Mercurius Afonso Jr. Ferreira de Lima. Mercurius. Afonso Jr. Ferreira de Lima. Primeira Parte

December 15, 2017 | Author: Márcia Vilalobos Mirandela | Category: N/A
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1 12 Mercurius Afonso Jr. Ferreira de Lima Mercurius de Afonso Jr. Ferreira de Lima Primeira Parte Pobre diabo, que h&aa...

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1

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima

Mercurius de

Afonso Jr. Ferreira de Lima

Primeira Parte

Pobre diabo, que hás-de tu dar-me? (...) Tens iguarias que não matam a fome; oiro que fulge, mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos (...) O que eu preciso, se o tens, são frutos a pender de copa sempre frondosa, e que antes de apanhados não tenham já por dentro o podre e os vermes. Goethe, Fausto.

2

Pensei: “Adormeço”... Agora eu estava em um trem, tentando fugir para a fazenda do meu avô, no sul, de alguma coisa que nem eu sabia o que era. Como se todo o mundo fosse escuro,

sombrio,

silencioso

e

estivesse

envolvido nas sombras da noite. A paisagem, um cinza frio que transformava árvores secas, pedras pontiagudas e pássaros solitários em uma grande ruína abandonada.

Nuvens

pesadas pareciam prestes a atacar com raio e tempestade. O que eu vira? Estava atacando uma mulher?

Haveria

mesmo

seres

que

se

alimentavam de sangue? Eu lia desde criança histórias

sobre

cadáveres

descobertos

intactos em suas tumbas, terra revirada sobre os túmulos, caixões encontrados abertos, unhas e cabelos que crescem depois da morte, corpos com sangue na boca e famílias que morreram logo após a partida de um ente

3

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima querido.

Meus

desenhos

estranhos

assustaram professoras sucessivas. Não ajudava a humilhação diária que sofria, “sabetudo”, “filhinho-de papai”, “bicha”, “rato-de-biblioteca”, porque, além de calado, não gostava do futebol. “É rico, mas não tem mãe” - uma garota falou uma vez. Sorte ter um amigo, Jonas – bem inteligente. Eu sempre tive uma imaginação indomável, mas dizia agora a mim mesmo: “há um limite”. Minha psicóloga achava que eu era ao mesmo tempo adulto demais e fugia para a fantasia para evitar as dores da realidade. Que realidade? Lorde Kevin, o grande industrial amigo de meu pai, era para mim uma figura assustadora: desde criança eu imaginava vêlo ao lado de minha cama, na minha janela ou pousado na árvore à frente de meu quarto, em uma espécie de realidade paralela na qual eu tentava me mover e não podia.

4

Quando criança, eu sonhara muitas vezes com esse homem loiro, alto, de cabelos pelo

ombro:

em

um

desses

sonhos

horripilantes, estávamos em uma floresta escura,

cercados

de

outros

homens

macabros. Os delírios que a cruel fada dos sonhos nos impõe! Eu parecia ver na sombra monstros de face azulada e presas, alguns pálidos, com garras, uma mulher de olhos felinos com uma pele de tigre. Prisioneiros eram torturados. Um deles, que parecia um policial, tinha ao redor do seu pescoço espectros com rosto animal que lhe mordiam. Outro, um homem de tez morena, talvez árabe, foi mordido por um cão na perna, chutado por um jovem, enquanto outro batia nele com um bastão. Lorde Kevin atirou-o em uma fogueira. Agora, tinha medo de voltar a este estado de sono consciente, onde seria presa fácil, como uma vela inconstante, um livro não bem aberto, igreja em ruínas, observando o 5

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima mar do sono, lógicas insólitas, como se o real fosse um véu do olhar. Eu

fora

sempre

uma

espécie

de

prisioneiro na mansão sombria de meu pai. Sentia-me solitário e sentia o mundo mais e mais assustador. Parecia que, de alguma forma, um manto de violência cobrira todas as almas, que só podiam se comunicar através da agressividade. O terror – visível e invisível era

muito

concreto.

Metrôs

explodiam,

escritórios ruíam, tempestades e neve criadas pela poluição, as águas levavam multidões de encostas

frágeis,

políticos

ambiciosos

deixavam morrer podre a coisa pública, o Estado parecia impotente frente à proliferação de assaltantes e criminosos de colarinho branco. Além disso, minha vida tinha virado de ponta-cabeça recentemente. Desde a morte de meu avô. Foi quando eu abrira o baú. Havia alguns documentos, pergaminhos, cartas e 6

textos – além do medalhão que eu levava comigo - que pareciam ter sido escritos à mão por ele com uma grande pena de pássaro. Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos.

Meu

pai

nunca

quis

casar-se

novamente. Tornou-se um homem triste, voltado aos negócios. Mas era carinhoso comigo, apesar de achar que eu deveria ganhar dinheiro, conquistar reinos, “vencer”. O problema eram seus amigos sinistros. Talvez alguém diga que tudo já foi explicado. Não é o caso, mesmo em se tratando do que podemos chamar de domínio do visível. Mais: as pessoas são estranhas. Eu, por exemplo, lembro de minha mãe saindo para trabalhar e eu chorando na porta. Devia ter menos de um ano. O mundo é estranho. Lembro-me de, aos doze anos, ter entrado na sala e ver meu pai rodeado por seus três maiores amigos, dos quais nunca gostei – Lorde Kevin, Augusto Coligne, o 7

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima arrogante jornalista, e Marcos Toledo, o astuto secretário

executivo



observando

uma

espécie de coração de vidro, cheio de um líquido vermelho, sobre a mesa. Aquilo me assustou,

mas

nem

tive

coragem

de

perguntar. Eu pressentia haver algo entre esse homem macabro e minha família. Dentro do baú de meu avô havia um anel dourado com um símbolo gravado, que eu levava no dedo, agora. Mas por que meu avô teria um baú com tão estranhos textos? Um deles dizia: E sendo essas coisas corretamente

tratadas,

não

parece a partir dos fenômenos, que existe um ser incorpóreo, vivente, inteligente, onipresente, que no espaço infinito (como o espaço seria em seu sensório) vê as coisas em si mesmas intimamente, 8

e

as

percebe

totalmente, e as compreende totalmente

pela

presença

imediata delas diante de si? Um pergaminho mostrava um leão egípcio, ao lado da deusa Bastet. Ou ainda, dois leões e o sol. Outro, parecendo um impresso antigo, em latim, que descobri significar: Nós bebemos Soma: tornamonos imortais Fomos para a luz, encontramos os deuses O que pode a hostilidade fazer conosco agora? Eu não pudera entender; eu levara o material até meu amigo Jonas, um sabe-tudo. Ele

era

uma

das

vítimas dos

eventos

recentes: desaparecido, assim como meu pai. Tudo que eu precisava agora era dele, e de 9

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima minha amiga Lorena, a quem eu magoara. E, pensando nisso, lembrava da bruxa chamada Luísa. Um homem inocente também havia sido assassinado. Eu tentava apagar da minha mente o que vira na sala de jogos. Estaria sugando seu sangue? Sentia-me febril, delirante, o trem sacudia. Pensava que, com algum esforço, restituiria as leis da natureza ao mundo,

tudo

seria

explicado.

Nossa

percepção, afinal, era um amontoado de feixes de sensações, enganos, opiniões. Lembrei de meu pai e de como não confiara em mim. Desde os oito anos. Eu me tornara o pequeno louco. E me refugiara em minha vida interior. Lembrei de um dos textos, talvez escrito por meu avô. Ele dizia: A água divina é trazida pelo alado Amnaël, diz o “Isis a 10

Hórus”, séc. I. Sou o ovo da natureza, o velho dragão; os sábios criam a partir de mim o microcosmo,

diz

o

“Aurelia

occulta”. O Anthropos, o fogo que dá vida a tudo: O alquimista, assim

queria

ser

chamado,

trabalhara no vas, noites sem conta, mesmo tendo de parar para atender ao pedido de um amigo astrônomo e calcular. A antiga magia vai me ajudar a falar da atração. Quem diria que estaria na ciência como deus do mecanismo? Malditos cálculos, ninguém

sabia

Euclides?

Escritos da Arte, baús cheios. A artificial Trindade oculta a estrutura única do Templo de 11

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Salomão.

A

força

universal:

onipresença de Deus Pai; as ações vegetais na micromatéria: olhar de Cristo. Atman, purusha: como Mefistóteles era espírito, era dele que podia vir, desde a antiguidade, o homúnculo. O sol com

seus

tentáculos

de

divindade. Era um microcosmo: as paredes de pedra pareciam vivas,

havia

esqueletos

tido saíam

pesadelos, da

terra.

Dentro da redoma, viviam, tão minúsculos que quase não se via, planta, Torre, terra, lago. Espíritos. À

noite,

ouvia

as

gargalhadas dos companheiros do

mago

Wotan,

legião

de

almas, vencedores das batalhas, ou acordava com o grito de 12

Merlin, que sai das florestas depois

de

deixar

humano, além e

o

mundo

aquém da

razão. Como penetrar o todo? A natureza da matéria, o próprio Deus. A Torre começou a perder nitidez.

Sombrias

cobriram

o

vidro.

combustou-se, envenenado. dormia,

as

nuvens O

o O

verde líquido

teólogo

estrelas

não

giravam.

Vamos, vençam o atrito da terra, extraiam o logos inerente na densa massa. Por que a vida é tão frágil? Colapso. Lembrei-me de uma conversa com meu avô, nas vezes em que fora para sua fazenda, por volta dos meus 12 anos. Estávamos na biblioteca - onde eu passava algum tempo lendo

Shakespeare,

Montaigne

e

outras

fábulas - e folhava um livro onde aparecia 13

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima uma foto de Catarina de Médici e a legenda: “A rainha feiticeira”. Meu avô comentara: -

Não

acredite

no

que

vê.

