules procuram por um homem negro na mansão. O casal é surpreendido pelo sumiço de Calunga que estava se recuperando em um dos quartos. Júlia está impaciente, pega a sineta e toca nervosa chamando os outros moradores da casa. Surgem Índio, Luanda, Irene e o velho Getúlio e ela pergunta: “vocês viram alguém por dentro da casa?.. Um negro...alto...forte...” A câmera focaliza os rostos constragidos dos presentes,detendo-se no velho Getúlio que responde: “De preto 95

aqui só conheço o passarinho, mas já fugiu.” A ex-freira Irene também afirma: “Eu conheci um, mas foi lá fora.” A surpresa dos mais jovens de encontrar um negro dentro dos limites do lar e a ironia sob a forma de desprezo do patriarca Getúlio revelam também os papéis marcados e a distância social entre negros e brancos. O filme então aproxima a insistênciaum certo conflito geracional que ficará mais evidente com a presença do sobrinho hippie de Hércules. Assim, nesta mesma sequência a campanhia toca e surge Carlinhos na sua moto adentrando com o veículo na sala da mansão. Hércules chateado pergunta ao jovem sobre seus estudos, e este último responde: “Estudos? Só me interessa agora este sol tropical. Este azul... e o resto é silêncio... a arquitetura perdeu sentido para mim. Busco coisas novas. Coisas que me interessam agora, neste instante. Não encontrei ainda o que seja, mas estou procurando. Pesquisando, tudo se tornou inútil. Está tudo vazio.” Hércules, irritado, retruca: “não entendo essa juventude. Não entendo. A minha construiu alguma coisa, tinha um ideal. Hoje eu chego à conclusão de que vocês só se preocupam em se olhar no espelho para ver se os cabelos e a barbinha estão no lugar.” Essa mesma abordagem sobre a diferença de visão de mundo entre os jovens ligados de alguma forma à contracultura e a geração mais velha é encontrada também tanto em Meteorango Kid quanto em Caveira, my friend. Prosseguindo a sequência, mais uma vez toca a campanhia, a câmera então acompanha o mordomo indígena, que, exitante, vai em direção à porta, porém antes de abri-la surge Calunga tocando berimbau fazendo gestos de capoeirista. Hércules então comunica à família e aos empregados: “Este cavalheiro é nosso hóspede, também.” Calunga saúda a todos até chegar no velho Getúlio que diz: “Nego, não pego em suas mãos para não me sujar de tinta. Mas toca essa cabacinha aí que é pra eu ouvir.” Com ar debochado Calunga responde, “pois não meu amo.” Ele continua a tocar o berimbau e a dançar e prossegue “Este aqui é o som das alegrias e das tristezas dos neguinhos. E os brancos também são vidrados nele, meu amo.” Carlinhos, o sobrinho hippie, então pede a Calunga: “Ensina-me este gingado, camarada.” Nessa sequência ficam evidenciadas as diferentes visões da Bahia colonial e escravagista representada pela fala do velho Getúlio que percebe a cultura negra como exótica e à disposição para o deleite do branco e a de Carlinhos que representa a contracultura que assimila a cultura e o pensamento de setores excluídos, apesar do distanciamento de classe. A presença de Calunga vai subverter, aos moldes da contracultura, essa relação de preconceito, exclusão e distanciamento que a classe média tem com a cultura negra. Tabus são quebrados e a hipocrisia reinante na mansão é escancarada.

