UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAI CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA MARTA MARIA HOSS LELLIS. Cinema e Sonho numa Perspectiva Psicanalítica

July 5, 2016 | Author: Catarina Veiga Bennert | Category: N/A
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAI CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA

MARTA MARIA HOSS LELLIS

Cinema e Sonho numa Perspectiva Psicanalítica

Biguaçu 2011

MARTA MARIA HOSS LELLIS

Cinema e Sonho numa Perspectiva Psicanalítica

Monografia apresentada como requisito para aprovação na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso, oferecida pelo curso de Psicologia da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Orientadora: Profª MSc. Maria Suzete Salib

Biguaçu 2011

MARTA MARIA HOSS LELLIS

Cinema e o Sonho numa Perspectiva Psicanalítica

O presente Trabalho de Conclusão de Curso foi considerado aprovado, atendendo os requisitos parciais para obter o grau de Bacharel em Psicologia na Universidade do Vale do Itajaí no curso de Psicologia.

Biguaçu, 2011 Banca Examinadora

___________________________________ Profª. MSc. Maria Suzete Salib - Orientadora

________________________________ Profª MSc. Ivânia Jann Luna - Membro

_____________________________________________ Prof. MsC. Henry Dario Cunha Ramirez - Membro

RESUMO A presente pesquisa investigou a relação entre as linguagens do cinema e do sonho sob a perspectiva psicanalítica, a partir de fontes bibliográficas fornecidas por analistas, pensadores e estudiosos de cinema. O objetivo geral dessa pesquisa foi analisar, à luz da teoria psicanalítica, a relação entre as linguagens do cinema e do sonho, tendo como objetivos específicos a descrição dos aspectos históricos do cinema e seus conceitos; a descrição do conceito de sonho e suas características e a identificação, na literatura especializada, dos diferentes pontos de vista sobre a relação do cinema e do sonho e suas linguagens. Adotou-se como fonte de dados as publicações psicanalíticas na Língua Portuguesa, teses, artigos e dissertações publicadas no período de 2000 a 2010, que abordam a temática do sonho e suas leis, bem como a literatura clássica que contempla os aspectos históricos do cinema e os conceitos de sonho. Para a análise e interpretação de dados desta pesquisa qualitativa, foi utilizada a análise de conteúdo temática, onde foram destacados os núcleos de sentido que compõe a linguagem. Foram eleitas três temáticas: 1) a narrativa clássica 2) a metalinguagem, 3) a narrativa surrealista e a narrativa do expressionismo alemão. Como resultado da análise, podemos pressupor que a linguagem do cinema e do sonho pode ser utilizada como ferramenta auxiliar para o sujeito na compreensão de questões que atravessam a sua vida, trabalhando com a imaginação e a realidade, sensibilizando, provocando reações, emoções e afetos.

Palavras-chave: Psicanálise. Cinema. Sonho. Linguagem.

SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO.............................................................................................6

2

APRESENTAÇÃO DOS DADOS ...............................................................8

2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITOS DE CINEMA......................... 9 2.2

O SONHO E SUAS CARACTERÍSTICAS................................................ 18

2.3

RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM DO CINEMA E DO SONHO............ 25

2.4

METODOLOGIA .........................................................................................31

2.4.1 Coleta de dados............................................................................................31 2.4.2 Procedimentos de Análise de Dados ..........................................................32 2.5

DISCUSSÃO E ANÁLISE DE DADOS.......................................................34

3

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 43

REFERÊNCIAS................................................................................................... 47

6

1 INTRODUÇÃO

A psicanálise e o cinema têm muito em comum. A psicanálise é contemporânea do cinema, ambos surgiram no final do século XIX, causaram impacto e constroem-se na singularidade do sujeito. Já transcorreram mais de cem anos de encontros e afinidades entre o poder das palavras que movimentam sujeitos no processo analítico e a arte da imagem em movimento. Assistir a um filme é semelhante a sonhar acordado e, segundo Freud, o sonho é a estrada real para o conhecimento do inconsciente. Froemming (2002) atenta que os pacientes falam, no decurso de sua cadeia associativa, além de sonhos, de filmes que viram e das impressões que lhes causaram determinadas cenas. Expressões “era como num sonho” e “era como num filme” são recorrentes e parecem parte de uma experiência vivida. O cinema joga com leis da linguagem que Freud descreve como mecanismos fundamentais na elaboração onírica: condensação e deslocamento e a consideração à figurabilidade - transformação das ideias em imagens visuais. Recorrendo a Freud e Lacan a respeito da elaboração onírica, Magalhães (2008) tenta aproximar cinema e sonho a partir das questões suscitadas pelos sonhos de angústia e pelo pesadelo, pois alguns filmes nos fazem sonhar para proteger nosso sono e alguns nos acordam, despertam e instigam. A autora também considera possível a aproximação entre cinema e sonho a partir de filmes que, como obra de arte, nos olham, nos perscrutam e interrogam. O cinema como obra artística, envolve as experiências do autor, dos atores, do diretor, o processo criativo, além da história que atende aos interesses culturais, sociais, à satisfação pulsional do sujeito. Através da imagem, o cinema inscreve-se na subjetividade do sujeito, visto que alia a palavra com a imagem, produzindo um obra ficcional que nos leva ao sonho, ao devaneio, às reflexões e ao entretenimento (SOARES, 2007). Zusman (1994) defende a ideia de que nada se parece mais com o funcionamento da mente que o cinema, que articula a imagem com o movimento, conferindo-lhes um sentido dinâmico e uma imediata apreensão. Para o autor, o cinema amplia a capacidade de sonhar do ser humano, instalando o recurso pictográfico, incorporando o diálogo lido ou falado e dá um salto gigantesco na medida que permite objetivar a mais subjetiva das experiências humanas,

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o sonho. O cinema não se limita a um objeto de interesse da crítica cultural, mas também adequa-se como um recurso didático bastante utilizado em salas de aula, seja para discutir ou exemplificar problemas

emocionais postos em relevo em determinada produção

cinematográfica, ou como forma de produção de conhecimento, de cultura, de entretenimento e mesmo para fazer reflexões críticas. Agrega-se a isto o fato do cinema ser um meio de expressão e de circulação do conhecimento, contribuindo para difundir valores e ideias. Partindo do pressuposto de que existe alguma relação, do ponto de vista da psicanálise, entre as linguagens do cinema e do sonho, o problema de pesquisa é a investigação desta possível relação, recorrendo para tal à bibliografia especializada. A pesquisa adota como recorte teórico textos (artigos, teses, dissertações) publicados no período de 2000 a 2010, e a literatura clássica que aborda os temas cinema e sonho, trazendo os pontos de vista de analistas, pensadores e estudiosos do cinema. A pesquisa tem como objetivo geral analisar, à luz da teoria psicanalítica, a relação entre as linguagens do cinema e do sonho. Para alcançar esse objetivo, foram traçados os seguintes objetivos específicos: descrever os aspectos históricos do cinema e seus conceitos; descrever o conceito de sonho e suas características e identificar na literatura especializada, os diferentes pontos de vista sobre a relação do cinema e do sonho e suas linguagens. Diante da possibilidade de utilização da linguagem do cinema e do sonho como ferramenta que auxilie o sujeito na compreensão de questões que perpassam a sua vida, trabalhando com a imaginação e a realidade, sensibilizando, provocando reações, emoções e afetos nos sujeitos, justifica-se a relevância social desta pesquisa. O levantamento do que já foi produzido e divulgado -conforme recorte teórico adotado-, sobre a linguagem do cinema e do sonho, os diferentes pontos de vista reunidos num único trabalho e a análise dos dados da pesquisa que resultou nessa produção escrita, estarão disponíveis para pesquisas futuras, justificando assim sua relevância acadêmica e científica. O interesse nas artes, especialmente pelo cinema, que seduz e traz reflexões acerca da imagem, da linguagem, do sujeito e da vida, traduz um olhar sobre a construção da subjetividade, pois que essa é a temática central para a profissão escolhida pela acadêmica e pesquisadora, justificando a relevância pessoal.

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2 APRESENTAÇÃO DOS DADOS

A invenção do cinema é contemporânea à criação da psicanálise por Freud e, embora ele mesmo não tenha se ocupado dessa nova arte, não se pode ignorar que ele concedeu lugar privilegiado em sua obra à analogia entre aparelho ótico e o aparelho psíquico. A sincronia entre cinema e psicanálise indica a existência de um campo propício ao surgimento de ambos e se caracteriza por uma abordagem da imagem e do sujeito, marcada pela descoberta da fotografia e suas consequências histórico-culturais. Assim, o cinema e a psicanálise vêm, cada qual à sua maneira, responder ao enigma da relação entre a imagem e o sujeito contemporâneo (TÂNIA RIVERA, 2007). Segundo Ferreira Netto (2010), a psicanálise tirou grande proveito das conquistas culturais existentes na época de sua descoberta, mas também mostrou-se generosa, oferecendo à cultura novas contribuições a respeito do psiquismo humano. Sua teoria serviu de base de enriquecimento para a produção cultural e particularmente para o cinema. À medida que a teoria freudiana foi se desenvolvendo, o cinema a incluía em seus roteiros e em sua reflexão. Há teóricos, como Bautista (2003), que superestimam a contribuição que a psicanálise trouxe ao campo das artes, ao afirmar que através dos estudos desenvolvidos por Freud, a arte, tornou-se uma via de acesso ao inconsciente do artista. A teoria da sublimação elaborada por Freud, é um processo para explicar as atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontram o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreve como atividades de sublimação a atividade artística e a investigação intelectual, as chamadas “atividades superiores”. Segundo o entendimento de Freud (1911) a arte permite uma reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Uma produção artística permite que outras pessoas, além de quem a produz, compartilhem da mesma satisfação, tornando-a assim real e, portanto, legitimando a fantasia. Um artista é originariamente um homem que se afasta da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação instintual que ela a princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia. Porém, encontra o caminho de volta deste mundo de fantasia para a realidade, usando dons especiais que transformam suas fantasias em verdades de um novo

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tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade. O princípio do prazer é um dos dois princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento mental. A atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. É um princípio econômico na medida em que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades de excitação e o prazer à sua redução (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). O outro princípio é o da realidade, que forma par com o princípio do prazer, modificando-o, na medida em que consegue impor-se como princípio regulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior. Do ponto de vista econômico, o princípio da realidade corresponde a uma transformação de energia livre em energia ligada (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Como no sonho, a fantasia expressa a realização de um desejo, permitindo fornecer ao sujeito uma satisfação independente da realidade. Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a fantasia pode apresentar-se sob diversas modalidades: fantasias conscientes ou sonhos diurnos; fantasias inconscientes como as que a análise revela, como estruturas subjacentes a um conteúdo manifesto ou fantasias originárias. Freud destaca em sua obra “O Mal Estar na Civilização” que a vida é experimentada pelo homem como árdua, principalmente por submetê-lo a sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. Para melhor suportá-la vale tudo, inclusive aderir às medidas paliativas, aquelas que proporcionam uma substituição na satisfação e que trazem alento ao homem moderno. A arte pode ser considerada uma destas medidas, pois sendo ilusória, o destino pouco pode fazer contra o homem (BAUTISTA, 2003).