Na

Renascença, pensava-se que o rei devia ser um

iniciado

nos

segredos

do

universo,

conduzindo o povo ao modo correto de viver e amar a Deus. Hoje, a ciência pensa ter esse segredo. Adoração em direção ao centro: um Deus Inflexível, um sábio-tirano, uma cultura dominante. A sabedoria existe, mas pertence aos deuses, a poucos mortais. Havia em Atenas, logo após a morte de Platão, em 347 antes

de

chamados

Cristo, Colégio

um da

grupo

de

sábios

Vigilância.

Eles

mantinham jovens ateus, supostas feiticeiras e depravados em cárcere, sob tortura, no que chamavam de Casa do Retorno à Razão. Era por coisas como estas que eu tinha um pouco de medo dele, apesar de vê-lo também como um sábio que emanava uma espécie de serenidade incompreensível. 14

A sala de jogos. Eu via a cena ainda. Viriam me buscar? Mas o que seria aquilo? Meu pai enviara um e-mail dizendo ter tido de viajar de surpresa, não dava notícia há dois dias. Eu entrava na sala, acordara no meio da noite. Vira dois vultos. A criatura não me vira, mas

é

como

se

tivéssemos

falado

mentalmente um com o outro. Eu digo criatura porque, apesar da forma

humana,

selvagem:

estava

havia

algo

debruçado

de

insano,

sobre

uma

mulher? Ele a atacava? Pareceu-me ver de relance seu rosto, um espasmo da dor. Eu já tivera várias vezes a sensação de “sair do corpo” e flashes de cenas que me mostravam algo. Eu estava exausto, sentia-me doente. Sem ter sido percebido, fugira, pegara todo o dinheiro que pudera, roupas, cartões de crédito e sumira. O trem simplesmente tremeu, como se o chão tivesse se movido. Fui envolvido por uma nuvem escura de cheiro desagradável. 15

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Olhei para fora e pareceu-me ver como que o serpentear de uma coisa escura e úmida que se movia com rapidez, e mal pude pensar o que seria isto quando o próprio teto do carro abriu-se, uma luz ofuscante tudo invadiu e vi algo que se condensava em minha direção, agarrando-me e me arrebatando. Perdi a consciência. Acordava em um lugar que parecia uma caverna, mas definitivamente estava fora do tempo. Um homem velho, nu, com o corpo coberto de símbolos e um cajado, me observava;

as

paredes

tinham

pinturas

ancestrais. - Os xamãs do mundo todo formam uma família. São os seres que voam e apreendem com os deuses. O que é a razão? Quantas razões existem? A razão é prisão? Só existe verdade ou mentira? O que fazer? Como achar o caminho?

16

- Quem é você? – consegui por fim articular. - Bebe na Água de onde flui a vida. A tribo. Reunir. A terra educa. Aceita.

O

significado está impresso no fogo. Tudo é uma coisa só: a mata fala. Tudo aqui é um sonho, a sombra só existe com o real. Eram muitos povos, da pedra, do barro, do peixe, da floresta. Palavra-flecha, ser de linguagem. Afinar o corpo de luz. O som chama os quatro elementos, Mãe Terra, Pai Sol. O vazio dentro de nós. Não somos divididos em partes e grupos que não se comunicam. Homens de prazer, de conhecimento, de espiritualidade, de riqueza. Seu corpo é energia. Agora, posso transmutar seus átomos. Você nunca mais será o mesmo. Nunca será seu. Para esse caminho, não há volta. Sinto como se tivesse caído de uma altura descomunal.

17

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - Pergunte. Eu responderei se quiser. Há muita coisa que você precisa descobrir e pouco tempo. Era ainda uma caverna, mas sentia ser o mundo como eu o conhecia. Havia várias estantes e uma lareira. Ao fundo, por detrás de uma passagem, eu via instrumentos antigos, como um laboratório. Um homem com

barbas

longas,

com

um

casaco

antiquado. - Sim, existem forças que você ainda não conhece. Quando você era mais jovem, aqueles três homens convenceram seu pai de que você era louco, vivia no mundo da fantasia. Seu pai não é mau, mas tem uma personalidade inflexível, e foi usado. Você se pergunta sobre o assassinato. Onde está o homem, como pode ter sumido da face da Terra? Vou lhe contar sobre M., um sábio que em 1617 publicou o livro Atalanta. Na época, nas cortes italianas, após apresentadas as regras do jogo, um emblema, uma pintura, um 18

poema ou uma saga eram motes para a discussão de um tema. Extrair as virtudes ocultas das coisas e vencer emanações do mal. Festas, quadros, túmulos, atraíam forças semelhantes do universo. Atalanta era uma princesa grega abandonada por seu pai na floresta e amamentada por uma ursa. Criada por caçadores, desprezava o casamento. Como era muito veloz, jurou que se casaria apenas com alguém que lhe vencesse em uma

corrida.

O

protegido

de

Afrodite,

Hipomenes, venceu-a deixando cair pelo caminho as maçãs de ouro que a deusa lhe dera. Aristóteles dizia que, no início, vapores densos criaram as pedras e os minerais, e úmidos os metais. Este história ilustrou a relação entre os invisíveis mercúrio e enxofre. Um decreto papal proibiu que se falasse em alquimia em Veneza e M. muda o nome de sua arte, publicando o tratado sob patrocínio papal. Logo em seguida, ele desaparece sem deixar vestígio. Eu sei o que está pensando. 19

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Pegue este livrinho. Dentro dele está um fio de cabelo do homem. Eu abri minha boca para perguntar algo. - Lorde Kevin tem um jornal, você sabe. Tem a ver sim com uma força política terrível, que penetra o judiciário, o parlamento e o executivo. Legislam sobre tudo, desde a educação até o trabalho nas prisões, mão de obra grátis. Eles dividem o planeta em nichos. Precisa-se de manutenção, expansão, dizem. Demitem milhares de funcionários, e as coisas ficam sem reparo algum. Trata-se de comprar membros do Parlamento com consultorias em troca de apoio na aprovação de leis. Existe algo sendo preparado. É o fim da água, dos peixes. Esse projeto vai destruir um povo, um modo de ver o mundo. - Quem são eles? - Sim, de modo mais profundo, trata-se também de criar uma idéia de razão, de inteligência, 20

de

povo

escolhido,

de

desenvolvimento - também o apagar das estruturas fenícias e egípcias da construção grega; o apagar da pesquisa mágica e da imaginação como bases da ciência moderna. O mito na razão. Uma analogia estrutural platônica entre o Estado e a alma humana. Lembrei de uma conversa com meu avô quando, assistindo TV, vimos o caso chocante de uma moça grávida, que, estando muito debilitada, prostituía-se para manter seu vício. O cliente, numa fantasia sexual violenta, atirou-a na parede, e ela veio a falecer. - Você já ouviu falar daquele grupo que invade funerais de jovens gays com placas onde se lê: “Bichas, vão para o inferno?” É o mundo do medo. Como entrar no mundo do outro? Como acreditar que não desvendamos tudo, sem cair no sectarismo fanático?

O

empirismo é uma fábula como qualquer outra. Vivemos uma identidade instável, dependendo constantemente de nosso sucesso profissional e do consumo. A ciência pode responder 21

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima tudo? Kant, o filósofo alemão, disse que o espiritualista Emanuel Swedenborg era uma fraude. Ele havia, por exemplo, tido uma visão e disse aos presentes que estava ocorrendo um incêndio em sua distante cidade, o que foi confirmado posteriormente. Assim, a “razão” fecha o círculo do real. Houve um fechamento das ciências humanas em si mesmas, as pessoas,

perdidas,

as

empresas

e

os

consultores criam teorias melhores ou piores para explicar o humano. - Nós, jovens, vemos o futuro cinzento, eu disse. O mundo parece tão perigoso. Sempre tenho medo das pessoas. - O mundo precisa ser reconstruído, meu filho. Os jovens com síndrome de hikikomori, mais de 1 milhão no Japão, ficam 8, 10 anos trancados em seus quartos, jogando na internet à noite e dormindo de dia. Suas mães deixam comida do lado de fora da porta. O mundo educacional se tornou sinistro e opressor para eles. Mesmo tendo o governo 22

japonês tomado muitas medidas para tornar a educação mais sensata, os pais tendem a colocar os filhos em escolas ainda mais duras. Tradicionalmente, um filho que não tenha “sucesso” profissional é visto como uma vergonha para a família. A salvação vem do conhecimento. Claro que a antiguidade legou também outras éticas, do coletivo, do amor à natureza, da meditação. Só que a grande força educacional hoje é uma avalanche de propaganda para o externo, metas, prazer sensorial,

aparência,

rapidez,

velocidade,

individualismo, esquecimento. É uma época de intolerância, concentramos o poder e separamos as pessoas. Não sabemos, no fundo,

conviver.

Pisar

na

flor

parece

adequado, se criar riqueza. Só que sabemos que quem supervaloriza o sucesso material tem mais tendência a ser depressivo que quem constrói um mundo interno, valoriza a criatividade e a troca com o grupo, a cidade.

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Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Vivemos a metafísica do experimento e na onicompetência da ciência quantitativa. Acordei de minhas lembranças quando o sábio falou: - Hinos, preces, sermões, adoração a estátuas, banquetes sagrados, beijos rituais, símbolos da elite espiritual. Eram grupos que seguiam homens santos, no período romano e helenístico. Deviam renunciar ao mundo, desprezavam o mundo. O texto era sagrado. Ouvimos um estrondo. - Depressa! Ele me mostrou um alçapão, desci uma escada dentro da pedra. Ouvi uma explosão. Fiquei quieto por um momento. Depois corri com toda a força que eu tinha pelo corredor escavado na pedra. Eu saí em um campo à beira de um bosque. Somente então entendi onde estava, via uma mansão com duas torres de tom gótico, mas a paisagem me dizia que ainda estávamos no Brasil. O prédio ardia em 24

chamas e eu queria gritar imaginando aonde fora aquele homem. Eu ouvi uma voz que vinha da mata. - Venha! Esconda-se. Não podia pensar muito, a voz me pareceu amistosa. Corri então para o meio das árvores. Uma mulher com um manto roxo e um arco nas mãos veio ao meu encontro. - Meu nome é Nuriá, mas me chamam de Vampírica. Vamos ajudar você. - O que aconteceu aqui? – perguntei. - Antes você tem de estar à salvo. Ela começou a correr e eu a segui. Chegamos a uma clareira, e havia muitos deles, com sobretudos de couro e ar vitoriano, em muitas motos. - Esses são seus amigos, agora. Suba. Andamos um tempo considerável. Vez ou

outra,

alguém

entoava

um

mantra,

impunhando uma espécie de amuleto. Minha mente vagava, eu tentava reunir forças para compreender tudo aquilo. Subitamente, sentia 25

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima que minhas forças se esvaiam, eu estava realmente exausto. Adormeci. Acordei em uma câmara de pedras, iluminada por velas. Parecia aconchegante e bela, havia um perfume delicado de mirra no ar.