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A seqüência a seguir traz o clímax dessa relação reinvidicada pelo filme que é o da cultura negra como contracultura, ou seja, aquela que veio por em xeque a cultura branca e de classe média da tradicional sociedade baiana. Em uma noite de Natal, todos se dirigem para a confraternização. Nas pontas estão Júlia e Hérculas. Na mesa há frutas diversas e comidas típicas da Bahia como vatapá, caruru etc. Calunga, então, pega um enorme charuto, começa a fumar e pergunta por Getúlio. Júlia responde que o velho tem dias que não come. Em um rápido travelling, adentra na sala Getúlio todo de branco, alegre e brincando com a árvore de Natal. Calunga, então, solta uma baforada do seu charuto, e pergunta: “parou a greve de fome, meu amo?” Após sentar-se, Getúlio que começa a tomar sua posição na mesa. Getúlio, então diz, “hoje é dia em que preto bebe do mesmo vinho de branco”. Depois de um certo silêncio, Hércules propõe a todos que comecem a rezar. Calunga então vira ao contrário o quadro do Coração de Jesus, enquanto dá uma baforada com o seu charuto e diz: “Vamos brindar ao nosso encontro”. Nesse momento Carlinhos pede o vinho e Calunga responde indignado: “Eu prefiro cachaça.” Hércules, revoltado, então desabafa: “Eu exijo respeito em minha casa. Os incomodados podem se retirar que a saída é franca.” Calunga ironicamente responde: “Mais aqui está muito frio. É bom esquentar.” Nesse momento, Getúlio provoca: “Pelo jeito o neguinho tem sabedoria. Então deixemos ele mostrar. O circo é sempre bom pra nos divertir.” Calunga, então, dá um grito: “Silêncio!” Tocam-se os atabaques, seu rosto se modifica como se um “espírito” tomasse seu corpo. Há um plano fechado em Calunga que se treme todo e atira o rosto no vaso de vatapá e passa a melar o seu corpo com os alimentos ao redor. Ele grita algumas palavras em yorubá. A câmera então efetua um travelling e mostra os presentes paralisados e com certo medo. Surgem da porta Luanda e Índio, ambos nus. Ela está com uma tocha de fogo na cabeça; ele traz um garrafão de vinho. Após Hércules repreender Calunga devido ao seu comportamento, Calunga calmamente responde: “não se afobe, Patrão. Não é chegada a hora. Tenha calma! Tome primeiro do vinho. Hércules tenta se levantar, mas é surpreendido por Calunga que leva o cálice até sua boca, que não aceita. Este último insiste e força Hércules a tomar o vinho, derramando a bebida em seu rosto. O árbitro toma o cálice e resolve beber, assim como todos os presentes. Um plano fechado em Calunga que diz: “a noite foi feita para dançar.” E então o personagem interpretado por Mário Gusmão puxa a toalha da mesa, derrubando pratos, talheres e a comida no chão. Câmera na mão tomando Calunga que em seguida sobe na mesa e começa a dar alguns passos de capoeira e a dançar.

O conflito entre

a cultura branca dominante e a cultura negra alegoricamente se

estabelece. A mise-en-scène estabelecida é o do Cinema Marginal, com muito desbunde, secreções, sujeira para representar a catarse desse momento de embate. Calunga se impõe com

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altivez não apenas através da música, da dança e da religião, mas pelo temperamento forte, malícia e irreverência. As alegorias de “O Anjo Negro” representam o processo de afirmação da cultura afrobaiana no período e demonstram a inevitável presença de uma identidade, mesmo que negada pelos setores dominantes, negra nas esferas sociais e culturais da Bahia. No decorrer do filme a atração de Júlia por Calunga acaba se consumando para no final o fruto desse encontro, um bebê mulato, causar a destruição final desse núcleo familiar.

II

Para se ter uma visão mais ampla do filme de Dias é importante em primeiro lugar abordar alguns aspectos da representação do negro no cinema baiano em dois filmes do Ciclo Baiano. Em “A grande feira” de Roberto Pires, Chico Diabo é um tipo marginal que tenta incendiar a Feira de Água de Meninos explodindo um depósito de gasolina. Enquanto que o personagem Firmino depois de de Barravento, de Glauber Rocha, entra em choque com os moradores de sua comunidade de pescadores, pois considera que eles pararam no tempo e tornaram-se alienados pela religião e o misticismo. O Anjo Negro , obra que, diferentemente das anteriores, eleva a cultura negra ao patamar de força dominante da cultura baiana, retratando-a como força mítica que subjulga a tradição das relações escravagistas da Bahia. O filme estabelece uma alegoria na qual a negritude é uma potência capaz de romper os frágeis laços de uma família tradicional de classe média. De um lado o mundo preto, anárquico, liberal, mágico e de outro, a falsa harmonia da sociedade branca baiana. O filme traça um perfil de alguns dos principais elementos da cultura baiana no início da década de 1970: o conflito de gerações, o carnaval, o futebol, as festas populares, o candomblé, etc; tudo isso banhado por “uma perspectiva surreal, que era uma combinação de ‘realismo mágico’ com a ‘loucura’ vigente na juventude e nos novos cineastas”. O que de fato era uma forte característica nos filmes realizados na época. Calunga não deixa dúvidas a respeito da importância de se doar a um papel, e principalmente, as repercussões que esta atitude pode gerar ao longo do tempo, em relação à consolidação e repercussão da obra. Mário Gusmão, negro, de família pobre, nascido no interior da Bahia, na cidade de Cachoeira, consegue deixar o anonimato e influenciar o meio artístico, contribuindo para a difusão e quebra de preconceitos sobre a cultura negra.