2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITOS DE CINEMA

No final do século XIX e início do século XX o mundo é marcado pela revolução científico-tecnológica. As invenções possibilitaram o desenvolvimento e formaram um mundo com condições de economia globalizada, baseada nas grandes produções e grandes consumos de produtos industrializados. Teve início a modificação de estrutura física e cultural das

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cidades, o ritmo de vida das pessoas se acelerou, surgindo as grandes metrópoles. Este mundo novo, de ideias novas, modificou as elites, com um pensamento moderno, científico e cosmopolita. Neste período, em quase toda Europa e nos Estados Unidos, eram realizadas pesquisas para a produção de imagens em movimento. É a época do triunfo da burguesia, ela está transformando a produção, as relações de trabalho, a sociedade, com a Revolução Industrial. A burguesia desenvolve máquinas e técnicas que facilitarão seu processo de dominação, a acumulação de capital, como também criarão uma cultura à sua imagem. Este universo cultural expressará o triunfo da burguesia impondo às sociedades um processo de dominação cultural, ideológico e estético (BERNARDET, 1985). É neste contexto histórico, marcado pelas grandes transformações estruturais econômicas e culturais que mudaram o ritmo da sociedade, que surge em Paris, em 1895, o cinema. Numa pequena sala do subsolo do Grand Café, acontecia a projeção de um pequeno filme, que ficaria para a história, intitulado "L'Arrivée du Train em Gare" (A chegada do Comboio à Estação), dos irmãos Lumière. Eles são os criadores da base realista do Cinema que consistia em um meio de mostrar "o que se vê", para dar movimento às coisas paradas. Já o ilusionista George Méliès depois de assistir ao primeiro filme, constrói a sua própria máquina. Preferiu voltar os olhos para dentro, para o mundo interior, da magia, das fantasias humanas, das pessoas. É o cinema de arte, de ficção, o cinema como fantasia lúdica. Em 1908, o norte-americano David Griffith torna-se o responsável pela criação de uma gramática cinematográfica, a narrativa clássica. Griffith foi o primeiro cineasta a utilizar nos filmes os close-ups, plano e contra plano, a montagem paralela, os movimentos de câmera, a inserção de detalhes, criando uma dramaticidade às imagens. Com as contribuições técnicas de Griffith, o cinema passou a ser visto como um meio de comunicação, uma linguagem que tem suas especificidades. Suas técnicas influenciaram os filmes produzidos desde então (CURSINO, 2011). Nos anos 20 e 30, surgem vários movimentos pela Europa. O movimento que ficou conhecido como “expressionismo alemão” apareceu como um protesto à cultura burguesa então vigente, numa Alemanha que saíra de uma guerra e se preparava para outra. Este movimento era fortemente influenciado pela literatura e pelas artes plásticas, os filmes contavam histórias fantásticas, e as imagens que mostravam tinham pouco a ver com a realidade cotidiana (BERNARDET, 1985).

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Cardinal (1988) apud Cánepa (2006) afirma que o signo expressionista convida o espectador a experimentar um contato direto com o sentimento que gera a obra. A revelação de impulsos criativos brotam de um nível primitivo da vida emocional, fazendo com que o expressionismo seja identificado com uma tendência atemporal, ou seja, pode se manifestar a qualquer tempo, cultura ou em qualquer parte do mundo. Cardinal define o expressionismo como sendo um “princípio de alinhamento da criatividade com os impulsos emocionais e instintivos do ser humano”. (p. 56) Merten (2005) apud Rossini (2007) afirma que o expressionismo é uma forma poética de expressão visual e que os expressionistas não objetivavam representar uma realidade puramente concreta, mas interessavam-se mais pelas emoções e reações subjetivas, que objetos e eventos suscitavam no artista os quais ele tratava de expressar por meio da distorção, do exagero e do simbolismo. As principais características da narrativa do expressionismo alemão, segundo Rossini (2007) são a predominância do caos e da descontinuidade, não existindo uma transparência narrativa; ausência da noção de espaço e de tempo; as histórias têm monstros, vampiros, personagens caricatas e esquisitas, exemplo disso é o filme Nosferatu: uma sinfonia de horrores; sua cinematografia aborda questões psicológicas e sociais com maior profundidade. A escola soviética fundamentou seu trabalho na seleção de imagens na filmagem e na montagem, com grande valorização da montagem. Para ela, montagem não é reconstrução do real imediato, mas construção de uma nova realidade, uma realidade cinematográfica. Para Eisenstein, cineasta expoente dessa escola, de duas imagens sempre nasce uma terceira significação. Ele via a estrutura do pensamento dialético em três fases: a tese, a antítese e a síntese. A montagem não reproduz o real, ela é criadora. Já que a estrutura da montagem é a estrutura do pensamento, o cinema não terá por que se limitar a contar estórias, ele poderá produzir ideias (BERNARDET, 1985). A Avant Garde Francesa dos anos 20, paralela da escola alemã, também tentou escapar à narrativa clássica. Era o aspecto literário de que o cinema precisava se livrar para tornar-se ”puro", para encontrar a sua forma específica. Os filmes procuram expressar sentimentos, estados de espírito, ambientes, aspirações, nostalgias, associações de ideias, através de sugestões criadas pelos enquadramentos e pela montagem, pelo ritmo. O surrealismo cinematográfico atinge sua melhor expressão em dois filmes de Luis Buñuel, Cão andaluz (1928) e A idade do ouro (1930). Suas imagens choque expressam pulsões, desejos ainda não

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racionalizados, e um imenso ódio pela ordem burguesa (BERNARDET, 1985). Sobre o surrealismo surgido em Paris, em 1924, Costa (2003) afirma que este movimento não só antecipou, mas em parte realizou um novo tipo de cinema, que se interessou pelo fato cinematográfico, pelas analogias que existem entre o cinema e o sonho, entre os mecanismos da visão fílmica e os mecanismos do inconsciente. André Breton (1924), poeta e teórico do surrealismo, no “Manifesto do Surrealismo”, define surrealismo como sendo: um automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. [...] O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associação desprezadas antes dela, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida (BRETON, 1924, p.10).

Maurice Nadeau (1958) apud Santos (2002) afirma que o surrealismo é concebido por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio de conhecimento, em particular de continentes que até então não haviam sido explorados, como o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados alucinatórios, em suma, o oposto do que se apresenta como um cenário lógico. Fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Freud, pela filosofia de Hegel, procedido do Dadaísmo de Tristan Tzara, o surrealismo proclama a prevalência do sonho, das pulsões, do desejo, despreza a lógica e enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Segundo Mendonça (2008), este movimento é um herdeiro direto da linguagem simbolista e da revolução romântica, promotor da explosão dos sentidos e seguidor da livre associação das ideias e do inconsciente, sob o ditado do desejo. A relação entre o cinema e o surrealismo foi imediata. O cinema foi um meio perfeito de expressar os valores fundamentais do movimento, como negar a estética e os valores estabelecidos de uma sociedade burguesa e burocrática. A narrativa cinematográfica não obedecia a lógica da narrativa clássica, cultivando as rupturas, o onírico, as imagens mentais, as visões provocantes, a atração pelo mistério, pelo sinistro. O discurso dos filmes surrealistas possibilitava imitar a articulação dos sonhos, a lógica de uma experiência que era o preenchimento de um desejo (FERRARAZ, 2001).

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Na sequência dos movimentos cinematográficos ou fases da história do cinema, aquele iniciado após a Segunda Guerra é dominado de “Cinema Novo”. Segundo Bernardet (1985), o cinema novo é considerado um movimento de renovação, que se dá ao nível da temática, da linguagem, das preocupações sociais e das relações com o público. Na Itália, o movimento neo realista, um expoente deste Cinema Novo, caracteriza-se pelo melodrama e documento da realidade, revelando um cinema que deseja expressar a tragédia do pós-guerra. Este movimento interessa-se pelas questões existenciais de seus personagens, vinculando-se ao documentário, realizando filmagens externas em cenários naturais, com a utilização de atores não profissionais. Aborda temas sociais e as personagens centrais são gente do povo. Há uma maior preocupação com a realidade e um aumento da liberdade narrativa, que torna-se não linear, utilizando-se para tanto a metalinguagem (MORICONI, 2007). No Brasil, este tipo de filmes e ideias encontram terrenos receptivos num grupo que procurava encaminhar-se para produções de baixo custo e uma estética e temática expressivas da situação de subdesenvolvimento do país. Um cinema voltado para a questão social e os oprimidos e que fosse capaz de fazer a crítica desse sistema social. O neo realismo e o aproveitamento ideológico que foi feito dele estão presentes em filmes como Rio, Quarenta Graus (1955) (BERNARDET, 1985). Outro movimento que é considerado de ruptura e que colaborou para a construção do cinema atual foi a nouvelle vague. O cinema francês dos anos 50 é considerado um "cinema de qualidade", comercial, acadêmico e prestigiado. A nouvelle vague volta-se pouco para a situação social da França, interessando-se pelas questões existenciais de seus personagens. A partir dos anos 60, em muitos países surgem Cinemas Novos (BERNARDET, 1985). No que se refere à narrativa, Manevy apud Mascarello (2006) os filmes da nouvelle vague fazem um uso inventivo de voice over e do flash back, explicitando intervenções sonoras ou visuais, suas narrativas são não lineares, não estruturadas, são fragmentadas. A nouvelle vague apresenta a figura do narrador e a produção desse período traz um rudimento de futuras experiências de metalinguagem, no qual o cinema filma o próprio cinema. Sobre a narrativa utilizada pelo neo realismo e pela nouvelle vague, aparece o uso da metalinguagem. O termo metalinguagem, segundo Chalub (1988) apud Pereira (2007) é muito amplo, pois se refere a toda leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de signos, de linguagem. Conceitualmente, é uma linguagem acerca de linguagem, que se

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refere a tudo desde que o homem é um animal simbólico, o ser da fala. Ana Lúcia Andrade (1999) apud Pereira (2007), afirma que a metalinguagem pode se manifestar no cinema através de filmes com ênfase na temática, ou seja, aqueles que tratam de biografia dos atores, diretores ou pessoas ligadas à indústria do cinema. Uma outra forma de metalinguagem no cinema ocorre quando num filme o discurso é explicitado em sua própria estrutura, é o recurso do “filme dentro do filme”. A autora aponta que o discurso metalinguístico dá ao espectador a ilusão de participação na construção da narrativa e cria a sensação de que o espectador está participando da trama. Um bom exemplo de metalinguagem em sua estrutura, é o filme “A Rosa Púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen, onde acontecem duas narrativas que se relacionam diretamente, é um “filme dentro do filme”. A mesma autora aponta que pode verificar-se nesta obra um jogo metalinguístico, em que o filme e o “filme dentro do filme” estão intimamente ligados na trama, onde acontecem duas narrativas que se relacionam diretamente. Há neste filme um diálogo entre a ficção e a realidade, entre o filme que os espectadores reais veem e o filme que os personagens da ficção veem. O recurso da metalinguagem funciona no sentido de abranger a cumplicidade do público com relação à magia do cinema, possibilitando ao espectador se sentir dentro do filme, já que a personagem principal entra na tela e vive um romance que só pode haver no mundo do cinema. Feita a exposição sobre o nascimento do cinema e seus movimentos mais representativos, a seguir será empreendida a explanação acerca da definição de cinema. Há na literatura muitas definições para cinema, são tantas as respostas quantos são os pontos de vista de cada observador. Buscamos descrever a seguir, as definições dos principais teóricos do cinema, analistas e estudiosos de cinema. Sobre o fenômeno cinematográfico, Godoy (2002) afirma que este pode ser classificado em grupamentos de pensamentos que interagem das mais diferentes formas: um grupo de teóricos dedicados a um pensamento realista, onde se destacam Andrè Bazin e Siegfried Kracauer; um grupo de teóricos identificados com uma tradição mais formalista, representado por Hugo Munsterberg, Rudolf Arnhein e Sergei Einsenstein; os investigadores dedicados a discutir o fenômeno de forma mais científica e acadêmica, como Jean Mitry e Christian Metz; e ainda um outro grupo, que está voltado à uma crítica ideológica desenvolvida na década de 60 pelas revistas francesas Cahiers de Cinema e Cinethique. O cinema é assunto amplo e tem várias vias de acesso. Segundo Metz (1972) o cinema

