Só As Mães São Felizes 1 Cazuza

January 1, 2018 | Author: Diogo Assunção Bennert | Category: N/A
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“Só As Mães São Felizes”1 Cazuza

Palavras chaves: mãe-mulher – desejo da mãe – criança-falo – real do sexo

Sandra Conrado “A frase me deixou intrigado”, diz Agenor de Miranda Araújo Neto, conhecido por todos nós com o nome de Cazuza – poeta, letrista e cantor brasileiro, falecido em 1990. “No caso de Só As Mães são felizes”, diz Cazuza, “eu bobeei e mandei a letra certa (para a censura). Vetaram, é lógico. Não entenderam que era uma coisa moralista, pós Nelson Rodrigues. Usei imagens fortes para falar do meu preconceito com o fato de não permitir a nenhuma mãe do mundo encarar as barras que eu encarava. Era como se eu dissesse que as mães são para serem colocadas num altar, para serem veneradas (...) A música não tem nenhuma ligação com minha mãe, mas com gente que barbariza, que são santos e demônios ao mesmo tempo.”2 Introduzo meu trabalho destacando desse comentário de Cazuza “o fato de não ser permitido a nenhuma mãe do mundo encarar as barras que eu encarava”. Quando ele faz essa afirmação penso as barras como a própria barra que divide um sujeito, aquela que o inscreve na linguagem e, portanto, na lógica da castração. A mensagem que nos transmite Cazuza, nessa música, é a de que o desejo da mãe está no lugar daquilo que não é tocado pelo real do sexo, ou seja, está sem barra. Daí a idéia de que as mães são felizes: não quer saber do real da barra. O que é bem diferente quando ela toma o lugar de mulher. Quando escuto essa música percebo a sensibilidade do poeta, que em metáforas toca no real do sexo, um buraco/a mulher, do qual o sujeito que fala não pode saber, a não ser que invente, que faça sintoma. Na música Cazuza toca aí pelo viés da criança. Ele toca perguntando: “já reparam na inocência cruel das criancinhas, com seus comentários desconcertantes?”. Gostaria de situar esses dois pontos como orientador desse trabalho: a mãe ser feliz por não ser tocada no real do sexo e a criança que desconcerta. A criança, esse ser repleto de candura, nos diz, Freud, não é tão ingênua assim, pois que não está imune ao enfrentamento da existência desse buraco. Ela vem capturar 1

“Essa música foi feita a partir de um verso de Jack Kerouac (retirado do livro Scattered Peomas), uma frase de um poema dele e que me deixou muito intrigado” - Cazuza 2 “Preciso dizer que te amo”, ed, Globo, Lucinha Araújo (a letra encontra-se no final do trabalho)

isso a partir da diferença dos sexos e, na cena central dessa diferença, o que tira como conseqüência é a falta que se inscreve nos sujeitos. Quando Cazuza revela na música que a criança desconcerta, penso também no que diz Miller ao reportar o lugar da criança entre a mãe e a mulher. “A criança, divide, no sujeito feminino, a mãe e a mulher”.3 Lacan, nas Duas Notas sobre a Criança, se refere ao sintoma infantil como uma resposta ao que há de sintomático no par familiar. O sintoma da criança fala da verdade do casal ou do que há de sintomático entre um homem e uma mulher. Trago um caso clínico na tentativa de questionar não só a posição da criança enquanto objeto que divide a mãe, mas também como, no tratamento, isso vem se tornando possível. Trata-se de uma criança (6 anos) que chega pela demanda de fracasso escolar. A recusa de ler e escrever é colocada pela mãe como uma manifestação da criança, após um período de ausência dela para cuidar do filho mais velho acometido por uma grave doença. Do pai, presente nesta sessão, não ouvi uma palavra. As vezes que me dirigi a ele seu olhar voltava-se para a mãe que se encarregava das explicações. Na demanda da mãe havia uma solicitação muito enfatizada: “quero ir na raiz do problema”. Antes dessa recusa do escreve e ler, a mãe diz que Caio vivia bem e em harmonia com o irmão: “uma união só”. Numa outra entrevista Tereza, a mãe, relata que sua família é muito unida. A função da mãe de Tereza é unir não só os filhos, mas também os amigos. Como aposentada dedica-se a grupos de auto ajuda. Isso, Tereza acha muito bonito. Caio vem ao consultório pela primeira vez e seu trabalho se deu exclusivamente na retirada de todos os brinquedos do armário para, é lógico, espalhar tudo. Lógico porque, ao que pude observar, Caio ali estava barbarizando a união da mãe. Diante de suas recusas a me ajudar na arrumação, fiz uma proposta. Naquele dia meu trabalho seria arrumar e o dele pensar o que na sua vida estava tão espalhado, já que ali não se tratava de juntar, mas de se arrumar na vida. Na sessão seguinte Caio abre o armário, tira todos os brinquedos e os espalham numa proporção bem menor. Um dia encontra um livro e pede que eu leia a história, escuta, mas em pouco tempo se dispersa. Levanta e anda no consultório, vai e volta, faz círculos com o próprio corpo em torno de mim. Ao encerrar a sessão ele reivindica que eu termine a 3