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O filme narra a história de uma família tradicional que está se desintegrando devido a conflitos internos. Getúlio é o avô que representa o espírito conservador e o lado racista da sociedade baiana doente que tenta se impor enquanto o mais velho da família. Hércules é um árbitro de futebol casado com a médica Júlia. Os dois mantêm uma relação conflituosa e pouco amorosa. O casal vive com um sobrinho que abandonou os estudos e uma sobrinha que foi expulsa do convento por ter engravidado e abortado. Na casa, há ainda dois empregados: Índio e Luanda. A formação étnica da casa “completa-se” com a chegada de Calunga, que após ser atropelado por Hércules e Júlia, é levado por acidente para a mansão da família. Mostra também a cultura popular, suas festas como a de Iemanjá onde são vistos diversos elementos da cultura afro-baiana: baianas, flores, preto-velho, pescadores. Nesse sentido, símbolos da cultura negra a cada momento são evocados no filme. Quando Hércules acorda depois da tal noite conturbada, ele coloca para tocar uma música negra e lê no jornal: procura-se assassino negro. Carol, a amante de Hércules, diz emblematicamente: “há uma luz do sol negro atraindo a gente para o terreiro dos orixás.” O bode preto – Exu para a tradição do Candomblé marca o início e o fim do filme. O bode precede a aparição de Calunga, dando a entender que ele próprio pode ser também a personificação de Exu. E, de fato, Calunga possui fortes características atribuídas ao orixá africano: provocador, indecente, astucioso e sensual, satisfaz-se em provocar disputas e calamidades àquelas pessoas que estão em falta com ele. No entanto, como tudo no universo, possui os dois lados: o positivo e o negativo. O próprio nome Calunga é carregado de significados. Ele é o mediador e justiceiro criado por Nzàmbì - o deus supremo da natureza - para reger o fruto de sua criação. Kalunga significa o oceano e a morte. Esta entidade possui conhecimentos do passado e do futuro de toda a humanidade, os direitos e deveres de cada ser humano, suas origens, as de sua família, assim como seu destino: ele é o administrador da morte. O filme tem o mar como elemento muito presente. O mar é a metáfora do mistério, onde os segredos estão escondidos, invisíveis para os que não conseguem ou os que sufocam ao mergulhar. E nesse sentido, o mar não poderia deixar de estar fortemente presente. É na praia que Calunga pela primeira vez aparece no filme, montado em um cavalo branco e usando uma manta colorida, da mesma forma é na praia onde o filme termina. O mar aparece ainda na festa de Iemanjá. A amante de Hércules é morta na beira da praia e é levada para uma canoa. Um aspecto crucial de “O Anjo Negro” é como o filme representa a cultura negra enquanto força transformadora e questionadora da cultura hegemônica. Enquanto Barravento de Glauber Rocha trata da questão do candomblé como alienação da comunidade de pescadores, não o considerando em sua dimensão histórica e cultural, o filme de José Umberto apresenta 99