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é antes de mais nada um fato, e como tal ele coloca problemas para a psicologia da percepção e do conhecimento, para a estética teórica, para a sociologia dos públicos, para a semiologia geral. Mais do que romance, mais do que peça de teatro, mais do que o quadro do pintor, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real, desencadeando no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo de participação conquistando de imediato uma espécie de credibilidade. Sobre a linguagem do cinema, o autor afirma que o cinema pode ser considerado como tal, na medida em que ordena elementos significativos no seio de combinações reguladas, diferentes daquelas praticadas pelos nossos idiomas e que tampouco reproduzem os conjuntos perceptivos oferecidos pela realidade. Sobre a problemática artística presente no cinema afirma que “a especificidade do cinema é a presença de uma linguagem que quer se tornar arte no seio de uma arte que, por sua vez, quer se tornar linguagem” (METZ, 1972, p.76). O cinema, segundo Mitry apud Andrew (2002) é percepção que se torna uma linguagem. Não a linguagem que falamos, mas a linguagem da arte ou da poesia. O cineasta dá à realidade uma língua, mas a língua que fala as palavras do cineasta. Mitry insiste em diferenciar a linguagem do cinema da concepção ordinária de linguagem, “para analisar o significado fílmico é melhor começar no nível da poética que no da linguística”. (p. 168) Considerado o primeiro teórico do cinema, Munsterberg (1916) apud Xavier (1983) afirma que o cinema obedece às leis da mente e não às do mundo exterior. Destaca o papel da memória e da imaginação na arte do cinema, que podem ser ricos e significativos. A tela pode refletir não apenas o produto de nossas lembranças ou de nossa imaginação, mas a própria mente dos personagens. A memória se relaciona com o passado, a expectativa e a imaginação com o futuro, mas na tentativa de perceber a situação a mente não se interessa pelo que aconteceu ou pode acontecer depois, ela se ocupa dos acontecimentos que ocorrem simultaneamente em outro lugares. André Bazin, crítico e teórico do cinema, de um pensamento com ênfase na realidade objetiva, afirma que apesar de ter levado décadas para que o cinema se transformasse de mudo em falado, e mais um grande período para que fosse revolucionado pelo Tecnicolor, desde o princípio, já fixava o seu olhar no ideal de “perfeição imitativa” que só muito depois iria atingir: O cinema é um fenômeno idealista. A ideia que os homens fizeram dele já estava armada em seu cérebro, como no céu platônico, e o que nos admira é mais a resistência tenaz da matéria à ideia, do que as sugestões da técnica à imaginação do pesquisador. (...) Explicaríamos bem mal a descoberta do cinema partindo das

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descobertas técnicas que o permitiram (BAZIN, 1991, p. 27).

Eisenstein apud Andrew (2002) concebia o cinema como arte e como tal estava reservada para aqueles tipos de efeitos e mensagens não disponíveis no discurso comum. Para este crítico formalista, a arte visa antes de tudo as emoções e depois a razão. A arte causa um efeito que não é disponível à linguagem comum. A arte é semelhante aos outros veículos retóricos, mas de uma ordem superior, capaz de transmitir mensagens completas e de envolver o ser humano. Pode-se dizer que Eisenstein afirmava que o cinema é a maior arma de propaganda possível, embora nunca tenha discutido propaganda. Afirmava que o filme existe para levar o conhecimento a um público mais amplo e deixar seu poder trabalhar no mundo. Buñuel apud Carriére (2006), em uma Conferência na Universidade do México em 1953, compara o cinema a uma arma magnífica e perigosa nas mãos de um espírito livre e é também: [...] o mais admirável instrumento conhecido para expressar o mundo dos sonhos, da emoção e do instinto. O mecanismo cria a imagem cinematográfica. É a forma de expressão humana que mais se assemelha ao trabalho da mente durante o sono. Um filme pode ser uma imitação involuntária do sonho. Como num sonho, as imagens aparecem e desaparecem em dissoluções e o tempo e o espaço se tornam flexíveis. É o momento em que a incursão noturna do inconsciente começa nas telas e nas profundezas do ser humano. Como no sonho, as imagens aparecem e desaparecem como em dissoluções, e o tempo e o espaço se tornam flexíveis, contraindo-se ou se expandindo a vontade (BUÑUEL, 2006, p.84).

Baudry (1970) apud Xavier (1983) compara o cinema a uma espécie de aparelho psíquico substitutivo respondendo a um modelo de ideologia dominante. O sistema repressivo consiste em impedir os desvios ou a denúncia ativa deste modelo. O mecanismo ideológico em ação no cinema se concentra na relação da câmara com o sujeito. O autor questiona se a câmara permitirá ao sujeito se constituir e se apresentar num modo particular de reflexão especular. O importante é se a identificação é possível, delineando-se então a função preenchida pelo cinema, como suporte e instrumento de ideologia, e esta passa a constituir o sujeito pela ilusão de ocupar um lugar central. Para Benjamin (1975) “o cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” (p.12). O autor compara a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira a imagem se move, a segunda, não. A tela com o quadro convida o espectador à contemplação, podendo, diante dela, abandonar-se às suas associações. Já diante do filme, isso não é possível. A associação de ideias do espectador é interrompida com a mudança da

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imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema, como toda forma de arte, segundo Mascarello (2006) pode nos fornecer uma imagem necessária, imagem não como a representação de um estado de coisas, mas como câmara de produção da realidade por vir, como abertura para um mundo possível. Dessas aproximações e relações, podem ser detectadas outras formas de percepção, plástica e cinética, para a emergência de uma contemporaneidade múltipla e aberta. Munsterberg (1916) apud Xavier (1983) sustenta que o principal objetivo do cinema deve ser o de retratar a emoção. Os personagens são sujeitos de experiências emocionais: a alegria e a dor, a esperança e o medo, o amor e o ódio, a gratidão e a inveja, a solidariedade e a malícia conferem ao filme um significado e valor. A arte da câmera poderá despertar na mente do espectador as particularidades de muitos comportamentos e emoções que são impossíveis de exprimir sem o recurso das palavras. Coutinho (2004) propõe ver o cinema como uma linguagem e cada filme em particular, como a expressão de um espaço-tempo, como uma alegoria de um espaço-tempo. Os filmes carregam em si um momento na história, uma temporalidade, embora aconteçam sempre no tempo presente da projeção. A autora propõe a leitura do cinema como arte, e como tal precisa ser pensada como uma dimensão da experiência humana transcendendo os limites racionais. Ao colocar imagens e sons em movimento, o cinema faz aflorar as emoções, percebidas por meio dos sentidos, todos os sentidos, embora tocados pela visão e pela audição. O cinema propõe outras formas de percepção e, portanto, de construção de subjetividade. Bernardet (1985) afirma que o cinema entra na vida dos sujeitos como um dos elementos que compõem a sua relação com o mundo, que o cinema não determina totalmente essa relação, pois o espectador não é necessariamente passivo diante do cinema. O autor afirma que há formas de relação que não usam a linguagem racional e crítica dos cientistas, pois no ato de ver e assimilar um filme, o público transforma-o, interpreta-o, em função de suas vivências, inquietações e aspirações. Uma obra de arte, como um filme, não é fruto de uma só pessoa, representa o anseio coletivo e cultural. Para Ferreira (2010), os filmes são expressões de desejos inconscientes de um povo num determinado momento da história, formando uma mitologia moderna. São também a válvula de escape de nossas angústias, nossos medos, enfim, são a nossa catarse.

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2.2 O SONHO E SUAS CARACTERÍSTICAS

Antes de Freud, os sonhos eram considerados apenas símbolos, analisados como se fossem premonições ou manifestações divinas. Até meados do século XIX, os sonhos eram interpretados como uma previsão do futuro, com grande credibilidade nas religiões judaico cristãs. Filósofos ocidentais eram céticos quanto ao tema religião e sonhos, por alegarem que não haveria controle consciente durante os sonhos. Segundo Freire (2000), se preocupar com sonhos era coisa para poetas e artistas, jamais um cientista consideraria este um tema de trabalho. A euforia tecnológica propagada pela Revolução Industrial marcou o século XIX como um período de ascensão de diversas áreas do conhecimento. As ciências exatas ganhavam grande impulso com o desenvolvimento tecnológico à medida que este se vinculava ao desenvolvimento industrial. As ciências humanas também foram influenciadas por tantas mudanças, surgindo áreas como a Sociologia e a Psicologia. A trajetória e história da psicanálise está ligada de forma indissociável à vida de Freud. A teoria por ele criada em Viena no início do século XX, emergiu perante o mundo como algo novo, com a publicação do livro A Interpretação de Sonhos, em 1900, e se difundiu por inúmeras áreas do saber. Neste contexto, as preocupações e os métodos de Freud eram considerados excêntricos, com a inauguração de uma nova área do conhecimento, uma nova forma de ver e pensar o mundo, alterando radicalmente o modo de pensar a vida psíquica. Freud ousou colocar os processos do psiquismo, as fantasias, os sonhos, os esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos. A investigação sistemática desses processos levou-o à criação da Psicanálise. No decurso dos estudos psicanalíticos, Freud se deparou com a interpretação dos sonhos. Tendo já descoberto a transferência, a resistência e a necessidade de um ego autônomo em terapia, Freud abandonou a hipnose e voltou-se para a livre associação. Freud se cala, deixando que seus pacientes associassem livremente e eles começam a lhe contar sobre seus sonhos. Freud interessa-se pelos sonhos e seus pacientes lhe comunicavam todas as ideias ou pensamentos que lhes ocorressem em relação a um assunto específico, e, entre outras coisas, narravam os seus sonhos. Freud usou o sonho como ponto de partida para

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associações que conduziam até as ideias inconscientes que se ocultavam atrás de sintomas e sonhos e eram responsáveis por ambos. Através da interpretação dos sonhos, Freud mostrou a existência do inconsciente e transformou os sonhos em um instrumento revelador do psiquismo humano. Diversos autores utilizam a tradução “o sonho é a via régia para o inconsciente” para se referirem a expressão cunhada por Freud, em seu texto “Cinco Lições de Psicanalise” (1910[1909]) onde se lê que o sonho é “a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise”. (p. 46) O inconsciente freudiano é indissoluvelmente uma noção tópica e dinâmica, que brotou da experiência do tratamento. Este mostrou que o psiquismo não é redutível ao consciente e que certos conteúdos só se tornam acessíveis à consciência depois de superadas certas resistências; revelou que a vida psíquica era cheia de pensamentos eficientes embora inconscientes, e que era destes que emanavam os sintomas. Os mecanismos de deslocamento e condensação, evidenciados no sonho em A Interpretação de Sonhos (1900) e constitutivos do processo primário, são reencontrados em outras formações do inconsciente, nos atos falhos, nos lapsos e nos chistes, equivalentes aos sintomas pela sua estrutura de compromisso e pela sua função de realização de desejo (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Para Lacan (1972-73) apud Leite (2011), o inconsciente está estruturado como uma linguagem. A dinâmica da linguagem do inconsciente se dá através dos mecanismos de metáfora e metonímia, na cadeia associativa de significantes e são equivalentes, respectivamente, aos mecanismos de condensação e deslocamento descritos por Freud. Sobre o conteúdo manifesto e os pensamentos latentes, a tese de Freud é de que o primeiro registro, "o consciente", é um substituto do segundo registro "o inconsciente" do qual o sonhador detém um saber que não lhe é acessível imediatamente. A estes registros Freud denominou de conteúdo manifesto do sonho e pensamentos latentes do sonho. Aquilo a que o sonhador tem acesso é ao conteúdo manifesto, ou seja, ao sonho sonhado e recordado por ele ao despertar. Este é o substituto distorcido de algo inteiramente distinto e inconsciente, que são os pensamentos latentes. Os pensamentos latentes são a matéria-prima de que são feitos os sonhos manifestos, mas é apenas à partir destes últimos que podemos chegar ao conteúdo latente. O processo pelo qual os pensamentos latentes são transformados em conteúdo manifesto é denominado por Freud trabalho do sonho e, para se chegar aos pensamentos latentes à partir do conteúdo manifesto denomina-se interpretação (GARCIA-ROZA, 1995).