Miller, J-A, “A Criança entre a mãe e a mulher”, Opção Lacaniana-21 – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 1998, p.08

história. Diante da demanda insistente de continuar a história, peço a ele que encontre uma solução para seu pedido, uma vez que quem acabou foi o tempo da sessão. Ele prontamente resolveu: “levo o livro para casa, leio e conto o fim da história para você”. Ironicamente, o que veio na sessão seguinte foi sua falta. A mãe liga para justificar o motivo: a chuva. Diante de minha insistência em querer ouvir Caio, ela reage com rispidez e cólera pela minha falta de compreensão. A conseqüência dessa intervenção custou uma certa cautela para que a transferência não se transformasse numa queda de braço, pois em vários telefonemas, as mãe se colocava as explicações da importância da empatia entre um analista e uma criança: a união? O encontro com pai se tornou muito difícil. Se eu oferecia o horário ele tinha plantão, e quando ele sugeria o horário, eu só esperava. Algumas vezes desmarcava em cima da hora por um motivo muito justificável. Na impossibilidade da presença desse pai no tratamento, passei a dedicar-me a este casal, mas apenas pelo que podia emergir da criança. E para minha surpresa o casal não se constituía entre o pai e a mãe, mas entre a mãe e o irmão. Se Caio leu o livro, não sei, mas o que se produziu a partir dai foi uma dedicação entusiasmada da atividade de escrita no quadro. A princípio palavras soltas, nomes que ele inventa, nomes sem sentido que pede para eu ler. Na leitura, as palavras sem sentido as fazem rir. Dá gargalhadas. Mas é sob o uso insistente do apagador que ele explica: “é que eu sou atrapalhado”. Significante, que ao meu ver, marca a questão sintomática dessa criança. Na sua atividade de escrita Caio escreve a palavra casa e em seguida um “m” muito mal feito. Falo de casamento, de casal, ele diz que não é isso, é casa. Se não há casal e casamento, passo a questionar de onde ele veio. Apesar de responder que essa era uma longa história, não sabia responder direito. “Não sabe explicar direito porque tem algo lhe atrapalhando”, foi minha intervenção. No desenho para explicar melhor, faz a mãe e dentro dela um bebê: ele. Do lado da mãe, está o irmão. O seu pai não aparece. Sobre como entrou na barriga da mãe explica: “Quem me colocou na barriga de minha mãe foi Jesus, eu cheguei em setembro e o doutor me tirou de lá”. Na única sessão que tive com o pai, João Marcio, ele trouxe praticamente a nomeação desse filho. O filho mais velho chama-se João – primeiro nome dele. O nome

de Caio foi dado por João em homenagem a um amiguinho, mas as letras de Caio estão todas em Marcio. O mito de Caio, parece está construído: ele foi salvo pelo irmão, daí o nome-dopai ser Jésus. Jesus não é pai, é irmão. É um irmão, a quem Deus-Pai escolhe para redimir outros irmãos, sob a condição de um sacrifício: morrer para salvar. Será que João precisou quase morrer para salvar Caio? Não estaria no desejo dessa criança a nomeação do pai um tanto quanto atrapalhada? É sobre João que recai o olhar da mãe, e nessa ausência Caio desconcerta. Esse é uma caso clínico que ainda transcorre. Os efeitos terapêuticos estão dando seus primeiros sinais Caio agora escreve na escola e não se recusa a ler. A questão que permanece é em relação à função paterna. Se o pai, com sua presença real, não se operou no desejo dessa mãe enquanto homem, deverá a criança sustentar-se num mito? Isso não pode atrapalhar a questão subjetiva de um sujeito? Na minha visão nada do sexual ainda tocou essa criança. O que tem surgido no momento para esse sujeito é uma fascinação pelos homens que cantam, mas cantam músicas e não mulheres. Um sujeito pode encontrar todos os significantes que traduzam o desejo da mãe. Com esse desejo ele pode fazer o que quiser: pode interpretá-lo, pode nomeá-lo, pode metaforizá-lo e, se quiser, pode até faracluí-lo. Talvez por isso a mãe seja, no desejo do sujeito, muito feliz. O que me pergunto nesse caso, apesar da angústia da mãe diante das recusas do filho ao saber, é onde se localiza a sua divisão para essa criança. Numa de suas sessões disse estar muito angustia, com uma sensação de falta enorme, não sabia o que fazer com o filho, apesar dele está indo bem na escola. Como ele estava bem na escola, algo parece ultrapassar, na mãe, o lugar dessa criança. Se antes o problema era a escola, agora são com os seus questionamentos, com o desejo de ter um quarto só seu, com a recusar em responder às suas perguntas. Retomando a questão da mãe apontaria aqui o ponto central de minha questão. Se “Só as mães são felizes” é do lugar em que o real da castração ainda não tomou seu ser, não tomou a sua forma de mulher. Quer dizer, a mãe seria isso que, excluída da castração, não participa do real da barra que limita sua devoração, tão confusa está com o objeto de sua fantasia infantil, aquele que Freud nos escreveu como sendo uma equação simbólica pênis-bebê: o falo. O que quer uma mulher, não se sabe, mas o falo vem de uma certa forma ocupar imaginariamente esse lugar vazio, vazio que permanecendo, vai-se deslizando