Mas

eu

estava

farto

de

cenários

esdrúxulos. Devo ter resmungado alguma coisa e um homem barbudo e amável aproximou-se, num paletó preto de veludo com colete azul, claramente imitando um esteta da época de Burne Jones. Ele me ofereceu uma taça de vinho e uma fruta. Atrás dele, estavam Vampírica, uma jovem loira com tranças e roupas de couro – que, na verdade, lembrava Xena - e um belo jovem de rosto melancólico. - Coma. Você dormiu por doze horas. Meu nome é Üle, nome fantasia. Sim, há motivo para temer. Há forças lá fora que não controlamos. Não apenas o mundo parece ser um palco de forças opostas, com deuses a seu favor e deuses contra, como nós próprios 26

somos campos de batalha, como queriam os gregos. Sim, somos amigos. Deve estar pensando quem somos nós e como o achamos. Somos os Vampirianos, um grupo que se reúne para celebrar e vigiar os vampiros. Não se preocupe, não bebemos sangue – sorriu. Eu comia e bebia com voracidade. - Bem, no começo nós simplesmente queríamos viver de modo vitoriano, queríamos um pouco de romantismo, rituais, mistério. Lutávamos por fugir dos padrões, contra o império dos corpos publicitados. Queríamos a magia, o passado, o invisível. Ninguém pode ser tão magro, mesmo os modelos passam fome para ficar assim. Queríamos pensar em outros modos de viver que não a ideologia do consumismo e do acúmulo, achávamos que nosso mundo era estruturalmente violento, com a concentração de poder e unificação das consciências, que tornavam a frustração, a inveja, a rivalidade e o desprezo os pilares de 27

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima nossa sociedade. Víamos o mundo com muita tecnologia, mas pouca sabedoria para se viver, distinguir o mais e o menos importante. Você

é

capaz

de

reconhecer

seus

sentimentos? De se distanciar deles? Você é capaz de perdoar? Como você reage quando as

coisas

não

saem

como

gostaria?

Achávamos que a democracia precisava de igualdade e que, tendo os povos nativos sido escravizados

ou

mortos,

sem

que

os

sobreviventes tivessem tido muito acesso ao novo código de bens simbólicos, a democracia estava em construção, e ainda nas fundações. Estávamos fartos de adolescentes racistas, agressores homofóbicos e da classe média intelectual que desprezava os pobres como resíduos

sólidos

e

falava

de

“fascismo

assistencialista”. Gente culta, mas bitolada e intransigente, incapaz de abrir-se à novas questões, guiadas por preconceito intelectual, sem autoconsciência e autocrítica, paciência. Pessoas “bem informadas”, mas que não têm 28

acesso à informações do contraditório, outros campos sociais, outros pontos de vista, e acabam

obcecados

por

seus

próprios

princípios e os valores de sua comunidade. Antes, nós só fazíamos congressos contra o marketing para bebês e lembrávamos a frase de Einstein: “É a teoria que decide o que pode ser observado”. Ele suspirou fundo, e olhou pensativo o horizonte. - Até que percebemos que havia muita coisa em jogo. Os seres bebedores de sangue existiam. Eu pensei em dizer “vocês não vão me convencer dessa loucura, bando de malucos”, mas

antes

que

pudesse

completar

o

pensamento, ele disse: - Pense no que viu. Sim, eu leio um pouco os pensamentos. Não tudo, um pouco. Se a pessoa está aberta. Quem eram eles? Na casa? Bem, existem espíritos malignos que podem se concretizar por algum tempo na 29

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Terra, e nós os chamamos de Ushers, em homenagem a Poe. Nossa amiga Ariel os viu, antes que pudéssemos chegar. - E quem era aquele homem? - H. P. é um intelectual, doutor em Direito, versado em Filosofia, Filologia e afins, que dedica-se há mais de 40 anos a pesquisar o sobrenatural. Muitos dizem que atingiu um grau tamanho de sabedoria que pode falar com os espíritos da natureza. Mantínhamos contato regular, apesar de seu estilo eremita. Ele esperava por você, ele nos advertira. Ah, você quer saber sobre seu amigo. Ele morreu, provavelmente. Foi pego pelo Lorde e, sim, você tinha razão. Eu senti um aperto no peito. Jonas. Eram de fato pessoas macabras, capazes de tudo. - Mas o que são vampiros, afinal? Isto tudo parece tão fantasioso... - Todas as culturas tiveram medo da perda do líquido mais precioso: a strix, 30

mortos-vivos que alimentam-se de corpos de parentes mortos, íncubos e súcubos que visitam à noite, bruxos que causam melefícios mesmo depois de mortos, licantropos que retornam

para

alimentar-se

de

seus

parentes... Você deve saber que todos nós temos energia vital. Os povos ancestrais eram muito mais conscientes dessa energia e podiam

mesmo

perceber

à

distância

a

aproximação de um ser vivo. Sempre houve pessoas capazes de sugar energia. Mas, de fato, parece que o sangue sempre foi visto como sede da alma, cálice do princípio vital de toda criatura. No mito de Osíris, o deus fica preso em um túmulo de chumbo e renasce. Ou ele era representado por um vaso redondo, em cuja asa se entalhava uma cobra,

representando

o

numen

que

transformava o deus. Pode ser um símbolo do corpo como lugar de aprimoramento da consciência.

31

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - E o que Lorde Kevin é, afinal? Apesar de vê-lo desde minha infância, só pude sentir seu imenso desprezo condescendente por mim. - O que sabemos? Um demônio que odeia a humanidade, a democracia, laços. Ele tem diversas atividades escusas, como você intuía.

Não

é

apenas

a

expulsão

das

populações das áreas centrais da cidade, para especulação imobiliária, o projeto que vai transformar o rio e acabar com a comunidade indígena da periferia de São Paulo. Seus conglomerados vendem armas, trabalham com

reconstrução

invadidos... escravo.

privatizada

e

países

Prega o trabalho assalariado

Seus funcionários vivem quase

abaixo do nível da pobreza e são proibidos de se

associar

representação.

em

qualquer

Suas

entidade

cadeias

de

privadas

colocam um guarda para cuidar de um bloco com 200 detentos, e dois deles já foram

32

assassinados. Você tinha razão: seu pai estava cercado por monstros. - Augusto Coligne, como você sabe, é um homem detestável por mérito próprio – disse Vampírica. Controla a opinião pública. Parece ter sido um cientista do Iluminismo. Enquanto Lorde Kevin pode invadir um país por prazer, Coligne quer riqueza, e vai tirar quem estiver em seu caminho. Todos nós somos

desprezíveis,

para

ele.

Quando

começamos a participar de protestos contra uma organização nazista que matara um jovem gay, ele escreveu um artigo intitulado “Vampirianos ou psicóticos?”, dizendo que éramos “um retrato da decreptude do ensino” e que nossos protestos eram “brincadeiras, marketing negro e política gay”. “Somente a liberdade garante a diversidade, e pensar que devemos salvar os pobres é uma espécie de fascismo”, ele disse.

33

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - Mas isso é só o começo. Sabemos que eles estão em busca de alguma coisa e sabemos que tem a ver com você seu avô. - Vocês têm alguma informação sobre meu avô? Quem ele era afinal? - Não, quase nada. Mas vamos até alguém que sabe. Hoje vamos resgatar o Pianista, um homem que pesquisava a Música das Esferas e que sabemos ter muita informação sobre Lorde Kevin. Para horror de todos nós, ele está preso na Torre, um lugar de suplícios destes demônios. - E nós vamos lá? Mas o que faremos? - Antes vamos à floresta, realizar um ritual – disse Vampírica. Precisamos evocar as forças cósmicas para termos uma orientação. Sabemos que a surpresa estará ao nosso lado. - Vocês sabem que eu não concordo – disse a moça loira. Olá, meu nome é Ariel. Eu estou tendo um pressentimento. As fadas estão à nossa procura. São seres terríveis, 34

que adoram comer carne viva. Provavelmente eram o que os gregos chamavam de lamiai, que atacavam crianças e sugavam o seu sangue. - Nós temos os canis lupus – Vampírica respondeu. Eu devo ter olhado para ela com uma feição que dizia “chega de Disney”. Ela sorriu. - Veja, você deve ter ouvido falar que os caçadores do paleolítico tinham uma ligação estranha com certos animais que caçavam. Alguns desses rituais envolviam desmembramento e consumo de animais, êxtases que duraram até a época de Dionísio. Certas

tribos

acreditavam

que,

usando

máscaras sagradas nas danças, podiam acessar a consciência atávica, ancestral, conectada

com

memórias

geracionais

e

coletivas. E também com a consciência animal. Não eram apenas a tribo do lobo. Tornavam-se lobos. - E eles vão nos ajudar? 35

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - Se chamarmos por eles! - Vamos. A lua está no céu – disse Üle. Eu estava francamente irritado. Voltaria a

encontrar

pessoas

sensatas?

Quando

poderia sentar em frente ao meu computador e

perder

algum

tempo?