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Todo sonho é uma realização de desejo. Alguns desses desejos são expressão de tarefas interrompidas ou inacabadas no dia anterior ao do sonho, restos diurnos que encontram no sonho sua solução e seu acabamento. Freud refere-se ao conteúdo manifesto e aos pensamentos latentes como sendo diferentes modos de expressão compreendendo signos e leis de articulação distintas, com uma diferença de linguagens e não uma diferença como a que existe entre duas línguas. No caso de duas línguas há uma gramática que se mantém constante, assim como há a possibilidade de um código comum viabilizando a tradução, ao passo que, nos sonhos, cada sonhador cria sua própria gramática (GARCIA-ROZA, 1995). Na Revisão da Teoria dos Sonhos, Freud esclarece que o ponto mais controvertido em sua teoria foi a afirmação de que todos os sonhos são realizações de desejos. Após inevitáveis objeções, manteve intacta sua teoria, com a divisão em sonhos de realização de desejo, sonhos de ansiedade e sonhos de punição, estes últimos também constituintes de realizações de desejos, embora não de impulsos instintuais, mas de desejos de instância crítica, censora e punidora da mente (FREUD,1933[1932]). Sobre o conteúdo do sonho, Freud afirma que: [...] é possível que surja um material que, no estado de vigília, não reconheçamos como parte de nosso conhecimento ou nossa experiência. Lembramo-nos, naturalmente, de ter sonhado com a coisa em questão, mas não conseguimos lembrar se ou quando a experimentamos na vida real. Ficamos assim em dúvida quanto à fonte a que recorreu o sonho e sentimo-nos tentados a crer que os sonhos possuem uma capacidade de produção independente. Então, finalmente, muitas vezes após um longo intervalo, alguma nova experiência relembra a recordação perdida do outro acontecimento e, ao mesmo tempo, revela a fonte de sonho. Somos assim levados a admitir que, no sonho, sabíamos e nos recordávamos de algo que estava além do alcance de nossa memória de vigília. (FREUD, 1900, p. 49).

Sobre os estímulos e as fontes dos sonhos, Freud cita um ditado que diz que “os sonhos decorrem da indigestão”, e que isso nos ajudaria a entender o que se pretende dizer com estímulos e fontes dos sonhos. Esta é uma teoria segundo a qual os sonhos são o resultado de uma perturbação do sono: “não teríamos um sonho a menos que algo de perturbador acontecesse durante nosso sono, e o sonho seria uma reação a essa perturbação” (FREUD, 1900, p. 59). “Os sonhos se desvanecem pela manhã” é fato proverbial citado por Freud, questionando porque esquecemos dos sonhos após o despertar. Eles podem ser lembrados, pois só se toma conhecimento dos sonhos por meio da recordação deles depois de despertar.

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Frequentemente, porém, há a sensação de termos lembrado apenas parcialmente de um sonho, e de que houve algo mais nele durante a noite. Muitas vezes sabemos que sonhamos, sem saber o que sonhamos, e estamos tão familiarizados com o fato de os sonhos serem passíveis de ser esquecidos que não vemos nenhum absurdo na possibilidade de alguém ter tido um sonho à noite e de manhã, não lembrar o que sonhou, nem sequer o fato de que sonhou. Mas também ocorre às vezes que os sonhos mostram extraordinária persistência na memória (FREUD, 1900). Duas características perseverantes nos sonhos, segundo Freud (1900) que a análise psicológica dos sonhos força a reconhecer como características essenciais da vida onírica, são a incapacidade para o trabalho de representações do tipo que vivenciamos como desejado de forma intencional e o surgimento de imagens. Essas imagens, alucinações hipnagógicas, são idênticas em seu conteúdo às imagens oníricas. Os sonhos, segundo Freud (1900) se formam predominantemente em imagens visuais, mas não só, também utilizam imagens auditivas e impressões que pertencem aos outros sentidos. O que é verdadeiramente característico dos sonhos são os elementos de seu conteúdo que se comportam como imagens e que se assemelham mais às percepções, que são como representações mnêmicas. Os sonhos são desconexos, aceitam as mais violentas contradições sem a mínima objeção, admitem impossibilidades, desprezam conhecimentos que têm grande importância para nós na vida diurna e nos revelam como imbecis éticos e morais. Quem quer que se comportasse, quando acordado, da maneira peculiar às situações dos sonhos, seria considerado louco. (FREUD,1900, p.69)

Freud (1900) afirma que devemos estabelecer um contraste entre os conteúdos manifesto e latente dos sonhos. Não há dúvida de que existem sonhos cujo conteúdo manifesto é de natureza extremamente aflitiva. É possível que os sonhos aflitivos e os sonhos de angústia, uma vez interpretados, revelem-se como realizações de desejos. Na passagem do conteúdo manifesto para o conteúdo latente do sonho, o material de representações passa por deslocamentos e substituições e os afetos permanecem inalterados. O material de representações modificado pela distorção onírica, embora não seja compatível com o afeto, é retido sem modificação (FREUD, 1900). Ainda citando Freud (1900) a finalidade do trabalho do sonho tem a função de preencher as lacunas da estrutura do sonho com trapos e remendos. Como resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de absurdo e incoerência e se aproxima do modelo de

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uma experiência inteligível. No processo de transformar os pensamentos latentes no conteúdo manifesto de um sonho, aparecem dois fatores: o deslocamento e a condensação do sonho. São fatores dominantes cuja atividade pode ser atribuída à forma assumida pelos sonhos. Sobre o processo de condensação, Freud afirma que : [...] quem quiser comparar o conteúdo do sonho com os pensamentos oníricos é que ali se efetuou um trabalho de condensação em larga escala. Os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos (FREUD,1900 p. 305).

Já o trabalho de deslocamento do sonho: [...] está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, por meio da sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem uma transferência e deslocamento de intensidade psíquicas no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sono e o dos pensamentos do sonho. O processo que estamos aqui presumindo é nada menos do que a parcela essencial do trabalho do sonho, merecendo ser descrito como o “deslocamento do sonho” (FREUD, 1900, p. 333).

A tese de que os sonhos dão prosseguimento às ocupações e interesses da vida de vigília, segundo Freud (1901), foi confirmada pela descoberta dos pensamentos oníricos ocultos. Estes dizem respeito ao que parece importante e tem grande interesse para nós, mas os sonhos nunca se ocupam de pormenores insignificantes. Porém, encontramos motivo para aceitar a visão oposta de que os sonhos apanham os desejos irrelevantes que restam do dia anterior e de que só conseguem apoderar-se de um grande interesse diurno depois de ele se ter subtraído da atividade de vigília. Os dois modos de funcionamento do aparelho psíquico definidos por Freud podem ser distinguidos de forma radical. O processo primário caracteriza o sistema inconsciente, onde a energia psíquica escoa-se livremente, passando sem barreira de uma representação para outra segundo os mecanismos de deslocamento e condensação. Tende a reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo. Já no processo secundário, a energia começa por estar “ligada” antes de escoar de forma controlada. É a reformulação do sonho destinada a apresentá-lo sob a forma de uma história relativamente coerente e compreensível.

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Para Freud, quando um paciente conta um de seus sonhos, mesmo que esse sonho seja ininteligível, deve ser considerado um ato psiquicamente válido, com sentido e valor e que pode ser utilizado como uma comunicação como qualquer outra. O que torna-se difícil é transformar o sonho em comunicação normal. O que é chamado de sonho é o texto do sonho, seu conteúdo manifesto, mas o que o analista busca é o que se esconde atrás do sonho, os pensamentos oníricos latentes (FREUD,1933[1932]). O sonho manifesto, segundo Freud (1917), mostra todos os tipos de características: pode ser coerente, harmoniosamente construído como uma composição literária, ou pode apresentar-se confuso a ponto de ser ininteligível, quase como um delírio, pode conter elementos absurdos ou anedotas e conclusões espirituosas. Ao sonhador pode parecer claro e preciso, obscuro e nebuloso, suas imagens podem exibir uma intensidade de percepções sensoriais plenas ou pode estar cheio de sombras. As mais diferentes características podem estar presentes no mesmo sonho, distribuídas por diferentes partes dele. O sonho pode enfim mostrar um tom afetivo indiferente ou estar acompanhado de sentimentos da mais intensa alegria ou de sofrimento. Acerca da função que os sonhos exercem, Freud (1933[1932] em sua Revisão da Teoria dos Sonhos, afirma que estes estão incumbidos de alguma realização útil. A condição de repouso livre de estímulo, que o estado de sono deseja estabelecer, é ameaçada de modo relativamente casual, por estímulos externos, durante o sono, e por interesses do dia anterior, que não podem ser interrompidos, e de uma forma inevitável, pelos impulsos instintuais reprimidos insatisfeitos que estão à espera de uma oportunidade de se expressarem. O impulso inconsciente é que é o verdadeiro criador do sonho, é ele que produz a energia psíquica para a construção do sonho. Assim como qualquer outro impulso instintual tende à sua própria satisfação. E este é o sentido de todo o sonhar. As imagens dos sonhos podem ser relatadas em abundantes associações. Elas lançam sobre o sonho uma luz sobre as diferentes partes do sonho, preenchem lacunas e tornam inteligíveis suas estranhas justaposições. Por fim, entende-se a relação entre associações e o conteúdo do sonho (FREUD,1933[1932]). Ainda citando Freud, os pensamentos oníricos latentes se transformam em um agrupamento de imagens sensoriais e de cenas visuais. Todos os instrumentos linguísticos pelos quais se expressam as relações dos pensamentos – as conjunções, as preposições e as conjugações – são eliminadas. Expressa-se apenas a matéria-prima do pensamento.

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Os sonhos diurnos, outra modalidade de sonho, constituem realizações de desejo, partilhando com os sonhos noturnos várias características: tal como os sonhos, são realizações de desejo, tal como os sonhos, assentam em boa parte as impressões deixadas por acontecimentos infantis, tal como os sonhos, beneficiam-se, para suas criações, de uma indulgência por parte da censura. Para Freud, os sonhos diurnos são sinônimo de fantasma ou fantasia diurna, nem sempre conscientes. Essa fantasias ou sonhos diurnos são utilizados pela elaboração secundária, fator de trabalho do sonho, que mais se aproxima de vigília (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Entre as definições que Freud dá aos sonhos, encontramos aquela que diz que os sonhos são produções que, através da satisfação alucinatória, eliminam estímulos psíquicos perturbadores do sono. A finalidade do sonho é a de proteger o sono, no entanto, existem sonhos que, escapando desta finalidade, nos despertam levando-nos ao susto e ao terror. Nestes casos o sujeito desperta. Uma vez desperto pode, então, aquele que sonhou, contar seu sonho, pensar nele, acrescentar-lhe algo, continuá-lo ou, quem sabe, levá-lo para o analista, em uma experiência de análise. Por analogia, existem filmes que nos fazem sonhar para proteger nosso sono e existem filmes que nos acordam, despertam e instigam. Mas existem também os filmes que, enquanto obra de arte, nos olham, nos perscrutam e interrogam (MAGALHÃES, 2008). Os sonhos diurnos são construções imaginárias relacionadas ao desejo. Sonhar com algo implica em criar a imagem da coisa ausente, o que pode desencadear o desejo de obtê-la. O sonho diurno é sempre voltado para o futuro, podendo proporcionar ideias que não pedem interpretação e sim, elaboração. Assim, as imagens sonhadas podem possibilitar a mudança no comportamento do sujeito, motivando-o a acionar a proposição emanada e encontrar o que lhe falta: ideias políticas, artísticas ou científicas (WILD, 2008).