justamente uma perspectiva oposta, a preservação das religiões afro-brasileiras como sendo capazes de desempenhar uma função significativa para o povo negro. Essa função é a de demonstrar que a tradição do pensamento ocidental, hierarquizante e excludente, não dá conta das relações sociais e culturais, especialmente em uma cidade como Salvador de maioria negra. Para tanto, os elementos, os rituais, o comportamento de Calunga e sua própria presença no seio de uma família de classe média branca, funciona no filme como contracultura - a postura irreverente, avacalhada e irônica de Calunga reforça essa intenção da dramartugia fílmica. Calunga desconsidera as barreiras existentes e impõe o mundo negro entre os brancos, utilizando-se do avacalho e do desbunde. Em nenhum momento ele pensa em reconhecimento, pois entende que isso só se daria com uma “máscara branca”. O seu intuito é afirmar a sua identidade cultural, de forma radical, abandonando qualquer postura passiva, deixando em evidência o seu protagonismo. Nesse sentido, o filme de José Umberto Dias resgatará um diálogo mais efetivo com a cultura popular, vista aqui como uma fonte eminente de transformação e questionamento do status quo. Diferentemente de Meteorango Kid que mantém um distanciamento de classe e um certo preconceito velado

pelo sarcasmo – a cena de Lula

realizando fotos para uma reportagem em uma vila de pescadores, todos negros, parodia Barravento com um tom de desprezo e mesmo discriminatório – e de Caveira, my Friend que nem toa no assunto, o Anjo Negro trará o tema do negro para o centro da questão historicizando de forma alegórica as relações daquela conjuntura. Interessante observar, por fim, que o momento histórico-econômico local é o do desenvolvimento da indústria turística, que teve como projeto tentar “domesticar” e incorporar as manifestações afro-brasileiras ao princípio da “baianidade”. O carnaval, a música, o teatro, as artes plásticas acabaram se consolidando neste projeto que culminou em outro momento relevante na cultura baiana na década de 1980. Todavia o cinema ficou para trás e foi preciso um filme, O Superoutro, dirigido em 1989 por um dos diretores baianos mais influenciados por aquela geração contracultural, Edgard Navarro, para lembrar

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta dissertação analisou aspectos da contracultura na Bahia através de um momento de produção de filmes realizados na Bahia entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970 e investigou como essa contracultura foi assimilada através do contexto cultural e dos filmes de longa-metragem de ficção. Essas películas são associadas ao Cinema Marginal, movimento no âmbito do cinema que absorveu grande parte do ideário contracultural, bem como resgatou concepções iniciais do Cinema Novo, como a “política de autor” e

a ”Estética da Fome”

transformada em “A Estética do Lixo”, ou seja, filmes nos quais os diretores tinham pleno domínio de suas obras sendo que estas se caracterizam pela incorporação estética das condições precárias das produções. O Cinema Marginal, no cinema, a Tropicália, na música, e o Tropicalismo no teatro e nas artes plásticas foram fenômenos culturais que assimilaram a contracultura, incorporando-a a questões do plano local como a condição do Brasil enquanto país do terceiro mundo, subdesenvolvido e subalternizado, as lutas e protestos contra o estado de exceção que suprimiram direitos e liberdades individuais e coletivas, bem como o crescimento da indústria cultural no país que estabeleceu novos padrões de consumo no campo da cultura. No caso do Cinema Marginal, além desses elementos presentes em suas temáticas, há a própria subversão no âmbito estético a partir de uma linguagem que recusava os padrões da narrativa clássica, bem como modelos que supostamente facilitassem a comunicação com o público. Nesse sentido, pode-se falar em uma contracultura à brasileira, pois um contingente de jovens estabeleceu uma agenda política e cultural que deglutiu as demandas do movimento vindas de fora do país, como no âmbito comportamental - a liberdade sexual, o uso aberto de drogas etc. - e principalmente um olhar enviesado para a tradição do pensamento ocidental, especialmente no que concerne à quebra de padrões hierárquicos no campo da cultura, ao tempo em que colocou em “xeque” uma tradição do pensamento da esquerda brasileira, hegemônica nos meios intelectuais, demonstrando que estes não davam conta da realidade do país, bem como, os de via autoritária que passou a comandar o país depois do Golpe Militar de 1964. A contracultura na Bahia trouxe à tona uma geração de jovens artistas de diversas áreas estabelecendo novos padrões de comportamento para a juventude local. Percebe-se que no período houve inovações no âmbito da linguagem, da sexualidade e dos costumes que expuseram uma sociedade baiana conservadora e arredia a transformações. Nesse sentido, grande parte das produções do campo da arte ficou à margem dos financiamentos oficiais, sendo que o teatro foi o setor em que mais produziu espetáculos. Diretores como Deolindo Checcucci, Álvaro Guimarães 101