Queria

muito

encontrar minha amiga Lorena, que parecia ter desaparecido também do universo. - A propósito – disse o homem – este é Orth. Ele também lhe achou interessante. Eu tinha um péssimo pressentimento também. Antes de sairmos, Ariel me puxou para um canto e me entregou um pequeno mapa: - Caso algo aconteça. Quando entramos na floresta, desta vez em uma carruagem, eu sentia como se uma presença sinistra planejasse nosso fim, um frio tenebroso. Eu mal podia olhar para Orth, e ele também se mantinha de cabeça baixa. Lembrei de quando Lorena e eu fizéramos 36

amor pela primeira vez, ela fora a primeira garota que eu beijara, romanticamente na frente de uma Igreja sob a lua. Sua pele negra me atraía. Eu queria dormir. “Foi bom”, ela disse. “Mas você não estava comigo”. Quando dei por mim alguém estava montando um altar, outros organizavam flores, foi feito um círculo de pedras, tochas foram acessas. Vampírica

entoava

um

melancólico

canto xamãnico. Os Lobos eram evocados. - Fujam, as fadas estão chegando! Mal a menina pode dizer isto no seio da floresta, pulou de uma árvore um ser de aparência humana, pele viscosa e manchada como uma salamandra, atravessou seu corpo com uma espécie de varinha comprida, bem no coração. Ariel caiu sem vida. Orth foi lançado de encontro a um tronco alto e eu o vi cair ao chão, enquanto Vampírica e Üle pareciam paralisados por algum feitiço, os olhos esbranquiçados. Ao 37

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima meu

redor,

fogo,

garras

e

varinhas

pontiagudas cravadas cruelmente torturavam a maioria dos vampirianos. Eu senti uma dor lancinante nas costas e, virando-me, dei de cara com um desses monstros com rosto humano, dentes finos, nariz pontudo e olhos amarelos. - Adoro eliminar cogumelos e outras formas de vida inferior – a fada sorriu. Ela pareceu avançar sobre mim, mas algo a repeliu violentamente, e ela caiu de costas. Havia uma espécie de campo ao meu redor. Corri o mais rápido que eu pude. Lembro-me de tropeçar e perder a consciência. Ouvi: - Se nascem do coito com o demônio, isso se deve ao sêmen obtido de algum homem. Sabia tratar-se de outra dimensão, sonho ou alucinação. Ao mesmo tempo eu via

38

a imagem de um monge chegando a um mosteiro. - Não existem formas vegetativas, sensitivas, intelectuais, apenas uma alma. Não existe matéria espiritual, e os anjos não são substâncias separadas da matéria. Quando voltei a mim, estava nas costas de um homem muito peludo, que vestia um colete de metal, sendo carregado em direção a uma ilha, onde havia uma torre (na verdade, um conjunto de onde se projetava uma torre mais alta), envolta em névoa leve. Na minha frente, via outros carregando o que pareciam ser os corpos de Ariel e Orth, Nuriá e Üle, assim como dos demais vampirianos. Eu ainda estava muito tonto. -

Não

se

preocupe.

Chegamos.

Infelizmente... - Vocês são os Lobos? - Sim. Meu nome é Notwen. - Estamos caminhando sobre a água? Parece estarmos caminhando no céu! 39

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Ele sorriu. - Não, são caminhos que apenas nós conhecemos. “Assim como acima, embaixo”, diz a Esmeralda - ele riu. A

Torre,

alta,

era

uma

enorme

construção de pedra, rude, mas imponente. Dentro, parecia-se realmente viver em eras remotas, apenas com fogo, madeira, metais brilhantes e flores. Entretanto, chegavam

além

comigo,

daqueles

homens

e

que

mulheres

feridos, sujos e cansados, havia outros bem vestidos

em

roupas

contemporâneas.

A

chegada dos mortos encheu o ambiente de lamentos, mas uma velha senhora veio receber-me com um sorriso. - Meu caro! Seja bem-vindo ao nosso refúgio! - ela percebeu minha curiosidade Essa Torre foi construída por um industrial e seus amigos, com suas próprias mãos, na década de 20 do século passado. Como vê, apesar de sermos perseguidos há milênios, 40

alguns de nós conseguiram ser reconhecidos na sociedade. Ela me indicou uma cadeira. - Meu nome é Darla. Um velho – que também parecia bastante peludo - aproximou-se: - Que triste momento para conhecermonos. Sou Thomas. Eu sinto tanto por estes meninos, eles de fato se envolveram com forças que não poderiam controlar. Tudo ainda parecia fantástico para mim. Onde começava, afinal a realidade? - Não haverá nada que se possa fazer por Ariel e Orth? - eu perguntei. - Quem sabe? – Thomas respondeu. É terrível! Vampírica e Üle ainda têm esperança, estão enfeitiçados. Uma mulher de meia idade aproximouse, com um belo vestido de seda vermelho, oferecendo-me frutas e um copo de leite. Aceitei.

41

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - Vocês não se transformam em lobos, afinal? - Não. É só consciência atávica. Aquele homem que lhe orientou, por exemplo, é o Xamã, que nos guia – Darla disse, olhando para o grupo recém chegado. Havia uma ampla lareira, mesas com variados alimentos, divãs forrados com peles. Tiravam sua roupa ali mesmo, entravam em tinas

d´àgua,

enrolavam-se

em

túnicas,

entravam em uma sala anexa. - É nossa sala de banhos e vapores – disse Darla, antes que eu perguntasse. Alguns passavam uma espécie de óleo medicinal em suas feridas, outros recebiam espécies de passes energéticos com as mãos. Thomas chefiava o grupo, estavam levando os vampirianos para o subsolo. -

Teremos

de

usar

magia

para

conservá-los - ela disse. - Eu me sinto perdido e confuso - falei.

42

- É. São tempos difíceis. Mas você já passou por coisas difíceis antes. Eu olhei para ela com minha melhor interrogação. - Sabemos que você foi criado próximo a Lorde

Kevin. Nada poderia ser pior. Não

trata-se apenas da maldade mais exemplar que se pode conceber: ele busca a destruição, a vida nada significa para ele. Notwen aproximara-se. - Eu sei que você pensa que tudo não passa de uma alucinação. Os vampiros não são uma fonte de entretenimento, Bela e Brad? Mas você sabe que forças maléficas sempre tentaram destruí-lo. Você se sentiu jogado

de

agressivas,



para

críticas

cá e

entre

invejosas.

pessoas Venha,

tomemos banho. Depois vamos jantar. Fique certo que nós sabemos o que é ser visto como “estranho”, ser desprezado, humilhado, ser julgado como se tivesse escolhido ser você, como se ser o que é fosse humilhante e um 43

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima grande sofrimento. Podemos dizer que somos os “lobos errantes”. Ele parecia conhecer toda a sombra de meu coração. Após o jantar sentamo-nos no terceiro andar da Torre, eu, Darla, Thomas, Notwen e mais

dois

simpáticos

“lobinhos”.

Nossa

sobremesa havia sido um tipo de flor de lótus e eu estava muito alegre e preguiçoso, perfeitamente à vontade. - Foram tempos difíceis. Eu namorava minha amiga Lorena, mas eu e meu amigo Jonas não podíamos ficar longe um do outro. Nos conhecíamos desde criança e estávamos acabando a universidade, pretendendo fazer o mesmo curso de mestrado. Ele era brilhante, muito mais disciplinado em leituras que eu, enquanto, segundo ele, eu era criativo e intuitivo.

Nossos

debates

eram

ricos,

principalmente porque ele demolia minha auto-imagem autocomplacente e me forçava a conhecer 44

coisas

novas,

enquanto

eu

propunha soluções inovadoras em insights abrangentes. Luísa foi uma menina que eu conheci

em uma

festa, interessada em

Montaigne, Jung, espiritualidade, e passamos a conversar regularmente. Lorena não gostou dela quase imediatamente, mas eu pensei tratar-se de ciúme. Neste ínterim, Lorena me disse que minha relação com Jonas passara do limite da amizade e que eu devia observarme para saber se não estávamos nos amando. “Lembra do amor do imperador Adriano pelo belo jovem da Betínia, Antinous? Quando este morreu afogado no Nilo, o Imperador

‘chorou

como

uma

mulher’,

segundo as crônicas. Construiu uma cidade em sua memória, decorou sua vila próximo a Tivoli com estilo egípcio e, em honra a sua beleza, considerou-o um deus e espalhou estátuas suas por todo o Império. É apenas um espectro da sexualidade masculina que tem sido reprimido por muito tempo”, ela disse. 45

“Força

e

fraqueza,

atividade

e

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima receptividade, são ideais que nos oprimiram por séculos, e viver com eles é torturante”. Eu considerei isso uma ofensa e acabamos brigando. Luísa passou a sair mais conosco, e eu não entendi quando Jonas pareceu estar mais fechado com ela. Foi neste momento que meu avô faleceu e eu mostrei o conteúdo do baú para Jonas. Acabei confessando a Luísa que eu estava confuso quanto aos meus sentimentos com ele e ela passou a ser minha conselheira. Decidi revelar minhas emoções para Jonas e ele sumiu. Eu os vi juntos no parque depois disso, mas ele parecia muito contrariado. marcamos

Depois, no

em

mesmo

um

parque

dia

que



onde

costumávamos nos encontrar aos domingos ele não só não apareceu como sumiu completamente, nem mesmo a família soube mais dele. Eu pensava nos poderes das trevas que sempre me envolveram.

46

- Lorde Kevin aproximou-se de meu pai desde a minha infância. Augusto e Marcos vieram depois. Augusto sempre me tratou como um desmiolado, mas papai sempre lhe deu crédito pelos imensos favores pessoais, por exemplo. Marcos foi um jovem assistente apresentado por eles, que se aproximou como uma “vítima da sociedade”, foi contratado como uma espécie de gerente financeiro e passou a vigiar-me enquanto usava seus créditos para zombar dos pobres. Eu percebia sua arrogância, sua displicência no trabalho, então ele passou a dizer a meu pai o quanto eu

era

distraído,

fantasioso

e

mesmo

rebelde... Eu percebia, nas poucas ocasiões em que nos víamos, como Lorde Kevin tratava os empregados, por exemplo, e ouvia histórias de arrepiar sobre ele... Mas papai dizia que eu inventava

ou

aumentava

tudo.