2.3 RELAÇÃO ENTRE A LINGUAGEM DO CINEMA E DO SONHO

Todo filme tem uma narrativa e é esta que conduz a história. Por narrativa pode se entender a maneira pela qual o cineasta manipula os elementos da linguagem fílmica, ou seja, o conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o discurso cinematográfico.

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O que merece crédito na obra cinematográfica não é o que se diz no filme, mas como o filme diz a história, e este se expressa por meio de sua linguagem específica. O cinema tem uma sintaxe que se cristaliza pelo relacionamento dos planos, das cenas, das sequências. Os elementos básicos da linguagem cinematográfica, os chamados elementos determinantes, são a planificação, os movimentos de câmera, a angulação e a montagem, existindo também os elementos componentes, mas não determinantes, como a fotografia, os intérpretes e a cenografia (SETARO, 2009). Os sonhos também tem uma narrativa, uma linguagem própria e sobre esta GarciaRoza (1995) afirma que: A tese central de “A interpretação dos sonhos” é que o próprio sonho é uma linguagem. Concordar com Freud que o sonho é um enigma em imagens corresponde a aceitar a tese de que o sonho é uma escritura psíquica, cujas imagens não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas em se valor significante (GARCIA ROZA, 1995, p. 96).

Para o autor anteriormente citado, o sonho é uma escrita psíquica que não é feita de palavras, mas de imagens, o que implica a possibilidade dos pensamentos latentes serem expressos em forma de uma encenação. A psicanálise nos coloca desde o início no registro de uma linguagem: o estudo do ato falho e do lapso já presente no primeiro texto teórico de Freud, assim como o estudo dos sonhos, que pretendem fazer passar uma fala que foi interditada, ou ainda o estudo das parapraxias e dos chistes. Freud se move desde o começo de sua produção teórica, no âmbito da linguagem, e nele permanece até o final de sua obra (GARCIA-ROZA, 1995). Sobre a primeira exibição cinematográfica realizada pelos irmãos Lumière, a impressão de ver o trem na tela como se fosse verdadeiro, embora sabendo que é de mentira, dá para fazer de conta, enquanto durar o filme, que é de verdade. É um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só sabemos depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema. O cinema dá a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeiras, amores verdadeiros (BERNARDET, 1985). Morin (1997) faz analogias que aparentam o cinema e o sonho: as estruturas do filme são mágicas e correspondem à mesma necessidade de imaginário que as do sonho. A sessão de cinema revela características para hipnóticas, a obscuridade, a encantação através da imagem,

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a descontração, a passividade e a impotência física. A descontração do espectador não é hipnose, ele consegue ser feliz, pois sabe que está assistindo a um espetáculo inofensivo, enquanto a impotência do sonhador é horrível. O sonhador acredita na absoluta realidade do seu sonho absolutamente irreal. Segundo o mesmo autor, mais próximo do cinema é o sonhar acordado, também ele entre a vigília e o sono. A separação entre o sonhador e a sua fantasia vai muito mais longe que durante o sono, ao mesmo tempo que vivemos amores, riquezas e triunfos, continuamos do outro lado do sonho, na banalidade da vida cotidiana, sendo nós mesmos. Uma vigília controla estes sonhos diurnos, impedindo-os de extravasarem fantástica e livremente demasiados. Numa produção artística como o cinema, o mundo exterior está ausente e o espectador se encontra num estado de quase torpor, entregue à regressão e ao abandono, com a atenção totalmente concentrada na tela, num completo envolvimento emocional. Qualquer ruído ou visão fora da tela remete o espectador à existência de uma realidade externa que o desperta para a presença do cotidiano, comprometendo o estado psicológico necessário para a perfeita adesão ao mundo do filme. O espectador na verdade não assiste ao filme, ele o vivencia de uma maneira próxima do sonho e de forma intensa (FERNANDES, 2005). A busca prazerosa de ir ao cinema pode ter suas raízes no ambiente de isolamento. Silêncio e penumbra aconchegante e sedutora, onde insistimos em permanecer em desejável passividade, simulando perfeitamente o ventre materno para onde desejamos retornar. Fernandes (2005) justifica o desejo de ir ao cinema pela “impressão da realidade” associada à forma de se relacionar com essa realidade alucinatória, que pode ser definida como “voyeurista narcisista”, porque nela o sujeito “espia” a intimidade do outro pelo viés da tela, enquanto seu corpo fica inerte, imaginariamente, é projetado no enredo, vivenciando o filme como algo que de fato lhe acontece como se fosse o seu sujeito (efeito sujeito). Bazin (1981) apud Fernandes (2005) observou que a simbologia e a censura são funções constitutivas tanto do cinema quanto do sonho. No cinema, o mecanismo da censura é representado pela legislação dos códigos de ética, pelos recursos de linguagem ou pelas regras econômicas do mercado, num sentido muito próximo da censura psíquica. A analogia entre o espaço de projeção e o espaço do sonho ou devaneio, que desemboca na ideia desta vocação do cinema a tornar viva a dimensão onírica da vida humana, segundo Sampaio (2000) é um dos polos de debate que o desenvolvimento do cinema, no decorrer deste século, abre para a compreensão e discussão contemporânea da

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subjetividade. O cinema torna-se tanto expressão de um imaginário coletivo, quanto elemento constitutivo dele. O cinema, entendido como resposta ao desejo do sonho, implica uma concepção acerca do campo imaginário que é produzido, secretado mesmo, na relação entre o espectador e a máquina, a tela ou o filme. Para a mesma autora acima citada, de um lado tem-se a ideia de que o cinema é movido pelo sonho e pela possibilidade de materializá-lo, e de outro, pelo real e pela possibilidade de perpetuá-lo, de escapar à morte ou reconhecê-la como limite inexorável da experiência. Este dois polos relacionam-se e confluem um para o outro pela condição imaginária de sua possibilidade de figuração, que se desenha uma história, a do cinema e de seus produtores, ao mesmo tempo ou alternadamente caçadores de realidades e fabricantes de sonhos. Ainda citando Sampaio (2000), se existe uma rede de conexões entre o cinema e o sonho, de sonho produzido pela máquina, é notória a influência lacaniana que vê na "fase do espelho" a matriz que torna o cinema tradicional de ficção um reflexo enganoso de uma alma unitária e produtora de sentido, reflexo no qual o sujeito mesmo resta na ignorância de si. Metz (1980) contesta a comparação entre o cinema e o sonho, baseando-se em três argumentos: o espectador sabe que está no cinema e o sonhador não sabe que está sonhando. Isso nem sempre acontece pois se houver uma participação efetiva do espectador – situação fílmica, essa situação não o deixa ter essa percepção e nos estados intermediários entre vigília e sono o indivíduo sabe que está sonhando. Ainda referindo o mesmo autor, o fato do indivíduo saber em nada diminui o desejo de estar no cinema, pelo contrário; no filme, o material percebido é real embora o espectador não o receba como meros estímulos luminosos; ele toma por representação mental o que não passa de percepção, e no sonho ele toma como percepção o que não passa de representação mental. O filme é mais lógico que o sonho, pois ele se identifica com a elaboração secundária e não com o conteúdo latente, que é a matéria-prima do sonho. Kofman (1995) afirma que a arte e o sonho são dois dialetos diferentes mas não opostos. Ambos são regidos por leis próprias e não são menos dependentes da força que se investe neles nem da que os censuram. Não se trata de representação, mas de conflitos de forças que se encontram estruturadas pelo texto da arte assim como pelo do sonho. Na arte como no sonho, as relações lógicas se expressam por meio de procedimentos figurativos específicos. O sonho como a arte, é um enigma figurativo e sendo a arte um enigma, os

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processos primários devem estar na obra não só de uma maneira deliberada, mas também inconsciente. Sobre a analogia entre a obra de arte e o sonho, a autora afirma: Se é verdade que a obra de arte é análoga ao sonho e, como ele, interpreta os fantasmas de seu autor, ela também é uma escrita do desejo. Mas, à diferença do sonho, o dialeto da arte deve ser compreensível e comunicável, pois a arte é uma obra cultural que tem função social (KOFMAN, 1995, p.127).

Para Araújo (2008), as analogias entre o cinema e o sonho são evidentes. Os dois têm características hipnóticas. No sonho há uma crença na absoluta realidade, enquanto os espectadores do cinema sabem que assistem a um espetáculo inofensivo, uma espécie de sonhar acordado. O cinema é, portanto, um complexo de realidade e de irrealidade. Opera uma espécie de ressurreição da visão primitiva do mundo ao inscrever o fantástico no real e o que importa do ponto de vista antropológico é a infinita possibilidade dialética entre o real e o irreal. Santini (2007) apud Magalhães (2008) descreve o modo de um diretor considerado surrealista, de trabalhar a questão do tempo, evocando diversos conceitos psicanalíticos: [...] não será com o tempo cronológico, tal qual se tem o hábito de medi-lo, quantificá-lo, seriá-lo, um tempo técnico e tecnizado que vamos nos deparar. É todo um outro tempo.... De repente, graças à essência, mesma, do médium cinematográfico, e de seu brilhante realizador, somos mergulhados em um outro mundo, imersos no inconsciente. O relato preciso que David Lynch nos propõe, se articula, exatamente, da mesma maneira, segundo a mesma lógica narrativa, tecida da mesma matéria imajada e sonora que é a dos sonhos, com os seus procedimentos de condensação e deslocamento, suas superposições de espaços, (já que não há mais o tempo), seus desvios e seus contornos e suas inversões (porque o inconsciente tampouco conhece a negação) (SANTINI, 2007 apud MAGALHÃES, 2008, p.3).

Neves (2005) traz um questionamento sobre se o cinema nos aproxima de nosso próprio desconhecimento, de nossa própria divisão. A autora afirma que o cinema, assim como os sonhos, vive de associações, de condensações, de metáforas e metonímias. O cinema, como o sonho, seria talvez um encadeamento de imagens e emoções que tem como efeito um sujeito. As mais ocultas e veladas marcas, os desejos mais inconfessáveis fervilham nas telas do cinema, ou seja, o cinema pode ser a tradução de nosso desejo mais secretamente inconsciente. A mesma autora ressalta que o cinema tem uma linguagem própria que tem que ser

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levada em conta. O filme é como uma escrita que se escreve com a câmera e o próprio movimento da câmera já produz um efeito de sentido. Com a interpretação dos sonhos, Freud operou a passagem do relato fornecido pelo sonhador, das imagens de seu sonho ao texto a ser interpretado. Freud não pretendeu fazer apologia da imagem, não havendo nenhuma comunhão entre a proposta freudiana e a proposta do cinema. O cinema construiu uma verdadeira mística da linguagem e Freud elabora sua teoria “sobre as ruínas do templo da imagem”. Suas restrições ao cinema diziam respeito á possibilidade do cinema fazer uma apresentação plástica “minimamente séria” dos conceitos psicanalíticos (GARCIA-ROZA, 1995). Ainda citando o mesmo autor, este afirma que o cinema e a psicanálise dos sonhos, apesar de algumas semelhanças superficiais, são constituídos projetos que apontam em direções opostas. Enquanto o cinema se propõe a colocar o discurso simbólico em imagens, a psicanálise se propõe operar a passagem do silêncio da imagem à palavra. As imagens do sonho, para Freud, não tem o valor de imagens, não se propõe como imagens das coisas. O que confere unidade e significado às imagens que forma a representação coisa é a palavra e não a coisa propriamente dita. As imagens, como signos, remetem às demais imagens, formando uma cadeia de imagens ou cadeia de representações. A partir desse modo de conceber as imagens que Lacan afirma que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”, a partir da aplicação dos textos iniciais de Freud (GARCIA-ROZA, 1995). Jean Epstein apud Xavier (1983) em seu texto “A imagem contra a palavra” traz a analogia entre a linguagem do filme e o discurso do sonho, onde esta não se limita a uma dilatação simbólica e sentimental de certas imagens. Tanto quanto o filme, o sonho amplia e isola detalhes representativos, produzindo-os em primeiro plano desta atenção que mobilizam. Do mesmo modo que o sonho, o filme também pode desenvolver um tempo próprio, diferente da vida exterior. Estas características comuns desenvolvem e apoiam uma identidade fundamental de natureza, pois ambos, cinema e sonho, constituem discursos visuais. O mesmo autor afirma que, quando o sono a libera do controle da razão, a atividade mental, não se torna caótica, pois nela ainda se descobre uma ordem que consiste de associações, por semelhança, cuja disposição geral está submetida a uma orientação afetiva. O filme está mais apto a reunir as imagens de acordo com o sistema irracional da textura onírica, do que segundo a lógica do pensamento da língua falada ou escrita, em estado de vigília, uma