metonimicamente. Para Lacan, tudo indica que o falo, enquanto objeto imaginário é algo que ultrapassa a criança, já que também vem instituído pela equação simbólica. O que está entre o pênis e o bebê, o bebê e o homem, para quem a mulher destinará sua futura procura, é o falo. Portanto, na análise da criança é muito importante localizar em que medida a criança ocupa o lugar do desejo da mãe, mas também em que medida a criança, ela em si, possa ser interrogada para além do que deseja desconcertar. Quando uma criança barbariza, quando vira o demoniozinho, para usar aqui os significantes de Cazuza, ela está se recusando a ocupar esse lugar insuportável do desejo da mãe. No mundo contemporâneo a feminilização ou porque não dizer, a facilização da mulher vem desalojando a cada dia a esperança fálica na direção do homem. Nessa nova configuração, o que temos é a queda vertiginosa do viril e um não saber-fazer com o resto, aquele outrora transformado em ideal. Hoje não se sabe mais o que fazer com o objeto a! Penso que a questão dessa criança em relação a mãe caminha por aí. A mãe poderia está satisfeita com os resultados escolares, foi o que demandou, mas não, ela anda angustiada, pois algum resto parece insistir em se inscrever. O que eu pontuaria como esse resto é o que está na demanda de ir na raiz, ou em outros termos, o que na demanda frustrou-se ao saber que o filho, para dar conta da origem, para dar conta do pai, construiu um mito. Um saber, que embora atrapalhado, pode ser a via da qual se serve para construir, na transferência, um saber sobre real do sexo que já o inquieta. João Pessoa, 30 de setembro de 2005

Bibliografia ARAUJO, L. Cazuza Preciso Dizer que Te Amo (2001), Texto: Regina Echeverria, ed. Globo, São Paulo, 2001 FREUD, S. Sexualidade Feminina (1931) FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro. Imago, 1969a, v. XXI, (1901-1905).

LACAN, J. O seminário: livro 04 A Relação de Objeto (1956-1957). Tradução Dulce Duque Estrada, Rio de Janeiro,1995 ___. Duas notas sobre a Criança. Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, n. 21, abr. 1998 MILLER, Jaques-Alain. A Criança entre a mãe e a mulher. Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, n. 21, abr. 1998

* Letra da Música referida acima Cazuza / Roberto Frejat

Com seus comentários desconcertantes? Adivinham tudo E sabem que a vida é bela

Você nunca varou A Duvivier às 5 Nem levou um susto saindo do Val Improviso Era quase meio-dia No lado escuro da vida

Você nunca sonhou Ser currada por animais Nem transou com cadáveres? Nunca traiu teu melhor amigo Nem quis comer a tua mãe?

Só as mães são felizes

Nunca viu Lou Reed "Walking on the Wild Side" Nem Melodia transvirado Rezando pelo Estácio Nunca viu Allen Ginsberg Pagando michê no Alaska Nem Rimbaud pelas tantas Negociando escravas brancas Você nunca ouviu falar em maldição Nunca viu um milagre Nunca chorou sozinha num banheiro sujo Nem nunca quis ver a face de Deus Já freqüentei grandes festas Nos endereços mais quentes Tomei champanhe e cicuta Com comentários inteligentes Mais tristes que os de uma puta No Barbarella às 15 pras 7 Reparou como os velhos Vão perdendo a esperança Com seus bichinhos de estimação e plantas? Já viveram tudo E sabem que a vida é bela Reparou na inocência Cruel das criancinhas

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