e Orlando Senna dirigiram e produziram diversas peças e ainda se enveredaram pelo cinema. Grupos como os “Novos Baianos” surgiram na esteira da Tropicália e do universo hippie sempre incorporando elementos e ritmos da cultura brasileira. Grupos como o Etsedron, uniram artes plásticas ao teatro e percorreram todo o estado em performances ousadas para a época. E no cinema, uma geração de jovens iniciou um curto mais instigante momento de produção, mesmo sem quase nenhum aparato financeiro. Começando com filmes de curta-metragem, esses cineastas que na época estavam na faixa entre 18 e 21 anos, grande parte imersa no clima contracultural da época, estabeleceu uma forma despojada e irreverente de fazer cinema sem perder seus laços com a geração anterior que fomentou o Ciclo Baiano no início da década de 1960. Um dos responsáveis por essa ponte foi Orlando Senna que proferiu cursos, produziu e atuou em “Caveira my friend” e dirigiu “69: a construção da morte” filme perdido, como Akpalô de Deolindo Checcucci e José Frazão, que acabou sendo vítima do clima de terror dos anos de chumbo da ditadura militar. Esse momento da cultura no estado é caracterizado por uma grande produção à margem dos financiamentos oficiais, o sistema de produção coletiva e de contribuições individuais estabeleceu um círculo de jovens artistas e intelectuais que podiam ser encontrados em diversas áreas, inclusive na imprensa escrita, como comprova os artigos publicados no jornal alternativo “Verbo Encantado”. Na, música o rock, o mambo, o samba eram assimilados na mesma medida e no plano geral e podia-se constatar que as distinções e as hierarquizações entre as ditas culturas de massa, popular e alta começavam a cair. Por outro lado, mesmo que a maioria desses artistas não tivesse vínculos com ideologias de esquerda nem empreendesse discursos contra a situação política do país, muitas peças e filmes foram censurados e proibidos o que demonstra que aqueles jovens incomodavam ao combater o terror à sua maneira, ou seja, com as armas do deboche, da ironia e da irreverência. Nesse sentido, os três filmes de longa-metragem de ficção produzidos na Bahia entre 1969 e 1972 que resistiram à censura e ao tempo desvelam todo aquele momento que foi a contracultura – assimilada de modo a poder-se atribuir àquele momento um pouco do que entendemos hoje como “baianidade”. Nesses filmes encontramos os estereótipos da preguiça e da vontade ser “estrela” de Lula; o jeito irascível de “tirar onda” de Caveira e a sensualidade e a sabedoria em forma de malandragem de “Calunga”. Ao mesmo tempo percebe-se uma primazia do desejo e das vontades pessoais, aliadas ao processo de descoberta de identidade e identificações mesmo que esses filmes tenham sido realizados por ocupantes de lugares marcados, ou seja, agentes da classe média branca que em pelo menos dois dos filmes – Meteorango Kid e Caveira, myfriend – centrou-se em revelar os seus próprios ambientes e dilemas. O caso de “O 102