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vez que traz imagens carregadas de valor afetivo. Reiter (2009) relata que o cinema revela algo que se refere aos conteúdos latentes, inconscientes do sujeito, que quer vir à tona. A imagem mediadora para despertar conteúdos do sujeito remete ao despertar de algo, geralmente inconsciente, do sujeito. Betton (1987) apud Reiter (2009) refere-se ao cinema como sendo um meio de comunicar pensamentos e expressar sentimentos, contribuindo para um aprendizado sobre o próprio sujeito e sua relação com a imagem e com o mundo. Pode ser uma lembrança encobridora, ou então emoções afloradas por uma pulsão sublimada. Tentando aproximar cinema e sonho, Morel (2007-2008) apud Magalhães (2008) coloca algumas questões a serem trabalhadas: não estaria o cinema, graças ao progresso de uma técnica cada vez mais sofisticada, buscando realizar, inclusive, ultrapassar o que o sonho realiza, com tanta virtuosidade, em cada um de nós? não estaria o cinema tentando colocar fora o que realizamos de mais íntimo? Não estaria o cinema buscando mostrar a universalidade partindo do mais singular? Não estaria o cinema a realizar, de modo êxtimo (exterioridade interna) os procedimentos mais secretos do ser humano?

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2.4

METODOLOGIA

A Pesquisa Bibliográfica, segundo definição de Gil (1996) é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. As fontes bibliográficas são em grande número e podem ser classificadas em livros de leitura corrente, livros de referência, publicações periódicas e impressos diversos. Os livros constituem as fontes bibliográficas por excelência e em função de sua forma de utilização são classificados como leitura corrente ou de referência. A Pesquisa Bibliográfica elege uma problemática de pesquisa e, a partir disso, estabelece um escopo para ser pesquisado na literatura (livros, periódicos, monografias, dissertações, teses, anais de eventos impressos, eletrônicos/digitais, sites de bibliotecas, etc.). O delineamento deste trabalho consiste em uma Pesquisa Bibliográfica seletiva, que, por definição, tem como finalidade conhecer as mais diversas formas existentes de contribuição científica que já se realizou sobre determinado assunto ou fenômeno. Este tipo de delineamento possui como vantagem para o pesquisador “a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente” (GIL, 1999, p. 65), colaborando com a atualização dos dados e com questões que ainda não foram respondidas. Buscou-se proporcionar uma visão geral sobre um determinado fenômeno, neste caso específico, a identificação na pesquisa bibliográfica, sobre a relação entre as linguagens do cinema e do sonho a partir de uma perspectiva psicanalítica. Para esta pesquisa adotou-se como fonte de dados as publicações psicanalíticas na Língua Portuguesa, teses, artigos e dissertações publicadas no período de 2000 a 2010, que abordam a temática do sonho e suas leis, bem como a literatura clássica que contempla os aspectos históricos do cinema e os conceitos de sonho.

2.4.1 Coleta de dados

A coleta de dados desta pesquisa bibliográfica qualitativa aconteceu em três fases:

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identificação, localização e reunião dos materiais. Na base de dados www.scielo.br em formato on line foram utilizadas as palavras-chave: cinema, psicanálise, sonho, cinema psicanálise, linguagem cinema, linguagem sonho, cinema psicologia. Muitos artigos apresentavam repetição, ou seja, com diferentes palavras-chave encontravam-se os mesmos artigos. Na sequência, foi realizada uma verificação de todos os títulos e aqueles que poderiam ter conteúdo relevante para a pesquisa foram selecionados para leitura dos resumos. Com esta leitura, identificou-se a existência ou não de pontos referentes aos objetivos deste trabalho. Selecionados os artigos relevantes que contemplam os objetivos específicos deste trabalho, foi realizada uma primeira leitura do material. Em seguida houve uma segunda leitura, mais direcionada, com a identificação de pontos significativos, estabelecendo relação entre essas informações e dados e o problema proposto.

2.4.2 Procedimentos de Análise de Dados

Houve também uma seleção do material para leitura posterior e a realização de análise dos dados. A análise dos dados, segundo Gil (1996) tem como objetivo organizar e sumariar os dados de forma tal que possibilite o fornecimento de respostas ao problema proposto para investigação. Para a análise e interpretação de dados desta pesquisa qualitativa foi utilizada a análise de conteúdo, que segundo Bardin (1979) é um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. A mesma autora destaca várias maneiras para analisar conteúdos, entre os quais encontra-se a análise temática, como o próprio nome define, o conceito central é o tema. “O tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura” (p.105). O tema é utilizado como unidade de registro para estudar motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças e de tendências. Trabalhar com a análise temática consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição pode significar

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alguma coisa para o objetivo analítico escolhido (BARDIN, 1979). Conforme Minayo (2007), duas funções podem ser destacadas quando se utiliza análise de conteúdo: a verificação de hipóteses e/ou questões, e a descoberta do que está por trás dos conteúdos evidentes. Ou seja, através da análise de conteúdo “podemos encontrar respostas para as questões formuladas e também podemos confirmar ou não as afirmações estabelecidas antes do trabalho de investigação”(MINAYO, 2007, p.74). A outra função considera o que está além do manifesto, do que está sendo comunicado. As duas funções podem se complementar. Segundo Gomes (2007) a trajetória da análise de conteúdo temática segue as seguintes etapas: pré análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Inicialmente será feita uma leitura de primeiro plano até atingir um nível mais profundo. Com esta leitura, segundo o autor, buscamos ter uma visão de conjunto; apreender as particularidades do conjunto do material a ser analisado; elaborar pressupostos que servirão de baliza para a análise e interpretação do material; escolher formas de classificação e determinar os conceitos teóricos que orientarão a análise. Como etapa final desta pesquisa foi elaborada uma síntese interpretativa através de uma redação que possa dialogar temas com objetivos, questões e pressupostos da pesquisa.

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2.5

DISCUSSÃO E ANÁLISE DE DADOS Os materiais consultados para a realização desta pesquisa são textos que

compreendem artigos, teses e dissertações, publicados no período de 2000 a 2010, além da literatura clássica que aborda os temas cinema e sonho. Foram pesquisados e selecionados vinte e um textos, sendo que quatro abordam a “linguagem, cinema, sonho”; seis textos abordam “linguagem, cinema”; quatro textos abordam “psicanálise, cinema”; e mais sete textos que abordam “psicanálise, cinema, sonho”. Para a realização da análise dos dados desta pesquisa utilizou-se a análise temática, que consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença pode significar alguma coisa para o objeto analítico escolhido. O tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que foi utilizada como guia de leitura. O texto pode ser recortado em ideias constituintes, enunciados e proposições portadores de significados que podem ser isolados (BARDIN, 1975). Esta pesquisa interroga a relação existente entre a linguagem do cinema e do sonho a partir da teoria psicanalítica. Após realização de diversas leituras, foram elaborados pressupostos para a análise e interpretação do material, foram definidos os núcleos de sentido e também foram determinados os conceitos teóricos que fundamentam esta pesquisa. Para a realização da análise de conteúdo temática destacaram-se três núcleos de sentido: “a narrativa clássica”, “a metalinguagem” e “a narrativa surrealista e a narrativa do expressionismo alemão”. A partir do levantamento realizado sobre os principais movimentos e escolas do cinema, a linguagem que se destacou por sua importância e que perdura até os dias de hoje, é a narrativa clássica criada por Griffith em 1908. Este modelo clássico de narrativa cinematográfica é caracterizado por apresentar uma linearidade, uma decodificação das histórias simplificadas, baseada muitas vezes nos estereótipos e no encadeamento contínuo das ações. É possível estabelecer alguma relação com os sonhos, utilizando a definição de sonho manifesto, que, segundo Freud (1917), pode se apresentar com diversas características que podem estar presentes no mesmo sonho, dentre as quais que o sonho pode ser coerente, harmoniosamente construído como uma composição literária. Mesmo que este modelo clássico de narrativa cinematográfica apresente uma linearidade, podemos pressupor alguma

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relação com a linguagem do sonho manifesto. No registro da metalinguagem, considerada a linguagem acerca da linguagem, existem os filmes que se referem ao universo cinematográfico através da temática, o filme sobre cinema, como biografias de atores, diretores ou personalidades da indústria cinematográfica e o filme dentro do filme. Ana Lúcia Andrade (1999) apud Pereira (2007), aponta que o discurso metalinguístico dá ao espectador a ilusão de participação na construção da narrativa e cria a sensação de que o espectador está participando da trama. Podemos aproximar esta definição de Andrade (1999) com a definição de Metz (1972) que trata o cinema com sendo um fato e o filme como uma sensação e um sentimento de assistirmos a um espetáculo quase real, desencadeando no espectador um processo perceptivo e afetivo de participação, conquistando imediatamente uma espécie de credibilidade. Para estabelecer uma analogia entre a linguagem do sonho e a metalinguagem no cinema, podemos utilizar como exemplo para esta análise o “filme dentro do filme” A Rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen, (1985). Neste filme, vemos a protagonista cinéfila entrar literalmente no filme, fugindo de sua vida pacata e infeliz. Trata-se de um processo de projeção/identificação

que

está

implícito

nesta

relação

ficção/realidade

da

obra

cinematográfica. Andrade (1999) apud Barbosa (2000) afirma que a metalinguagem é utilizada como um elemento criativo que liberta o espectador passivo, através da ilusão de participação estabelecida. O espectador acompanha uma suposta construção do filme que se utiliza deste recurso e a participação se dá através da decodificação do discurso. Uma obra de arte, segundo Kofman (1995), é uma projeção que põe fim à perturbação interna e, como o sonho, permite uma realização alucinatória do desejo. O narcisismo da arte não é apenas um narcisismo secundário, ligado à identificação, mas também um narcisismo primário, ligado à crença na onipotência das ideias, à busca da auto suficiência. A arte é o único domínio em nossa cultura no qual a onipotência das ideias pode ser mantida. Um homem consumido pelos desejos, na arte faz algo semelhante a um apaziguamento, e esse jogo, graças à ilusão artística, produz efeitos de afeto, como se fosse qualquer coisa de real. A mesma autora acima citada, ainda estabelece uma relação entre a arte e o narcisismo, considerando-a fundamental. A estrutura narcísica parece ser a chave da atividade artística, caracterizando o psiquismo do artista e também do apreciador de arte. O narcisismo da arte é semelhante ao do sonho e caracteriza-se pela identificação centrífuga que opera por projeção, mecanismo pelo qual o sujeito expulsa de si e localiza no