Então...

Quando meu pai decidiu viajar de surpresa, e eu vi aquela cena horripilante... fugi. Eles ouviam com empatia. 47

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima -

Conte-nos

sobre

o

seu

sonho.

Acreditamos ter alguma pista. Notwen disse que você tremia enquanto era carregado. Eles eram realmente sensíveis à tudo. Eu contei o que vira, o monge, o mosteiro, as estranhas falas que ouvira. - Esses termos lembram a obra do “doutor angélico”, do "boi mudo" – disse Darla, olhando pensativa o fogo. Na Europa do século XIII, tudo que tinha atividade devia ter o princípio da vida, uma forma, uma alma: nas plantas, a alma vegetativa, nos animais, a alma sensitiva. O homem também teria uma forma para cada atividade ou operação, algo que se atribuía a Santo Agostinho, mas derivava dos árabes. −

Como assim? - perguntei. Meus

sonhos pareciam estar me levando para terras e tempos cada vez mais complexos. −

Isto pode parecer loucura hoje,

Notwen disse, mas algumas das teorias mais vanguardistas da física, como a teoria do 48

multiverso, acreditam que o que podemos ver pode ser uma pequena parte da realidade, nunca veremos diretamente tudo devido aos limites da luz. Acreditamos na relatividade de Einstein sem ver dentro dos buracos negros, pois podemos inferir e usar a especulação. O médico e alquimista Paracelso, no século XV, pregava exatamente isso: a transformação do visível em invisível e vice versa. É uma visão bem

mais

contemporânea

do

que

a

observação seca e estéril do celebrado “pai da ciência moderna”, Francis Bacon. −

O que sabemos hoje sobre a

matéria, de verdade? – perguntei. −

Parece que estamos entre duas

teorias, uma que afirma ser a matéria oriunda de

microcordas

que,

vibrando,

formam

partículas, e outra, a gravitação quântica, onde até nosso mundo cotidiano deveria ser visto

como

descrito

por

ondas

de

probabilidades, estando cada coisa em vários

49

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima lugares ao mesmo tempo, como no mundo quântico. −

Você falou nos árabes? - lembrei

do sonho onde Lorde Kevin queimava vivo um homem, busquei concentrar-me - Essa coisa de alma, de “matéria espiritual”... Como assim? Os mosteiros receberam isso dos árabes? −

Sim - Thomas continuou – Temos

de ir para o mundo antigo... No Século II, quando os pagãos criticavam os cristãos por incentivar a ignorância e a falta de educação resumindo tudo a um “eu acredito”, o filósofo Tertuliano perguntara: “O que Atenas tem a ver com Jerusalém”? O universo platônico era perfeito para um cristão, mas o de Aristóteles parecia frio e mecânico – ainda que houvesse aí “teologia”, tudo tivesse uma finalidade, muita coisa “mítica” coubesse nessa “ciência”. −

De

qualquer

forma



Darla

interrompeu - Platão pareceu criar essa divisão entre razão e mito para colocar seus 50

mitos no lugar dos tradicionais, por exemplo, incentivar ações que seriam vantagiosas “lá embaixo”.

Criou os futuros Céu, Inferno e

Purgatório. O Tártaro deixou de ser prisão dos Titãs e passou a ser cárcere de malfeitores . Ele queria definir o que era o Bem, um pouco incapaz de pensar a emoção educativa e o corpo como mestre, já que o visível muda sempre. −

Havia

a

pergunta

no

fim

da

antiguidade – Thomas prosseguiu - como unir um Deus cristão, criador e livre, com o Motor, a

Divindade

Incomunicável

do

grande

Aristóteles? Para este o universo era um organismo funcionando, por causalidade e finalidade, mas ele critica seu mestre pelas “metáforas poéticas”. Entre o fim do século VIII e início do século IX, fragmentos de textos gregos chegados ao mundo árabe dão origem a uma literatura falsamente atribuída ao Filósofo.

51

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Eu ouvia com atenção. Lembrei-me do baú de meu avô. Os olhos de Thomas brilhavam: −

De algum modo que eu não

percebo, o domínio dessas forças interessa Lorde

Kevin...

É

mais

do

que

poder,

simplesmente comando do governo, desprezo pelos fracos, cortes na educação e na saúde ele fez uma pausa, olhou ao longe. Um lobo falou algo com Darla sobre um “campo”, e logo passamos a ouvir uma espécie de cântico vindo de fora. −

Estamos

recarregando

nossa

energia para a próxima incursão, disse Thomas. Mas, voltemos... No século IX, Al Kindi pesquisa as influências do sol e dos outros astros, evocando os demônios dos planetas... −

Influências? - perguntei.



Sim. O Universo neoplatônico –

unido pela luz que se esparrama, pelo Ser do qual participam todos os seres sensíveis - vê 52

uma hierarquia de emanações de Deus: Inteligência,

Alma,

Natureza

e

entes

concretos. As estrelas são intermediários entre o Criador e as criaturas. A Alma Universal

é

a

suprassensíveis

e

última

das

substâncias

a

primeira

entre

as

substâncias sensíveis. −

Um todo unido... - eu disse.



Isso.



para

o

verdadeiro

Aristóteles, a substância não-sensível – o Princípio - é transcendente e, como um general que desconhece as coisas do mundo, “pensamento do pensamento”, impõe uma ordem ao visível sem misturar-se com ele: o mundo se move em sua direção por amor. Mesmo que existam inteligências motrizes das esferas entre um e outro. −

Isto tem a ver com os astros?



Os astros ficam em esferas,

movidas por motores. Os astros seriam feitos de substância sensível eterna, o éter quintessência, que, para Aristóteles formava 53

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima nossa alma - enquanto as demais substâncias sensíveis poderiam se corromper. Seriam 55 esferas celestes, em rotação, cada uma com seu próprio motor imóvel, ele também uma substância-não-sensível, movimento esse que geraria mudanças no mundo sublunar. − Notwen

“Assim como acima, embaixo”, disse.

Sei

que

pode

parecer

complicado, mas compreender o passado vai ajudar a entender onde você está, a ver novas formas de pensar o agora... Eu respirei fundo. Lorde Kevin aparecia na escuridão. Meus olhos haviam visto muita coisa incompreensível. −

Acostume-se, esse é o mundo

dos vampiros, lobos, fadas, lâmias, obours e magos – Notwen sorria. −

Sempre quis entender a tal briga

entre Platão e Aritóteles e, de alguma forma, acho que isso tem a ver com o que está acontecendo. Ele sorriu: 54



Sim.

Como

você

vê,

ele

continuou, procurou-se unir o platonismo e o aristotelismo... Platão falara do cosmos como corpo vivo, do qual são parte outras criaturas vivas. Para rejeitar a tese de que a verdade é relativa, é o costume, Platão cria uma história onde o homem que descobre em si a verdade, o Estado, as leis, tudo têm como medida e meta Deus, o Bem. Aristóteles, que criticara muito dessa metafísica, Ideias e Números, descrevendo, sensíveis

como

corruptíveis

vimos, aqui

substâncias em

baixo

e

substâncias sensíveis eternas, os corpos celestes, entrou, devido a estas misturas, na Idade Média latina como platonista, “mago”. − segredo...

Sim, -

Thomas

pareceu

disse.

devanear,

Um depois

retomou - São atribuídos a Aristóteles, até mesmo pelos grandes filósofos Al-Farabi e Ibn Sina, que serão os grandes professores do Ocidente, livros como Liber de Causis e Teologia. 55

Platão, penso, falara das Ideias

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima como substâncias metafísicas que vivem além do

mundo

das

aparências,

num

local

supraceleste, ainda que tenham ligação com este mundo. −

O famoso “mundo das ideias”? -

perguntei. −

É. Para os estóicos, o éter

permearia tudo, e Deus é um fogo que se expande pelo todo, um corpo vivo, racional e perfeito. Plotino, filósofo nascido no Egito, em 205, diz que o “espírito” engendra as ideias a partir dele e nele. −

E de onde surge o mal? -

perguntei. −

O mal é a falta, o não-ser, a

matéria, que é pobreza completa, não tem nenhuma forma - Darla disse. Thomas prosseguiu: −

O mundo inteligível, na filosofia

de Plotino era uma emanação de Deus, a Inteligência. Já para Ibn Gabirol, filósofo ibérico, por volta do ano 1000, a “substância” 56

é tanto o mundo sensível quanto o inteligível. Vê assim o cosmo inteligível, conjunto das substâncias espirituais, como tendo uma correspondência necessária com o universo sensível, ambos compostos de matéria e forma. −

Para Al Kindi – Darla afirmou,

todo o ser está realizando seu processo de emanação, todos os seres projetam raios e são as emanações solares que unificam o universo. São vistas sob o aspecto da ótica, em busca das leis matemáticas ocultas. Usando o homem o “espírito imaginário”, emite

raios

exteriores.

que Ele

mobilizam

chama

ao

as

coisas

homem

de

“microcosmos” e diz que tem o poder de induzir um movimento em uma matéria “sob a condição de ter elaborado em sua alma uma imaginação, uma intenção e uma certeza”. A imaginação adquire uma qualidade real. −

57

Como assim? - perguntei.