Anjo Negro” é revelador no sentido de que a distância mantida da cultura da maioria da população negra não poderia ser mantida por muito tempo. Desta forma e de modo metafórico o filme de José Umberto Dias promove uma desconstrução, uma vez que a lógica de descriminação e exclusão do negro vigente na sociedade baiana é colocada em “xeque” pela cultura de origem africana que nesse sentido, no filme, funciona como contracultura. Os três filmes também contribuem para a preservação da memória da cidade de Salvador. As tomadas externas apresentam uma cidade em processo de modernização com as ruas movimentadas e trânsito intenso. Ao mesmo tempo os casarões, as ruas estreitas e ladeiras podem ser vistos nos três filmes como cenários que complementam as suas narrativas, não ocupando papel central, nem passando despercebidos. Nesse sentido, os pontos turísticos da cidade aparecem sem glamour, como o Farol da Barra em “Caveira my friend” ou as dunas do Abaeté no mesmo filme. A orla, um dos símbolos da cidade, aparece em poucos momentos dos filmes dos dois primeiros filmes. Em Meteorango Kid, logo no começo na cena de crucificação, onde apenas se ver os coqueiros. Mais tarde, no mesmo filme, Lula irá a uma vila de pescadores ajudar uma amiga a realizar uma reportagem sobre o aparecimento de discos voadores. Em Caveira my friend, não há sequências na praia. Todavia, em “O anjo negro”, a praia e o mar têm papel de destaque na trama, pois aparece associada aos rituais religiosos e á simbologia que permeia o enredo do longa. Dos três filmes, apenas em “O anjo negro” têm-se contato mais agudo com a população da cidade nas cenas de festas populares, com destaque à Festa de Iemanjá. Nos outros dois filmes têm-se alguma noção da população que transitava pelo Centro da cidade, podendo-se constatar modo de se vestir, transportes públicos e automóveis da época. Assim, mesmo sem posicionar Salvador no centro de suas narrativas, como fizeram alguns filmes do Ciclo Baiano de Cinema, muitos elementos históricos e culturais da cidade podem ser destacados em diversas sequências. A história do cinema da Bahia é marcada pela dificuldade de produzir, distribuir e exibir seus filmes. A obviedade da constatação talvez se torne secundária quando observamos que se produz e são exibidos filmes neste Estado desde o final do século XIX e mesmo com uma história centenária fazer filmes ficou restrito a momentos ou “surtos”. Mesmo com uma precária tradição cinematográfica, diretores como Glauber Rocha, Roberto Pires e mais recentemente Edgard Navarro e Sérgio Machado conseguiram que suas obras fossem reconhecidas muitas delas inclusive rompendo as fronteiras da exibição como o caso do último e outros se tornando referência para além das fronteiras do país como no caso do primeiro. Pires foi o pioneiro na realização do primeiro filme de longa-metragem de ficção quase 60 anos depois de inaugurado o cinema baiano. Navarro precisou de mais de três décadas para produzir o seu primeiro filme de 103

longa-metragem. Sérgio Machado e Glauber Rocha aproveitaram bons momentos devido a diversos fatores conjunturais que favoreceram o financiamento de produções para empreender seus projetos. Desses citados Rocha tornou-se um capítulo a parte. O cineasta conquistense paira em toda a cinematografia brasileira e baiana desde o início da década de 1960. Mesmo quando criticado - como na cena que os amigos Lula, Caveira e Zé estão no bar e zombam de um atarantado conhecido que anuncia que vai fazer cinema com Glauber – permanece como elemento norteador e de identidade, além de símbolo de qualidade e reconhecimento. O diretor de Terra em Transe contribuiu para transformar – mesmo que por um pequeno período - uma combalida e pouco ativa produção cinematográfica em “Meca” do cinema de qualidade, e autoral, um dos berços do Cinema Novo e uma das principais fontes de inspiração e ideias para a renovação da filmografia nacional, sendo ele mesmo uma das principais forças criativas. Todavia, Rocha se tornou o objeto a ser alcançado e seu espectro muitas vezes recalcou o surgimento ou desenvolvimento de diversos cineastas. Talvez a sombra de Glauber tenha dissipado um pouco com o advento da contracultura e do Cinema Marginal. Mesmo tendo que conviver com os seus fantasmas, os jovens cineastas baianos procuraram novos caminhos inspirados por um momento de transformação no plano da cultura e se esmeraram em estratégias criativas diante das dificuldades causadas pela repressão política e pelo cerceamento da liberdade de expressão. Por outro lado, Glauber precisava ser parodiado, como em “Meteorango Kid”, revisto como em “Caveira, my friend” ou reassimilado como em “O anjo negro”. Tendo a sua disposição uma infraestrutura precária para a produção de filmes e sob a sombra de um “gênio”, os herdeiros da “Nova Onda Baiana” encontraram o cinema da Bahia à margem da produção cultural do Estado. Os jovens cineastas, entusiasmados com as transformações culturais em voga no mundo, entendiam que era preciso retomar a arte cinematográfica no estado e fizeram com a ajuda dos amigos e da família, constituindo-se aquele surto então em produções quase artesanais, mas que contribuíram para moldar certo jeito baiano de fazer cinema.

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