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outro, que pode ser pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos e mesmo objetos que ele desconhece ou recusa nele próprio. Já nos processos psíquicos no exterior, atua a identificação, que é a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. É o processo psíquico por meio do qual um sujeito assimila um aspecto ou característica de outro, e se transforma, parcial ou totalmente, apresentando-se conforme o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações. Freud descreve como característico do trabalho do sonho o processo que traduz a relação de semelhança, o “tudo como se”, por uma substituição de uma imagem por outra ou “identificação”. A metalinguagem utilizada pelo cinema pode ser relacionada com a linguagem dos sonhos diurnos, que são construções imaginárias relacionadas ao desejo. Wild (2008) afirma que sonhar com algo implica em criar a imagem da coisa ausente, o que pode desencadear o desejo de tê-la. Para Freud, os sonhos diurnos são sinônimos de fantasma ou fantasia diurna e que nem sempre são conscientes. Essas fantasias ou sonhos diurnos são utilizados pela elaboração secundária, fator de trabalho do sonho, que mais se aproxima da vigília. Para Garcia-Roza (1995) as fantasias ou sonhos diurnos (ou devaneios) ocorrem no estado de vigília e apresentam características semelhantes ao sonho noturno. Os sonhos diurnos também são realizações de desejo, baseiam-se boa parte em impressões de vivências infantis e de certa forma se beneficiam de um relaxamento das instâncias censuradoras. Assim como há fantasias diurnas conscientes há também, em abundância, as inconscientes, e são estas que são utilizadas pela elaboração secundária na formação do sonho. A analogia entre o cinema e o sonho feita por Morin (1997) acontece devido às estruturas do filme serem mágicas e que correspondem à mesma necessidade de imaginário que as do sonho. Para o autor, o mais próximo do cinema é o sonhar acordado, entre a vigília e o sono. A separação entre o sonhador e a sua fantasia vai muito além do sono, ao mesmo tempo que vivemos amores, riquezas e triunfos, permanecemos do outro lado do sonho, no prosaico da vida cotidiana. Através do cinema, a protagonista do filme A Rosa púrpura do Cairo consegue realizar seu desejo através de sua fantasia, do seu sonho diurno, afastando-se da realidade. A arte, segundo Freud (1911) permite uma reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Uma produção artística permite que outras pessoas, além de quem a produz, compartilhem da mesma satisfação, tornando-a assim real e legitimando a fantasia. O

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princípio do prazer é um dos dois princípios que regem o funcionamento mental. A atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. O cinema é arte, portanto veículo que trabalha com a imaginação e a realidade, sensibilizando, provocando reações, emoções e afetos nos sujeitos. O sonho foi para Freud, o caminho por excelência da descoberta do inconsciente. Freud (1910[1909]) define-o como sendo “a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise”. (p. 46) Para a teoria psicanalítica, o mental não coincide com o consciente, os processos mentais são inconscientes e só se tornam conscientes pelo funcionamento de órgãos especiais, as instâncias psíquicas ou sintomas. Toda relação do sujeito com o mundo é mediada pela realidade psíquica. O inconsciente é atemporal e não obedece a uma cronologia no tempo, mas obedece às suas próprias leis e tem sempre como motor a força incessante do desejo. Podemos estabelecer uma aproximação da atemporalidade do inconsciente e a atemporalidade dos sonhos, que não possuem ordem definida e não estão restritos à nossa ideia de tempo e espaço. Para esta relação, podemos utilizar a definição trazida por Munsterberg (1916) apud Xavier (1983) sobre o cinema, que o cinema obedece às leis da mente e não às do mundo exterior. Que a tela pode refletir não apenas o produto de nossas lembranças ou de nossa imaginação, mas a própria mente dos personagens. A memória se relaciona com o passado, a expectativa e a imaginação com o futuro, mas na tentativa de perceber a situação, a mente não se interessa pelo que aconteceu ou pode acontecer depois, ela se ocupa dos acontecimentos que ocorrem simultaneamente em outros lugares. Uma outra relação que pode ser estabelecida entre a linguagem dos sonhos manifestos e do cinema é a narrativa surrealista e a narrativa do expressionismo alemão. Estas duas narrativas estão aglutinadas no mesmo núcleo de sentido em função de suas características serem similares, mas resguardando suas particularidades. A psicanálise influenciou tanto os artistas do surrealismo quanto os expressionistas alemães. A Psicanálise foi uma das maiores influências para o surrealismo, pois sua narrativa cinematográfica não obedece à mesma lógica da narrativa clássica, mas cultiva as rupturas, o onírico, as imagens mentais, as visões provocantes e a atração pelo mistério. A linguagem do surrealismo é o simbolismo, que pode ser definida como a busca pelo invisível e pelo indizível, caracterizando uma preferência pelas fantasias e pelos sonhos. O movimento expressionista era fortemente influenciado pela literatura e pelas artes

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plásticas, seus filmes contavam histórias fantásticas, e as imagens que mostravam tinham pouco a ver com a realidade cotidiana, combatendo a razão com a fantasia. Era a expressão pura da subjetividade psicológica e emocional. Este movimento sofreu influências da filosofia de Nietzsche e da teoria do inconsciente de Freud. A narrativa do expressionismo alemão se caracteriza pelo caos e pela descontinuidade, e a ausência de espaço-tempo. Com estas características podemos inferir que há um paralelo com a linguagem do sonho manifesto descrito por Freud, que pode ser confuso a ponto de ser ininteligível, quase como um delírio, podendo conter elementos absurdos, desconexos, apresentando contradições e impossibilidades. O expressionismo, segundo Cardinal (1988) apud Cánepa (2006), convida o espectador a experimentar um contato direto com o sentimento que gera a sua obra. A revelação de impulsos criativos brotam de um nível primitivo da vida emocional, fazendo com que o expressionismo seja identificado com uma tendência atemporal, ou seja, pode se manifestar a qualquer tempo, cultura ou em qualquer parte do mundo. Aqui podemos estabelecer novamente um paralelo com o inconsciente atemporal definido por Freud e suas manifestações como os sonhos. Segundo a afirmação de Costa (2003), o surrealismo não só antecipou, mas em parte realizou um novo tipo de cinema, que se interessou pelo fato cinematográfico, pelas analogias que existem entre o cinema e o sonho, entre os mecanismos da visão fílmica e os mecanismos do inconsciente. Em Freud (1910[1909]), encontramos o sonho como sendo a estrada real para o conhecimento do inconsciente, e o sonho interpretado como a realização de desejos inconscientes e tendências inconfessadas. Quando sonhamos é que encontramos o ilimitado, a liberdade e a realização do desejo, possível ou não. Para o surrealismo, o sonho serviu como cenário para expressar a arte e mostrar o onírico. O surrealismo concebe um mundo no qual sonhamos de olhos abertos. O cinema surrealista foi considerado por seus fundadores como um meio de conhecimento, investindo em continentes pouco explorados como o sonho, o inconsciente, o maravilhoso, a loucura e a alucinação. O discurso dos filmes surrealistas possibilitava imitar a articulação dos sonhos, a lógica de uma experiência que era o preenchimento de um desejo (FERRARAZ, 2001). O movimento surrealista utilizou-se de uma linguagem denominada simbolista, que

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apresenta como característica a sugestão de realidade e não de retratá-la de forma objetiva, como queriam os realistas. Esta linguagem utilizou-se de símbolos, imagens, metáforas, sinestesias, além de recursos sonoros e cromáticos, com a finalidade de expressar o mundo interior, intuitivo, que fosse anti lógico e anti racional, em oposição ao positivismo. O surrealismo caracterizava-se por apresentar uma preferência pelo sonho e pelas fantasias, era um seguidor do método da livre associação das ideias, do inconsciente e do desejo. Percebe-se a grande influência da teoria psicanalítica de Freud neste movimento, para a qual a associação livre é o seu método, o meio de investigar o material inconsciente esquecido. Também podemos pressupor uma analogia entre o cinema surrealista, o expressionismo alemão e suas linguagens, com as definições de simbólico utilizadas pela psicanálise. O simbólico, em sua forma substantiva, em Freud, é entendido como um conjunto dos símbolos de significação constante que podem ser encontrados em várias produções do inconsciente. Para Lacan, o simbólico designa a ordem dos fenômenos de que trata a psicanálise, na medida que são estruturados como uma linguagem. Buñuel, um dos principais cineastas surrealistas, considerava o cinema como o mais admirável instrumento para expressar o mundo dos sonhos, da emoção e do instinto. É a forma de expressão humana que mais se assemelha ao trabalho da mente durante o sono. Um filme pode ser uma imitação involuntária do sonho. Como num sonho, as imagens aparecem e desaparecem em dissoluções e o tempo e o espaço se tornam flexíveis. É o momento em que a incursão noturna do inconsciente começa nas telas e nas profundezas do ser humano. Como no sonho, as imagens aparecem e desaparecem como em dissoluções, e o tempo e o espaço se tornam flexíveis, contraindo-se ou se expandindo a vontade. (BUÑUEL, 2006, p.84)

A partir desta definição de Buñuel, podemos estabelecer um paralelo com o processo primário que caracteriza o sistema inconsciente, onde a energia psíquica escoa-se livremente, passando sem barreira de uma representação para outra, segundo os mecanismos de deslocamento e condensação. Outra associação é com a atemporalidade do inconsciente e com as imagens dos sonhos, que podem ser relatadas em abundantes associações. Segundo Freud (1933[1932]) esta imagens lançam sobre o sonho uma luz sobre as diferentes partes do sonho, preenchem lacunas e tornam inteligíveis suas estranhas justaposições, tornando compreensível a relação entre associações e o conteúdo do sonho.

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A maior e melhor parte do que sabemos dos processos nos níveis inconscientes da mente deriva-se da interpretação dos sonhos. O sonho relembrado surge como o conteúdo onírico manifesto, em contraste com os pensamentos oníricos latentes, descobertos pela interpretação. O sonho manifesto, aquele do qual o sonhador se recorda pela manhã, apresenta várias características, como já mencionado anteriormente, na relação com a narrativa clássica: o sonho manifesto, segundo Freud (1917) pode ser coerente, harmoniosamente construído como uma composição literária, ou ser confuso a ponto de ser ininteligível, quase como um delírio, pode conter elementos absurdos ou anedotas e conclusões espirituosas. O sonho pode mostrar um tom afetivo indiferente ou estar acompanhado de sentimentos da mais intensa alegria ou de sofrimento. O trabalho do sonho, segundo Freud (1900) consiste em transformar os pensamentos latentes em conteúdo manifesto, que se caracteriza pela narrativa do sonho tal como o sujeito o recorda e expressa. Os pensamentos oníricos latentes se transformam em um agrupamento de imagens sensoriais e de cenas visuais. Todos os instrumentos linguísticos pelos quais se expressam as relações dos pensamentos – as conjunções, as preposições e as conjugações – são eliminadas. Expressa-se apenas a matéria-prima do pensamento. O sonho e o cinema só existem quando há imagens. No sonho, as palavras, as imagens, as ideias sofrem o processo da elaboração onírica. Esses elementos que funcionam como restos diurnos, fornecem materiais para a trama do sonho. As outras possibilidades, como as condensações e os deslocamentos, provocam imagens irreais, muitas vezes verdadeiros monstros que atendem não só à deformação, como aos disfarces e também à condição da representatividade da imagem. Esse mecanismo de representatividade em imagem é o responsável pelo conteúdo latente e o final, é o sonho manifesto, que vai ser contado pelo sonhador. A fotografia, anterior à criação do cinema, era a técnica de criação de imagens por meio de exposição de luz, fixando-a em uma superfície sensível. O cinema, por sua vez, pode ser considerado um conjunto de fotografias que paralisam o tempo na forma de um conjunto de imagens, mas que ganham movimento quando exibidas numa sequência nas telas dos cinemas. Soares (2007) afirma que através da imagem, o cinema inscreve-se na subjetividade do sujeito, visto que alia a palavra com a imagem, produzindo um obra ficcional que nos leva ao devaneio, às reflexões, ao entretenimento e ao sonho. Na passagem do conteúdo manifesto para o conteúdo latente do sonho, Freud (1900)