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima −

Se, por exemplo, cada planeta

tem ligação com um metal, com cada parte do corpo, etc., numa rede de energias, trata-se de usar os sons certos para curar. Era tanta a importância dada a estes escritos que até mesmo Nicolau Copérnico, que colocou o Sol no centro de nosso sistema, no seu “De revolutionibus orbium coelestium”, fala deste astro como o “Deus visível” citando o sábio Hermes Trimegisto, tido como real. −

Lembra-se do Gloster, da peça

Rei Lear? – Notwen falou. “É preciso afastarse do ouvido sensível, eliminá-lo e ocupar-se do ouvido inteligível que está dentro de si. Então,

o

superiores,

homem

ouvirá

nítidas,

as

puras,

melodias bonitas,

esplendorosas, cheias de harmonia, que ninguém cansa de ouvir”. −

Estou lendo mil enciclopédias em

um dia. Mas se eu entender... −

Para mim, há mais que isso –

Thomas disse. Sabemos que os Vedas, no 58

segundo milênio antes de Cristo, chamam os raksashas de deuses-vampiros. O Senhor da Morte do Nepal segurava um crânio do qual bebia sangue... Ele silenciou por um segundo. Depois, prosseguiu: −

Um segredo... No século XIII a

Europa conhecia apenas fragmentos do que pensava

ser

uma

maravilhosa

obra

aristotélica, uma síntese de todo o saber da antiguidade, o chamado “Segredo”, que o grande discípulo de Platão, o “príncipe dos filósofos” teria escrito em forma epistolar ao seu pupilo Alexandre da Macedônia. −

Um guerreiro que estudou com

Aristóteles! sejamos

-

Notwen

parecidos

disse. Talvez

logo,

quando

nós

formos

resgatar o Pianista, sorriu ele. −

O padre Filipe, em viagem pela

Antioquia no ano de 1230, encontrou um manuscrito completo e até o século XVI esse foi um dos textos mais lidos por todos os 59

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima intelectuais da Europa. No “Segredo”, é descrita a viagem fabulosa de Alexandre pelo Oriente, onde encontra dragões, àspides, serpentes com rosto de mulher, morcegos gigantes. Fala-se também de um segredo, algo como uma ciência unificada que apenas um sábio com conhecimento e a moral apropriados poderia descobrir. A literatura medieval criou inúmeras lendas em cima disso. −

Mas esse mundo desapareceu,

não? A ciência, hoje, parece ser o oposto do mistério – eu disse. −

Para os leigos, sim. De qualquer

forma, Darla completou – Lorde Kevin inspirou e nutriu-se da crítica à razão que se duvida, à ciência da magia. A imaginação moderna ficou empobrecida simplista.

No

e

presa século

no XIX,

mecanicismo empiristas,

agnósticos e positivistas decidiram que toda a questão que uma certa ciência não podia responder não era uma pergunta válida. É 60

algo que começa com a idéia de respeitar os fatos acaba em reduzir os fatos à sensações. O método das ciências naturais era a única maneira

de

adquirir

qualquer

tipo

de

conhecimento. −

Como se inicia isso? – eu quis



Inicia com a crença de que não

saber. podemos ter qualquer ideia a respeito de Deus, como diz Thomas Hobbes, e temos de explicar o mundo sem fazer referência a Ele, glorificando-o

pelo

trabalho

com

o

experimento. Um dos maiores reformadores dizia que Deus é invisível e completamente espiritual, nem mesmo crucifixos deviam ser permitidos. −

Bem

distante

do

Evangelho

gnóstico Apócrifo de João e do Testamentum Salomonis, dos primeiros séculos depois de Cristo, sobre os poderes dos demônios antigos. São livros onde a influência entre forças celestes e partes do corpo é debatida. 61

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima A

“melothesie”

grega



disse

Thomas.

A mulher de vestido de seda vermelho, oferecendou-nos um jarro: −

Experimente. É lasse, a bebida

da Índia, Notwen sorriu. −

Se os humanistas renascentistas

engrandeceram o homem e seus poderes, desejando retornar à Era de Ouro – a senhora prosseguiu - os reformadores do século XVI o colocaram como um grão de areia perante Deus. −

Mas a Igreja já não pensava

assim? - eu perguntei. −

O doutor de Aquino, no século

XIII, achava que a ordem do mundo provava a existência de uma Inteligência, mas agora, na nova fé, o mundo deveria ser ordenado de modo

instrumental

em

função

dessa

Inteligência, e o homem, voltar-se à sua interioridade.

62



A modernidade vê uma forte

concentração de poder, as cidades, um medo incrível do Inferno – disse Notwen. −

Descartes,

no

século

XVII,

rejeitará os quatro elementos medievais – Darla continuou - só há um tipo de matéria e todas as diferenças se devem à modificações de extensão; rejeita os quatro tipos de causas aristotélicas, por exemplo, a finalidade, o existir para servir a algo, e aceita só a causa eficiente,

o

contato;

substanciais,

como

rejeita que

as

almas

formas animais,

sensitivas e vegetativas - só há uma forma, a alma dos seres racionais. Eu tentava acompanhar meus amigos. O mundo era apenas uma máquina? Havia sempre

um

desconhecido

“abaixo”

do

“comprovado científicamente”? Um lobinho começou a tocar harpa. Duas moças se beijaram. −

Newton não pode seguir isso –

ela continuou. 63

“A primeira causa... não é

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima mecânica”, ele dizia. Era um arianista, só havia

um

Platônicos

Deus. de

Seguia

os

Cambridge,

chamados

que

queriam

redescobrir o saber dos egípcios. Isso era visto como pré-condição para o Milênio, ou, como diz Platão, o Grande Ano, quando todos os planetas se encontrariam e o mundo seria destruído pelo fogo. −

Quando as coisas se resumem

no visível? Darla

sorriu,

servindo-se

de

lasse. −

Os

filósofos

medievais

nominalistas, para quem só existe o particular - as coisas - e um Deus puro espírito, foram os professores de Lutero, um destes grandes reformadores do imaginário, que ao mesmo tempo, pregou: “Demônio, caguei e mijei; lave a boca com isso”. As igrejas estavam abandonadas

a

padres

substitutos,

ignorantes, e havia muita fantasia, muita confusão, agora desnecessária aos olhos de 64

homens mais sistemáticos. “Deus é tudo, o homem, nada”, disse o reformador, nessa era que precisava de certezas. Começa a ditadura do visível, que oprimiu a criatividade e a imaginação e reduziu o mundo a um palco de tristes adoradores do progresso, onde o corpo é a única magia. −

Muitas vezes se joga fora a

escada pela qual se subiu – disse Notwen Até mesmo Francis Bacon, no século XVII, que criou tabelas de observação experimental, acha que todos os corpos tangíveis contém um “espírito” ou corpo pneumático escondido e oculto nas partes sensíveis; materiais sutis, com apetites, impulsos, desejos, corpúsculos dotados de movimento, poderes, percepção; os apetites e paixões da matéria são os objetos da filosofia. Os corpos inanimados possuem espíritos inanimados; os animais possuem espíritos vitais. Darla respirou fundo. 65

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - Nossa conversa está ótima, mas precisamos do mapa que Ariel lhe deu. O Xamã

nos

disse

que

está

com

você.

Precisamos resgatar o Pianista. Eu estava atordoado. - Nem pense em vir conosco. É muito perigoso. Ele está preso em um dos Castelos de Lorde Kevin, e só de ouvir os gritos lancinantes dos torturados, você desmaiaria. Fique aqui, Notwen lhe fará companhia. Caso não

voltemos,

protegê-lo.

Ele

precisa será

de o

alguém

seu

para

daimon,

o

intermediário entre deuses e homens. Eu dei um sorriso amarelo diante dessa afirmação. Estava realmente cansado. As cenas da floresta, as varinhas penetrando o belo corpo de Ariel, tudo ainda fervia na minha cabeça. Quando eles saíram, Notwen e eu descemos para tomar banho. Era um sistema romano, ele disse. Uma fornalha aquecia a água. O primeiro banho era em torno de 25º; 66

depois fomos até uma sauna; logo, uma água em torno de 40º. Notwen começou então a fazer uma deliciosa massagem. O que aconteceu depois eu só posso contar por meio de metáforas. Eu já havia saído do corpo algumas vezes, pelo menos assim sentira, pois observara a mim mesmo deitado.

Mas

saíssemos

dessa

ambos

vez

do

foi

corpo.

como E

se

nossas

energias atingiam uma à outra, até que se fundiram em uma espécie de explosão. Eu estava inundado de prazer e beleza. Parecia estar em outra dimensão: lembrei-me

subitamente

de

um

fato

envolvendo meu avô. Uma vez ele me dissera: “Uma linhagem antiga. Quando eu partir, procure pelos Harin”. Era algo que eu apagara completamente. Quando voltei a mim estava deitado sobre peles e travesseiros, meus amigos haviam voltado. Havia uma consternação geral. “Conseguimos penetrar com a defesa 67

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima telepática do Xamã, mas fomos descobertos antes

de

salvar

o

prisioneiro.

Thomas

conseguiu resgatá-lo, mas usou toda sua energia”



Darla

deixava

as

lágrimas

correrem. Mais da metade da Matilha havia perecido. O velho lobo havia sido abatido, lutando bravamente contra dez vampiros. O Pianista voltara, muito machucado, parecendo um farrapo, mas vivo. - Uma das torturas era afogá-lo, dizia Darla. Ele está com pelo menos duas costelas quebradas. Todos pareciam incapazes de falar e eu não

me

atrevia

a

fazer

perguntas.

Participamos de uma cerimônia em que tanto nossos amigos como os Vampirianos foram como que embalsamados em energia, mas sem que seus órgãos fossem retirados. Lavados com essências aromáticas, rodeados de talismãs e flores, vestidos com um tecido fino que brilhava como diamante, foram 68

colocados ritualmente em urnas metálicas. Nuriá e Üle, também foram lavados, mas permaneceram deitados em um altar de pedra forrado de sal. Cristais de quartzo foram colocados sobre eles. - Desde tempos imemoráveis os xamãs usam “pedras de luz”. Eles conseguiam ver o distante, o que há na alma e no futuro. Por exemplo, carregamos o medo e luto de nossa família e eles causam separações – disse Nowten. Os dias passaram melancólicos. Eu queria saber tudo sobre o incidente, sobre quem eram os vampiros, H. P. e o Pianista. Mas

me

mantinha

sério,

esperando

o

momento. Meu amigo me levou para andar de barco ao redor da Torre, até mesmo fomos ver as lindas cascatas na floresta ao redor. Um dia Darla me chamou. conversar.

69

Venha,

ele

acordou.

Podem

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Entrei no quarto onde dormia. Havia incenso, era ricamente decorado, ao contrário de todo o resto. - Gostou do fausto? Eles gostam muito de música. São ancestrais. Ele sorriu. - Eu não duvido de mais nada, agora respondi. Sou o próprio caminhante do mundo das fadas, como Tolkien disse, a única coisa que não pode haver ali é a ideia de que tudo é fingimento ou ilusão. -

Kant

percebemos

é do

bom lugar

nisso: onde

sempre estamos,

percebemos aparências. Como você pode ter certeza de que não estamos sonhando, de que eu não sou parte de sua mente, que dialoga com você? - Quem sabe, afinal, se não somos todos ficção? Bem, expandir as leis é expandir os modos de ser. Mas... Como você se tornou esse informante precioso?

70

O Pianista sentou-se melhor na cama, bebeu de sua taça de ouro. - Eles acreditam que o ouro é um elemento que se contrapõem à influência de Saturno,

que

deixa

os

intelectuais

melancólicos e doentes. Ele olhou-me em silêncio. - Minha esposa era uma cantora de ópera

afro-americana

que

começou

a

pesquisar a vida de Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Entre suas anotações encontrou um círculo perfeito, cortado por um traço, como o símbolo do vazio. Ele olhou um horizonte inexistente. − uma

Você está disposto a ouvir? É lenda

longa

e

confusa...

Eu pensei que ele não imaginaria as coisas confusas em que me metivera. −

Por algum motivo ela pensou

estar isso relacionado ao Socianismo, filosofia anti-aristotélica e anti-platônica que dava 71

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima ênfase à fé e ameaçava a Igreja. Remontava a John Locke, por exemplo em Razoabilidade da Cristandade, que acreditava em Deus como causa de nossa existência, fé que poderia mesmo ser imposta pois é racional. Sabia que Hamilton, inimigo da democracia direta, havia tentado criar uma monarquia, segundo Thomas Jefferson, ou melhor, uma plutocracia, criando impostos para fortalecer uma milícia e centralizar o poder, medidas que provocaram a Rebelião de Shays e a Revolta do Uísque. Sua visão era a de que, fazendo os ricos enriquecerem, os pobres receberiam alguma caridade. Bem... Foi dito que, se quisesse, o governo poderia ter mesmo evitado a queda da Bolsa de 1929, mas era contra sua filosofia intrometer-se. Pareceu hesitar. −

Sobre o círculo... Minha mulher

lembrou de eu ter lhe contado a história de um famoso pintor italiano, Ambrogio, que viveu por volta do ano 1300. Tendo sido solicitado 72

por um representante do Papa a apresentar uma prova de sua habilidade, enviou-lhe um círculo perfeito desenhado em um pedaço de veludo vermelho. - Não compreendo... - Esse círculo, eu levantara a teoria, podia ser bem mais que uma demonstração de habilidade. Pouco antes dessa época um nobre italiano recebera de uma família amiga a ruína romana de uma Arena que lhes fora presenteada pelo imperador alemão. Supõese que fundou uma Ordem, logo apelidada de “Merry Brothers”, que tornou-se incrivelmente rica; ali ergueram uma capela que pretendia defender a “Mãe Virgem” contra as heresias. - Ouvi dizer que o poeta romano Virgílio já falava em uma Virgem sagrada, que teria deixado a terra na Era do Ferro, mas retornaria no Ano, a volta da idade de Ouro. Um descendente de Júpiter governaria, e Augusto usou esse mito para fundamentar seu governo. 73

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - “E uma Virgem conceberá e terá um filho que se chamará Deus Conosco”. - Esse dogma não está na Bíblia? - O Símbolo de Nicéia, de 325 fala apenas da “encarnação e humanação do Filho de Deus”. O concílio de Éfeso em 431 já fala na “santa virgem”, enquanto o Sínodo de Latrão, de 649 diz que ela gerou “de modo incólume, sem sêmen, do Espírito Santo”. - Então a ordem defendia a Virgindade, mas que importância tem isso? - Há muitas causas. A partir mais ou menos do ano 900, há o que se chama O Afastamento dos Deuses, começava-se a duvidar que os seres da natureza e os deuses partilhavam

a

mesma

substância

divina.

Plotino, no século III, ainda dizia: “Esforço-me por fazer elevar o que há de divino em mim até o que há de divino no universo”. Lá pelo século IV, muitos cristãos veem o mundo como um lugar frágil, o ser humano como um ser pecador, que foi criado por Deus do nada 74

e depende dEle para se manter. Se o Salvador não for absolutamente divino, como poderá ser o Caminho? - Uma separação absoluta... – lembreime de ler a Bíblia com meu avô - “Deus espalhou Sabedoria sobre todas as suas obras”, diz o Eclesiástico. - Para essa vertente, não existe nada como a Sabedoria bíblica, algo imanente, semelhante à Maat dos egípcios. A Verdade, ao invés de ser um longo exercício que exige observação e uso da razão, como para os antigos, estava contida de modo definitivo na Escritura. Algumas seitas gnósticas, nos anos 200, também valorizavam as mulheres como profetas, curandeiras, padres e bispos. Os seguidores

de

Valentino,

por

exemplo,

acreditavam em uma Mãe que teria “infundido energia” no Criador. Os gnósticos, de modo geral, pregavam uma relação direta com Deus, enquanto a ortodoxia enfatizava a hierarquia, pois Deus delega seu governo aos 75

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima “governantes e líderes da terra”, bispos, padres, diáconos. - Mas essas crenças permaneceram... Lembro do rei Lear dizer: “Esses últimos eclipses do sol e da lua não nos anunciam nada bom.” - Vejo que leu Shakespeare... E, no Mercador de Veneza: “Não há estrela, por menor que seja, de quantas aí contemplas, que em seu curso não cante como um anjo, em consonância com os querubins dotados de olhos moços. Na alma imortal essa harmonia existe. Mas enquanto estas vestes transitórias de argila a envolvem muito intimamente, não podemos ouvi-la”. - O Círculo... - Para os antigos gregos, Oceanos era o

rio

que

rodeava

o

universo

inteiro,

representado por uma serpente que mordia a cauda, o tempo como vida e morte. É o deus Aion dos órficos, uma energia vital que tudo permeia. No Atalanta, aparecem círculos de 76

fogo, assim como em muitos outros tratados alquímicos. - Uma mensagem cifrada. O Papa compreenderia que, assim como patrocinara o manuscrito de M.... - Antes de morrer, minha esposa... - Ela está morta? - Sim. O FBI a chamou para um interrogatório. Misteriosamente, depois disso, ela adoeceu de algo que nenhum médico pode diagnosticar e faleceu depois de trinta dias. - Que horror! - Pode haver uma ligação entre as ordens egípcias, as fraternidades pitagóricas e a Academia Platônica. Também os Platônicos de Cambridge, no século XVII, propunham que a sociedade devia ser governada por uma elite iluminada possuidora de conhecimento mágico e científico. Este “colégio invisível” teria inspirado a Royal Society. Antes de morrer, 77

minha

esposa

descobriu

um

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima documento

anônimo

entre

as

notas

de

Hamilton que dizia: "Há uma estreita relação entre maldade e pobreza. Círculo destruído”. - Então... - A Música das Esferas. Ou, como disse Paracelso: “Tem uma estrela em você”. Tentei

fixar-me

ao

chão

por

um

instante. - Isso tudo é pura especulação. - Sim. Mas há rastros sobre o Colégio da

Vigilância,

uma

organização

real,

plutocratas que iriam aplicar as teses de Platão contra o entusiasmo e a cólera, criando uma unanimidade do comedimento. Deus é muito mais uma Lei que a totalidade ou o espírito formador do mundo. Assim como os astros seguem uma ordem matemática clara, assim

também

deve

fazer

a

legislação

humana. Há uma fusão... Justino Mártir, no primeiro século da Era Cristã, por exemplo, pensava que os platônicos haviam lido o Antigo Testamento... 78

Neste momento, lembrei-me do livro: - Eu tenho aqui um fio de cabelo de M.! Pode ser a prova de que foi envenenado com mercúrio! Dois dias depois, eu e meu amigo Notwen estávamos pescando quando ele parou, olhando para o horizonte. - Eles estão nos chamando – eu imaginei que se tratava de algum tipo de telepatia. Quando chegamos, a Torre estava convulsionada. Uma pequena multidão estava ao redor de um recém chegado. Eu demorei a perceber que se tratava de H. P. - Um incêndio ocorreu a menos de dez quilômetros daqui. Um avião caiu – disse Darla. Eu fiquei inquieto, mas, de fato, pensei, “isso não é problema da guarda florestal?” - Eles sabem que a única forma de nos destruir é acabar com nossa mata. Não podem nos localizar com precisão. Pode ser 79

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima um acidente, mas pode ser um ataque. Temos de estar preparados. O sábio aproximou-se de mim, um pouco inusitadamente para o público que lhe acolhia. - É bom vê-lo novamente... Tenho de dizer uma coisa: entrei em contato com uma amiga sua – dizendo isso, foi puxado por um bando de lobinhos e lobinhas que tietavam ao seu redor. Parece que H. P. havia construído uma espécie de sarcófago de ouro, dentro de uma parede

falsa,

evocando

o

com alçapão de Xamã,

pela

fuga

força

e, de

encantamentos e objetos mágicos, conseguiu criar um círculo energético que o manteve praticamente

ileso

quando

a

casa

foi

incendiada. Além disso, ele conseguira mais tarde se projetar para fora do corpo, segundo dissera, e tomar algumas providências. Os vampiros, afinal, não eram onipotentes.

80

Ela acabara de mover o ar com essas palavras, vimos pela janela uma rajada de fogo cortar o céu e cair tão próximo que podíamos ver as explosões e a fumaça no meio da floresta. −

Rápido,

uma

equipe!

Vamos

averiguar se trata-se de um ataque! Thomas, que falta você faz agora!