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afirma que o material de representações passa por deslocamentos e substituições mas os afetos permanecem inalterados. No processo de transformar os pensamentos latentes no conteúdo manifesto de um sonho, aparecem o deslocamento e a condensação do sonho. São fatores dominantes cuja atividade pode ser atribuída à forma assumida pelos sonhos. Os modos de funcionamento do aparelho psíquico definidos por Freud (1900) são distinguidos de forma radical. O processo primário caracteriza o sistema inconsciente , onde a energia psíquica escoa livremente, segundo os mecanismos de condensação e deslocamento; no processo secundário, a energia começa

por estar ligada antes de escoar de forma

controlada. Sobre a relação do surrealismo com o sonho, Mendonça (2008) afirma que este cinema apresenta o material trabalhado pelo inconsciente. O uso da montagem no cinema como construção de espaço verossímil e o corte com sendo a repressão da imagem proibida, podendo ainda imitar a articulação dos sonhos através de imagem visual e sonora. Metz (1980) contesta a comparação de cinema e sonho, baseado no argumento que o espectador sabe que está no cinema e o sonhador não sabe que está sonhando, mas o fato do sujeito saber em nada diminui o desejo de estar no cinema. O filme é mais lógico que o sonho, pois ele se identifica com a elaboração secundária e não com o conteúdo latente, que é a matéria-prima do sonho. Embora o autor conteste a relação, ele identifica a existência da elaboração secundária no cinema, que é a remodelação do sonho destinada a apresentá-lo sob a forma de uma história relativamente coerente e compreensível. Neves (2005) questiona se o cinema nos aproxima de nosso próprio desconhecimento, de nossa própria divisão. A autora afirma que o cinema, assim como os sonhos, vive de associações, de condensações, de metáforas e metonímias. O cinema, como o sonho, seria um encadeamento de imagens e emoções que tem como efeito um sujeito. As mais ocultas e veladas marcas, os desejos mais inconfessáveis fervilham nas telas do cinema, ou seja, o cinema pode ser a tradução de nosso desejo mais secretamente inconsciente. Podemos estabelecer uma relação do cinema e a teoria psicanalítica a partir da observação feita por Bazin (1981) apud Fernandes (2005) de que a simbologia e a censura são funções constitutivas tanto do cinema quanto do sonho. O autor afirma que no cinema, o mecanismo da censura é representado pela legislação dos códigos de ética, pelos recursos de linguagem ou pelas regras econômicas do mercado, num sentido muito próximo da censura psíquica. Na psicanálise, o ego é uma das instâncias da personalidade que Freud descreveu na

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sua segunda teoria do aparelho psíquico. O ego tem como função agir como intermediário entre o Id e o mundo externo e tem que aprender a controlar os impulsos, decidindo se estes devem ser satisfeitos imediatamente, mais tarde ou nunca. Santini (2007) apud Magalhães (2008), descreve nesta citação, o modo de trabalhar a questão do tempo, do diretor David Lynch, que é atualmente considerado um renovador do cinema surrealista: [...] não será com o tempo cronológico, tal qual se tem o hábito de medi-lo, quantificá-lo, seriá-lo, um tempo técnico e tecnizado que vamos nos deparar.. É todo um outro tempo... De repente, graças à essência, mesma, do médium cinematográfico, e de seu brilhante realizador, somos mergulhados em um outro mundo, imersos no inconsciente. O relato preciso que David Lynch nos propõe, se articula, exatamente, da mesma maneira, segundo a mesma lógica narrativa, tecida da mesma matéria imajada e sonora que é a dos sonhos, com os seus procedimentos de condensação e deslocamento, suas superposições de espaços, (já que não há mais o tempo), seus desvios e seus contornos e suas inversões (porque o inconsciente tampouco conhece a negação) (SANTINI, 2007 apud MAGALHÃES, 2008, p.3).

Aqui diversos conceitos psicanalíticos foram evocados, como o inconsciente e sua atemporalidade, a linguagem dos sonhos em seu processo primário, com os mecanismos de

deslocamento e condensação, corroborando o pressuposto dessa pesquisa de que há

relação entre a linguagem do cinema e a linguagem do sonho.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a leitura de diversos artigos, teses, dissertações e da literatura clássica que aborda a temática do cinema, do sonho e suas leis, foram retomados os objetivos traçados quando da elaboração do projeto desta pesquisa. O objetivo geral trata de analisar, à luz da teoria psicanalítica, a relação entre a linguagem do cinema e do sonho; os objetivos específicos tratam de investigar os aspectos históricos e as definições de cinema; realizar a descrição do conceito de sonho e suas características e identificar na literatura especializada, os diferentes pontos de vista sobre a relação entre a linguagem do cinema e do sonho. A relevância acadêmica e científica desta pesquisa se dá por ter sido realizado um levantamento do que já foi produzido e divulgado sobre a linguagem do cinema e do sonho, a partir de uma leitura psicanalítica, com a aglutinação de diversos pontos de vista de analistas, pensadores e estudiosos do cinema. Foi realizada a análise de conteúdo temática, onde formam eleitas três narrativas, “a clássica”, “a metalinguagem” e “a narrativa surrealista e a narrativa do expressionismo alemão”, relacionando estas linguagens com a linguagem do sonho, descrita por Freud, resultando nesta produção escrita que ficará disponível para pesquisas futuras. A utilização da linguagem do cinema e do sonho pode ser uma ferramenta auxiliar para o sujeito na compreensão de questões que perpassam a sua vida, permitindo trabalhar com a imaginação e a realidade, sensibilizando, provocando reações, emoções e afetos nos sujeitos. O cinema adequa-se também como um recurso didático utilizado em salas de aula, seja para discutir ou exemplificar problemas emocionais postos em relevo em determinada produção cinematográfica, ou como forma de produção de conhecimento, de cultura, de entretenimento e mesmo para fazer reflexões críticas. Agrega-se a isto o fato do cinema ser um meio de expressão e de circulação do conhecimento, refletindo o olhar de uma época ou de uma sociedade, contribuindo para difundir valores e ideias. A partir dos tempos de Lumière e Méliès, passando pela narrativa clássica da linguagem de Griffith, chegando aos dias atuais, o cinema sofreu várias transformações em sua narrativa. Durante o cinema mudo, parecia que o cinema havia alcançado a sua essência como linguagem, mas a introdução do som modificou a sétima arte. A linguagem

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cinematográfica recebeu diversas influências da tecnologia no decorrer de sua trajetória, incorporando seus avanços. Pelos relatos, os espectadores do pequeno filme A chegada do Comboio à Estação, dos irmãos Lumière, ficaram em pânico, levantaram-se aos gritos e desviaram-se do caminho, com medo que o trem lhes passasse por cima. O cinema naqueles primeiros tempos não era mais do que fotografias móveis que assombravam por sua semelhança com a realidade. Atualmente, com a utilização da tecnologia “3D” (três dimensões), os espectadores provavelmente não reagiriam da mesma forma, mas ainda assim há uma impressão de realismo, uma imersão e a busca da emoção permanece na magia do cinema. Sobre a evolução da linguagem do cinema, Carriere (2006) relata que foi através da repetição de formas, do contato com o público, que a linguagem se expandiu e tomou forma, com cada cineasta enriquecendo o vasto dicionário que todos os cinéfilos consultam. A linguagem cinematográfica está sempre em mutação, dia após dia, como reflexo veloz destas relações obscuras, complexas e contraditórias que constituem as sociedades humanas contemporâneas. Pela pesquisa realizada, podemos inferir que existe relação da linguagem utilizada pelo cinema com a linguagem do sonho, descrita por Freud. Diversas escolas ou movimentos cinematográficos surgidos nos últimos 116 anos, alguns apresentam características com as quais podemos estabelecer relações entre as suas narrativas. Os sonhos também apresentam uma narrativa, uma linguagem própria e o próprio sonho é considerado uma linguagem. Freud afirma que o sonho é um enigma em imagens e que isto corresponde a aceitar a tese de que o sonho é uma escritura psíquica, cujas imagens não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas em seu valor significante. Durante o sono, segundo Freud, a vida mental está fechada à realidade e o que se produz é uma regressão à mecanismos primitivos, o que possibilita que a satisfação seja experimentada de forma alucinatória, como se estivesse ocorrendo no tempo presente. Em consequência dessa regressão que acontece no sonho, as ideias são transformadas em imagens visuais, os pensamentos oníricos latentes são dramatizados e ilustrados. O sonho manifesto, aquele sonho sonhado e recordado ao despertar, é o substituto distorcido de algo inteiramente distinto e inconsciente, que são os pensamentos latentes. Este sonho pode ser correlacionado com a narrativa do surrealismo e do expressionismo alemão, pois são diversas as influências da psicanálise nestes dois movimentos, que proclamam a

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prevalência do sonho, das pulsões, do desejo, desprezando a lógica e enfatizando o papel do inconsciente na atividade criativa. A narrativa clássica pode apresentar alguma semelhança com o sonho de conteúdo manifesto, pois este pode ser coerente, harmoniosamente construído como uma composição literária. Com a metalinguagem, podemos estabelecer uma relação com os sonhos diurnos, com as fantasias, que se constituem realizações de desejo, assentam em boa parte as impressões deixadas por acontecimentos infantis, beneficiam-se para suas criações, de uma indulgência por parte da censura. Para Freud, os sonhos diurnos são sinônimo de fantasma ou fantasia diurna, nem sempre conscientes. Essa fantasias ou sonhos diurnos são utilizados pela elaboração secundária, fator de trabalho do sonho, que mais se aproxima de vigília. Garcia-Roza (1995) aponta poucas semelhanças na relação do cinema e da psicanálise dos sonhos. Apesar de algumas semelhanças superficiais, afirma que são projetos constituídos que apontam em direções opostas. Enquanto o cinema se propõe a colocar o discurso simbólico em imagens, a psicanálise se propõe operar a passagem do silêncio (da imagem) à palavra. O mesmo autor afirma não haver nenhuma comunhão entre a proposta freudiana e a proposta do cinema. Que o cinema construiu uma verdadeira mística da linguagem e Freud elaborou sua teoria “sobre as ruínas do templo da imagem”. As restrições de Freud ao cinema diziam respeito à possibilidade do cinema fazer uma apresentação plástica “minimamente séria” dos conceitos psicanalíticos. O cinema contemporâneo se estabelece a partir da constituição plena de uma linguagem. A sua maturidade ocorreu na década de 1960, quando não há mais a invenção no cinema, sinalizando o fim dos cineastas construtores. Existem inúmeras linguagens no cinema e num mesmo filme podem aparecer diversas delas. Não importa quantas linguagens existam, o importante é que o cinema possa ser inscrito na construção da subjetividade do sujeito, aliando a imagem com a palavra, produzindo uma ficção que pode transportar o espectador ao sonho, à fantasia, às emoções, às reflexões e ao entretenimento. O cinema amplia a capacidade de sonhar do ser humano, afirma Zusman (1994), instalando o recurso pictográfico, incorporando o diálogo lido ou falado e dá um salto gigantesco permitindo objetivar a mais subjetiva das experiências humanas, o sonho. Faz-se necessário mencionar que, na visão da pesquisadora, este estudo alcançou os

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objetivos propostos, trazendo a correlação existente entre a linguagem do cinema e do sonho, à luz da teoria psicanalítica. Uma vez traçada essa correlação, sugere-se novos estudos sobre a temática a fim de contribuir para a expansão do uso do cinema como uma escritura, cujas imagens devem ser tratadas em seu valor significante, tal como o sonho.

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