- Darla disse,

desconsolada. − Rapidamente

Fechem o campo - ela ordenou. alguns

homens

trouxeram

grandes hastes de metal, levantaram-nas e Darla evocou forças com um cântico estranho. Nada pareceu mudar no céu. A equipe se dirigiu à margem, eu fui junto. Quando chegamos no outro lado, outro avião caiu dentro do lago, a 300 metros da Torre. O pânico foi geral. Darla

decidiu

voltar imediatamente,

mas H. P. disse não estar certo de que o campo podia reter um ataque assim.

81

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima - A rapidez com que a força se converte em igual pode não ser suficiente. Subitamente ouvimos um estrondo, e uma

nuvem

escura

pareceu

vir

em

redemoinho sobre nós. Do céu descia uma assustadora figura em capa negra, Lorde Kevin, com um olhar brilhante e um sorriso gélido de triunfo. Ao seu redor, como um exército, outros vampiros. - Ferro em brasa será suficiente. Seus corpos ficarão em gaiolas suspensas, para que seus ossos fiquem séculos como aviso. Lembro-me de H. P. atirar alguma coisa no chão, uma fumaça vermelha esparramarse e depois sentir uma pancada na cabeça. Desacordei. A primeira coisa que vi foi Jonas. Fiquei perturbado, pensara que devia estar morto. Ele sorriu, aproximou-se de mim e encostou sua cabeça na minha. - Você voltou! 82

Eu

não

estava

entendendo

nada.

Estava cansado de saltar de uma realidade à outra, de dormir e acordar. Sentia-me fraco. - O trem em que você estava sofreu um acidente. Você foi o único sobrevivente. Felizmente, Lorde Kevin foi avisado e aqui está você. Eu estava na casa de meu pai. Tudo parecia tranqüilo e senti uma onda de conforto, que logo refutei. - Seu pai ainda não pode voltar, mas lhe enviou algum dinheiro e um presente, pelo correio. Eu sabia que tudo aquilo não podia ser verdade.

Eles

queriam

que

eu

me

acomodasse, seguisse vivendo sem fazer perguntas? -

O

médico

disse

que

você,

provavelmente, teve uma reação esquisoparanóide,

você

falava

dormindo,

sobre

monstros e outras loucuras. Está sendo medicado. 83

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima

As próximas semanas eu passei como um prisioneiro virtual, sempre acompanhado por meu amigo. Ele continuava belo e simpático, parecia ter esquecido tudo que vivemos. Ele me disse, depois de uma semana, enquanto caminhávamos no jardim. - Tenho uma péssima notícia. Você não passou no exame do pós-graduação. Não entendo, eu sou um bom leitor, mas você é genial. É estranho. Ouvi dizerem, certa vez: “Nem todos precisam de faculdade. A maioria pode se virar com pouca escolaridade”. O tempo passou. Aos poucos, Lorde Kevin, que nunca aparecia, foi dando ordens para que eu saísse, eu passei a ir à Biblioteca, ao cinema, mas sentia-me de fato perdido e melancólico.

E,

na

verdade,

me

sentia

espionado. Um dia, Jonas disse: - Quero ser político, vamos construir albergues para os pobres longe do centro 84

movimentado,

liberando

as

calçadas

de

pedintes e malandros. Eles são vítimas, mas temos de afastar tanta gente feia, suja e ignorante. - Você está falando em eugenia? - eu perguntei. Eu começava a duvidar que Darla, Nuriá, Orth ou Notwen existissem. Eu poderia ter mesmo um problema, em algum nível. Sentia minha alma doente. Caminhava pela multidão, solitário e terrivelmente confuso. De fato, parecia que eu apenas

sonhara,

um

sonho

longo

e

catastrófico que começava no Renascimento, ou antes. Parei em frente a um museu. O vidro espelhado mostrava outros vidros de lojas. Recebi uma mensagem no celular. “Encontre-me

sozinho

no

café Tat

19h.

lorena”. Quase não acreditei. Fazia tanto tempo!

85

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima Lá estava ela. Parecia mais madura e seus olhos negros faiscavam. Era uma das pessoas mais inteligentes que eu jamais conhecera.

Não

deu

muito

tempo

para

celebrações. Pedimos dois cafés. - Você deve ter muitas dúvidas. Deixeme contar, para começar, como decidi me envolver nisso. Comecei a sonhar, há algum tempo,

com

um

homem

de

aparência

excêntrica, uma espécie de mago. Como todo sonho, muitas vezes vejo imagens confusas, frases soltas, salto de um lugar para outro. Não sou um tipo de pessoa espiritual. Ele dizia ter se projetado no campo astral. Eu via como que a energia de todas as coisas, que brilhavam, parecia uma biblioteca. Começou dizendo que o empirismo foi uma espécie de tampão colocado sobre nosso desejo de explicar o mundo, útil como teoria local, mas perigoso como metafísica. A maioria das pessoas pensa que tudo já foi explicado. “As ninfas já partiram”, dizia. Uma nuvem negra 86

tomara as consciências, o vazio da existência seguiu ao mundo como máquina. Dizia que estamos criando um mundo aristocrático à semelhança da nobreza renascentista, de símbolos de poder e diferenciação social. E que existe uma ideologia por trás disso, uma fé e um poder. A morte da imaginação geraria a fome por excitação, drogas, obsessão, isolamento. Depois os sonhos ficaram mais nítidos, ele me disse ter morrido. Segundo ele, agora

podia

falar

diretamente

com

seu

guardião, ouvir pessoas, visitar lugares e dimensões.

Não

foi

fácil,

mas

acabei

acreditando nele. Passei estes meses todos lendo livros sobre os quais nunca imaginara me interessar, para manter minha sanidade, fazendo pesquisas e tentando seguir suas instruções. Encontrei um caderno. Tive acesso a muito dinheiro, a pessoas e dados. Ele me disse que você seria facilmente rastreado por telepatia, pois Lorde Kevin lhe conhecia muito melhor. Bem, vamos aos fatos. Jonas foi 87

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima contaminado.

Parece

que

os

vampiros,

realmente, usam o sangue para sustentar química e energéticamente um corpo na verdade morto. Preste atenção. Minha amiga colocou sua mão quente e morena sobre a minha. Senti um alívio instintivo por sua fidelidade antiga. - Vamos fazer um exame químico do cabelo que levas no bolso – de fato, ela me conhecia – e saberemos com certeza se o tal Colégio da Vigilância está por trás do assassinato de M. Podem estar ativos. Seu pai estava sendo chantageado. Lorde Kevin não se interessa tanto por dinheiro, mas adora destruir a vida. Adora ver os humanos perderem qualquer ideal. Para conseguir aprovação para o empreendimento imobiliário na terra indígena, encomendaram uma falsa licença

aos

congressistas.

Um

espião

contratado por H. P., infiltrado na polícia, descobriu que sim, o homem que trabalhava para seu pai descobriu o esquema e foi 88

envenenado. Adivinha: mercúrio! Mas o laudo desapareceu logo depois. - Lorde Kevin criou o Colégio da Vigilância? Os vampiros... - Pelo que se apurou, os seres da noite apenas se utilizaram dessa seita, inclusive os impressionando com poderes sobre-humanos, que fizeram do seu líder uma espécie de Conselheiro. Mas seu plano deve ser muito maior. O Pianista, também assassinado no último confronto... - Ele está morto? E Notwen? Todos eles? - Não sabemos. O Pianista, disse a H. P., no campo astral, que lhe contara sobre o Círculo e do Afastamento dos Deuses. Mas o sábio percebeu que estavam falando de Mercurius, o deus na matéria. Em um dos textos que o sábio me fez ver – e, sobre o qual tive de pesquisar, depois – apareciam dois leões de costas um para o outro, e, sobre suas costas, um disco solar. A inscrição dizia: 89

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima “Eu te conjuro também em nome do barqueiro Akerou”. Achei, finalmente, a mesma imagem em um livro. - Eu já vi este texto. Ele estava no baú de meu avô. - E também uma referência a um alquimista que pesquisou “Isis a Hórus”? E um monge? - Sim. O alquimista aparecia em uma escritura, o monge eu vi em minhas visões. - Então tudo se confirma. O primeiro é o Filósofo Natural e o segundo o Santo. Provavelmente vocês fazem parte de uma etnia

muito

antiga,

responsável

pela

transmissão dos textos orientais e gregos aos árabes e à Europa. - Harin! Meu avô usou essa palavra. E o tal Akerou? - Pode ser um nome para Aker. Esse deus representava “aquele momento” em que o Sol estava no ponto mais escuro do mundo dos 90

mortos,

portanto,

o

momento

do

renascimento. Era a Porta para o Além. Uma frase muito comum em textos da tradição hermética é “o leão gera o leão, a cevada gera a cevada”, talvez se referindo à recriação do Sol por si mesmo. Era comum no antigo Egito, plantar-se cevada em um pinheiro escavado simbolizando Osíris morto. Por isso, no primeiro século de nossa era, compreenderam a linguagem da ressurreição do Messias. Instintivamente, olhei para os lados, me sentia observado. Ela prosseguiu: - Em alguns casos Aker aparece como criador do mundo, aquele que ressuscita, representado pela serpente que come a própria cauda, como Okeanos, o rio que rodeia o mundo, que Homero chama de “progenitor dos deuses” e “origem e todas as coisas”. Entre os babilônios e egípcios a terra que emergia todos os anos leva a pensar que tudo

surgiu

da

água.

Liga-se

à

colina

primordial, que emergira de Nun, a vastidão aquática, e era simbolizada pela pirâmide. Se 91

Mercurius – Afonso Jr. Ferreira de Lima conhecermos a matéria básica do universo, por que não poderíamos recompor um corpo, já que essa matéria deve ser indivisível, imortal? - Do que você está falando? - Vamos procurar uma maneira de ressuscitar H. P., Ariel e Notwen. Lorena me abraçou com força e enfiou uma agulha no meu braço.

(Fim da parte primeira)

92

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